sábado, 29 de março de 2008

Laurinha e a nova professora


Dia desses, dirigindo meu jipinho pelas ladeiras de Perdizes, uma seqüência de associações livres que minha memória não foi capaz de reter me levou à seguinte pergunta: por que é que eu, uma cartesiana que dança – que, aliás, ama dançar – tive minha carreira no balé clássico tão precocemente abreviada?

Ao contrário da minha irmã, que fez anos e anos de balé, chegou a dançar com sapatilha de ponta e se aposentou compulsoriamente por conta de um problema na rótula do joelho (e cujas fantasias das apresentações de fim de ano – a florista, o fogo, a hippie, anos dourados, a cegonha... – animaram muitas das nossas brincadeiras infantis ao som dos discos do Balão Mágico), eu tive aulas durante um ano, dos seis aos sete, e depois parei.

Fui puxando pela memória até me transportar àquela época e o motivo veio claro como o dia: minha professora. Não, ela não era uma bruxa. Pelo contrário: era uma fada. Nem me lembro do seu nome (minhas memórias infantis são bastante imprecisas e surrealistas), mas seguramente me lembro dos sentimentos que me acompanharam naquele episódio.

Em um desses acontecimentos banais do cotidiano que não parecem sequer dignos de nota, minha professora de balé teve que mudar os horários das suas aulas. Ela lecionava no período da tarde e teve que mudar para o período da manhã. Simples assim. Eu, que estudava no período da manhã, não podia mais fazer aulas com ela. E simplesmente não pude aceitar que qualquer outra pessoa fosse minha professora de balé, apesar de todas as tentativas de argumentação da minha mãe, de uma ida à aula da nova professora com uma amiguinha, da perspectiva de não ganhar uma nova fantasia de balé no final do ano (a minha era de bebê – dancei junto com a minha irmã que era a cegonha).

Pensando bem, pode ser que tudo isso seja apenas fruto da minha imaginação. Foi mais ou menos nessa época que minha mãe me levou ao ortopedista para fazer uma avaliação e eu comecei a fazer fisioterapia para corrigir a lordose, a cifose, a escoliose, o pé chato, a ponta do cotovelo e o branco do olho (processo que se estendeu por longos dez anos da minha vida).

Mas, independentemente do fato de eu ter parado as aulas de balé por recomendação médica ou simplesmente por desgosto, tenho uma vívida recordação de um dia ter faltado à escola (com a anuência da minha compreensiva mãe psicóloga) e ido à escola de balé para visitar a antiga professora. Comemos juntas um ovo de páscoa que levei para ela.

Já lá se vão mais de vinte anos e continuo igualmente apegada às minhas professoras. Eu devia ter me lembrado disso quando assumi a minha primeira sala de aula aos 21 anos, como professora substituta de português de uma 7ª série. Provavelmente teria causado menos danos à minha auto-estima e talvez eu não tivesse tomado a decisão de não pisar novamente em uma sala de aula durante pelo menos uma década.

Há cerca de um ano e meio, naquela fase abominável da minha vida que inspirou o nascimento deste blog, decidi que queria começar a praticar yôga. Eu já tinha ouvido muitos relatos positivos sobre os benefícios da yôga (eu confesso: escrevo yôga mas falo “yóga” – não me acostumo), inclusive da minha analista, cuja opinião respeito profundamente. Sabia que precisava ter uma atividade física regular e, para além disso, estava disposta a buscar toda a ajuda possível para me sentir melhor.

Recebi de uma amiga a recomendação de uma escola que ficava a poucas quadras da minha casa e do trabalho. Entrei no site, fucei os horários das aulas e me rendi ao conforto da comunicação escrita, enviando um e-mail solicitando informações sobre a abertura de novas turmas de iniciantes, já que os horários existentes não eram convenientes para mim.

Logo veio uma resposta simpática da professora dizendo que havia uma turma de nível intermediário com poucos alunos e eu deveria experimentá-la, pois ela poderia me dar mais atenção individual. Eu repliquei dizendo que nunca havia feito yôga na vida e certamente não acompanharia uma turma intermediária. A resposta foi singela: ligue-me e conversaremos.

No telefone com a Adri, contei sobre o meu longo histórico de fracasso escolar no que diz respeito a esportes e atividades físicas em geral. Descrevi as minhas notas vermelhas em todos os quesitos de todas as avaliações físicas que eu já tinha feito na vida: zero de força, zero de flexibilidade, zero de capacidade aeróbica. Eu síntese: eu era uma bucha.

Ela não comprou a minha história. Repetindo a singeleza da primeira resposta escrita, disse simplesmente: venha até aqui e faça uma aula, quero te conhecer.

Fui, a conheci, recebi algumas breves instruções para conseguir acompanhar a seqüência da saudação ao Sol e, alguns minutos depois, tive a minha primeira aula intermediária de yôga. Suei como uma vaca, bufei, tremi, esconjurei, esbugalhei os olhos. Mas fiz a aula inteirinha, até o fim. No relaxamento, chorei um oceano de lágrimas.

Depois nos sentamos no chão e Adri me disse: você tem totais condições de acompanhar essa turma. Precisa trabalhar força? Precisa. Falta flexibilidade? Falta, mas isso é pura ferrugem... O mais importante é que você está extremamente aberta para o trabalho. E tem uma incrível percepção sobre o seu corpo. Por mim você já é aluna do nível intermediário.

Comecei a freqüentar duas aulas semanais e a yôga causou em mim uma transformação. Finalmente descobri que sou um corpo. A yôga é suficientemente exigente para que eu me sinta desafiada e precise me dedicar e me concentrar para fazer as posturas, mas não excessivamente exigente a ponto de eu me sentir desmotivada ou incapaz. Depois de um ano, me senti quase uma menina do circo ao conseguir fazer uma invertida sobre a cabeça pela primeira vez. Eu, que nunca na vida consegui dar uma estrela sequer.

E tudo isso acontecia sob o olhar atento, amoroso e estimulante da Adri. Ela conseguiu a façanha de mudar completamente a minha auto-percepção corporal, a ponto de me exibir para as alunas novas como exemplo de uma pessoa corajosa, que tinha conseguido vencer muitos limites em um tempo surpreendentemente curto.

No início desse ano, meu espírito vampiro despertou definitivamente das catacumbas e comecei a não conseguir levantar para ir às aulas de manhã. Mais do que simplesmente acordar e levantar da cama, constatei que não gosto de estímulos sensórios nas primeiras horas do meu dia. Não gosto de ouvir gente falando alto, não gosto de falar com ninguém, não gosto nem mesmo de tomar banho. À noite, pelo contrário, a yôga cai como uma luva para mudar a freqüência do dia de trabalho e preparar o caminho para casa.

À noite, comecei a não conseguir chegar a tempo para fazer aula com a Adriana. E acabei caindo em outra turma, com outra professora.

Eu a conhecia já há algum tempo, pois logo que comecei a fazer yôga fui experimentando outros horários durante a semana por conta de imