quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Sonhos de batata

Para meu amigo Marko Concá


Dia desses me lembrei que na quarta série trabalhamos com feijões. A idéia era montar um experimento científico – criar um procedimento, levantar hipóteses e buscar a sua comprovação ou refutação. A Simone G., por exemplo, plantou feijões na terra e no algodão e comparou o crescimento das duas plantinhas. Anos depois a Simone G. virou cientista.

Lembrei de tudo isso contemplando o vaso da minha finada violetinha. Ela está em glória já tem semanas e o vaso continua lá, vazio, seco, em cima da mesinha de centro, sabe-se lá se resultado de pura inércia ou cumprindo a sina de ser emblema de alguma coisa que às violetinhas não foi dado conhecer (mas que os humanos conhecem muito bem).

Enquanto olhava o vaso vazio e lembrava dos gordos pés de feijão obtidos pelo bem-sucedido experimento da Simone G. (e concluía que os feijões são a solução da lavoura para quem não nasceu vocacionado para a maternidade herbívora), me peguei tentando lembrar qual teria sido o meu experimento.

Lembrei. Decidi plantar o meu feijão dentro de uma batata. Não me perguntem por quê. Assim como na poesia, tem coisas na vida que prescindem de razão.

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O feijão germinou e cresceu viçoso dentro da batata. Era um orgulho só. Primeiro cortei a tampinha da batata, extraí o miolo, joguei o feijão dentro e tampei de novo. Depois que ele se fincou na base, criou raízes e espichou até começar a cutucar a hospedeira, espetei palitos de dente na borda do corte e lá fixei a tampa para que o feijão pudesse conhecer o mundo, mas ainda assim se sentir seguro no seu lar.

Tempos depois, quando o sonho do feijão se tornou grande demais para a batata, cortei as paredes em volta da base e o transportei, heróico, para a terra.

Ele não resistiu (nunca tive dedo verde). Resultado do experimento: sonhos de batata não vingam na terra.

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Lembrei de duas cebolas que há alguns meses estavam habitando a gaveta de legumes. Cada vez que abria a porta da geladeira, elas me olhavam de soslaio, como a denunciar o meu fracasso doméstico. Enquanto eu fechava a porta depressa, adiando o momento da confissão, as cebolas trocavam comentários maldosos com os ovos da prateleira (esses também abdicaram do seu promissor futuro de galinha “em prol de um destino que se revelou inútil!”).

Um dia marchei obstinada até a cozinha decidida a pôr fim àquilo tudo. Abri a geladeira e ataquei primeiro os ovos, que se renderam sem oferecer resistência (será que eu poderia doá-los para produção de vacinas? – pensamento ecológico em tempos de reciclagem).

Na seqüência abri a gaveta das cebolas e furei o saco plástico com o voyeurismo mórbido de quem procura a inexorável ação do tempo.

Lá descobri vida. Inúmeros feixes haviam brotado do topo de cada uma delas.

Com reverência, enchi um copo d’água e lá plantei a minha cebola de geladeira. Há que se celebrar a vida nas suas mais ínfimas manifestações.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Sísifo

Todo dia é assim. Eu vou dormir quando estão acordando, acordo quando estão almoçando, vou trabalhar quando voltam do almoço, trabalho quando estão jantando, janto quando vão dormir, vejo TV, escrevo, tomo banho e leio enquanto dormem.

Todo dia, antes de dormir, eu me prometo que no dia seguinte vai ser diferente. Vou acordar cedo, levar as cachorras para passear, voltar para a yoga, almoçar com a Helô, chegar no trabalho em horário civil, sair antes da novela, passar menos tempo na Internet, não ficar lendo até as cinco da manhã. E todo dia a mesma história se repete.

Houve um tempo em que eu tinha um namorado me esperando à noite. Uma mãe que me dava pito quando eu via TV de madrugada. Uma amiga que almoçava comigo todos os dias, religiosamente.Uma chefe que pegava no meu pé e me solicitava coisas de hora em hora.

Aí eu saí de casa, o namorado foi embora, a amiga engravidou e a chefe decidiu que eu dava conta do recado sozinha.

Me tornei prisioneira da minha própria liberdade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Perto demais

O que havia para ser dito sobre Closer Contardo Calligaris já disse.

Revê-lo foi doloroso e revelador como um reencontro com um grande amor do passado.

domingo, 18 de novembro de 2007

Descartes

Ele tinha mesmo traços fortes como a amiga havia descrito. “Um turcão”. Alto, braços grossos, olhos grandes esverdeados, olheiras, barba mal-feita, cabelos crespos, orelhas grandes. Afável, mas olhava de um jeito levemente incômodo, embora lisonjeiro, e de quando em quando arriscava uma frase que podia tanto ser um flerte quanto um comentário ao acaso.

Ela, por motivo qualquer, estava às voltas com a sua necessidade de categorizar, classificar e pôr ordem no mundo. Foi parar no samba rindo de si e da sua incapacidade de poesia.

Lá pelas tantas ele a tirou para dançar. Tinha envergadura, braços firmes, condução certeira. Ela se sentia a mais leve das bailarinas do alto de seu metro e quase oitenta. O salão de baile era um estreito corredor, ladeado por mesinhas de metal, passagem para qualquer parte. O samba aconteceu assim, esbarrado, mas a graça do casal não escapava aos olhos do passante.

O sambista resolveu emendar na próxima música, homenagem involuntária àquela dança tão bem timbrada. Ela, saindo de crise de bronquite alérgica, respiração difícil mas foi até o fim, acompanhando o par no improviso, rosto bem encostado no dele pra facilitar a sincronia.

Fim do samba, ele deu o parecer:

- Você não é cartesiana. Você dança!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Hoje

Onde estão as palavras que ontem jorravam de dentro de mim? Sento diante do computador e nada me ocorre. Não é que eu não tenha sobre o que escrever. Não é que eu tenha deixado de pensar um segundo sequer sobre tudo e qualquer coisa, eu, eu e o outro, eu e o mundo, o outro e os outros, o outro e o mundo e toda a análise combinatória possível. Pelo contrário, andei colhendo conselhos amigos em busca de uma condição um pouco menos existencial, porque essa pílula vermelha às vezes me esgota a ponto de ter de dormir doze horas seguidas pra enfrentar a vida (ou o pensar sobre ela).

A resposta é singela. Estou à margem. Vejo tudo de longe. Há tempos que nada me toca profundamente. É por isso que nada espero desse texto, pois que a minha condição de escrita é o arrebatamento, seja por uma idéia, uma pessoa, um sentimento, uma lembrança, uma dor.

É uma triste constatação, mas no meu atual cenário mental, tendo a achar que o vazio também precisa ser vivido. Há o vazio leve, gaiato, vira-lata. Há o vazio existencial, aterrorizante. E há o vazio lúcido, cético e analisado.

Pra esse não há remédio a não ser esperar que a vida se encarregue de trazer novos amores.

sábado, 10 de novembro de 2007

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Humana, demasiado humana

Ao fazer a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras, topo com uma foto de Gael García Bernal e um artigo sobre O Passado, livro de Alan Pauls que inspirou o filme do diretor Hector Babenco. É assim que leio jornal, para o desgosto de minha mãe: de segunda mão, randomicamente, às vezes com um ou dois meses de atraso, fazendo a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras.

Ainda sob o efeito do filme de Babenco, salvo a folha de jornal de um destino inglório, guardando-a para uma rápida leitura antes de sair do trabalho. Os outros livros resenhados não terão a mesma sorte.

O primeiro parágrafo da resenha, escrita por um homem de cujo nome não me recordo, mas que, salvo engano, é editor da revista Trip, começa dizendo que o homem que encontrar esse livro na cabeceira da cama de uma mulher deve sair correndo.

Coro. Afinal, que livro está lá, na cabeceira da minha cama, na linha sucessória para ser o meu amante nas próximas madrugadas insones? O próprio. Em minha defesa, eu poderia dizer que ele não se tornou propriamente o meu “livro de cabeceira”; a cabeceira é apenas um intervalo entre duas estantes.

O fato é que O Passado me intrigou. A meu ver, é um filme com tantos espaços abertos para inferências que tive vontade de ler o livro e tentar ligar mais alguns pontos. Sempre me interessei, também, pelas especificidades das diferentes linguagens artísticas e pela possibilidade de ouvir uma mesma história contada de jeitos diferentes. Daí a Mãe Sereia ofereceu o empréstimo do livro (não perdendo a oportunidade de resmungar sobre todos os outros que fiz reféns em minha casa) e aceitei a oferta.

O curioso é que, embora a protagonista feminina do filme/livro, Sofia, seja mesmo de arrepiar os cabelos, eu jamais tomaria isso como ponto de partida se fosse resenhar o livro ou o filme. E, para além do constrangimento de ter o tal livro na cabeceira da minha cama, como se o resenhista levantasse um dedo de dentro da folha de jornal e me apontasse – ahá! –, senti uma certa solidariedade feminina por Sofia.

É verdade que Sofia tem uma dessas peculiares obsessões amorosas por seu ex-marido que faz com que ela se materialize em todos os lugares, nos momentos menos esperados, de uma forma horripilante. Mas também é verdade que Rimini, o ex-marido/vítima, é um exemplo desses homens ambivalentes e incapazes de colocar limites claros ao desejo do outro (no caso, da outra). O tempo todo me perguntava o que, realmente, queria aquele homem. Não consegui encontrar uma resposta.

Depois que saí do cinema, parei para pensar em quantas frases o personagem de Rimini falou ao longo de todo o filme. Pouquíssimas. E, embora todos tenhamos direito ao silêncio, é um fato que, onde faltam palavras, sobra fantasia.

Um amigo me disse há pouco tempo: “quando alguém não quer estar comigo, isso para mim já é, em si, o fato e a justificativa. Mais de uma vez disse às minhas ex-namoradas, quando tentavam explicar o motivo pelo qual queriam terminar: poupe-se do trabalho e do sofrimento. É por isso que, ao terminar um relacionamento longo, também não senti necessidade de dizer à minha namorada os motivos exatos pelos quais eu queria terminar. Achei que seria cruel e desnecessário.”

Eu admirei o comentário do meu amigo e pensei: “quero ser assim quando crescer”. Mas logo depois constatei, ao vivo e em cores, o quanto as palavras podem ser libertadoras. Nem todos são assim e às vezes é preciso aceitar o limite do outro, que simplesmente não consegue pôr em palavras aquilo que sente, embora consiga demonstrar em ações – nem sempre tão inequívocas quanto as palavras, mas que também podemos aprender a ler, com o tempo e a maturidade.

Mas essa digressão está ficando um pouco mais longa do que eu pretendia. Quero falar sobre O Passado, Sofia, mulheres à beira de um ataque de nervos e o editor da Trip. Enquanto assistia ao filme (cujos detalhes vou dar aos futuros expectadores a oportunidade de conhecer pela tela do cinema), via aquela mulher cada vez mais decadente, descontrolada e desequilibrada e sentia um misto de horror e... empatia. Era como olhar para o meu próprio passado, embora ele nunca tenha existido com aquele grau de intensidade e obsessão, e entender que, talvez, a única coisa que me separe de Sofia sejam os meus oito anos de análise.

Me lembro imediatamente da reportagem lida há dois dias sobre mulheres do Japão que mataram as coleguinhas de escola de suas filhas por se sentirem desprezadas pelas mães das meninas, a cujo grupo de mães pertenciam. A despeito do crime hediondo, essas mães assassinas receberam milhares de cartas de outras mães com manifestações de solidariedade, mostrando o quanto essas mulheres se reconheceram na loucura tantas vezes por elas arquitetada, mas apenas consumada pelas outras.

Uma amiga dona de um coração bovino me confessa, ao comentar sobre a maneira velada e cínica como uma colega de trabalho a critica: “minha vontade era dar um tiro nela!”. Uma outra, falando sobre o longo e difícil processo de separação e a descoberta de que o ex iniciou um novo relacionamento, comenta: “agora entendo por que as pessoas matam por amor”.

Uma linha de sanidade separa as pessoas que devaneiam sobre ou verbalizam o terrível desejo primitivo de matar um rival ou amante e aquelas que efetivamente o fazem (só os autores de novela ainda não perceberam isso. Por isso, na tentativa tosca de criar suspense sobre um crime, começam a colocar na boca de milhares de personagens secundários frases como “minha vontade era matar aquela Thaís!”, como se isso indicasse a natureza criminosa de alguém). Uma linha ainda mais tênue separa as pessoas que, vivenciando um término de relação amorosa não desejado, conseguem se relacionar com a perda de uma forma saudável ou alimentam eternamente aquele amor não-correspondido, impedindo-se de viver novas histórias, novos encontros, presas a um relacionamento morto cujo corpo elas se recusam a enterrar.

O fato é que, procurando bem, todo mundo tem dentro de si um pouco de Sofia, de Rimini, de mãe assassina do Japão, de capitão Nascimento, de Fernandinho Beira-Mar. Esse é, aliás, o princípio da relação terapêutica, se bem entendi o que disse o Contardo Calligaris: a terapia tem alguma chance de sucesso se, pra começo de conversa, o terapeuta conseguir, ainda que em um grau mínimo, sentir empatia pelas queixas e dores vividas pelo paciente. Se, ao contrário, para o terapeuta o paciente não passar de um ser enfadonho, desprezível ou desinteressante, nada acontecerá. É melhor até encaminhar o caso.

Foi com essa inspiração que escreveu Terêncio: “sou humano, nada do que é humano me é estranho”. E o que me ocorre como um pensamento curioso, que deixo no fim dessa divagação quase como uma nota de pé de página, é quanto sofrimento decorre da incapacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro. Paradoxo da condição humana que, se conseguirmos reverter a nosso favor, pode ser a chave para relacionamentos interpessoais produtivos, saudáveis e satisfatórios.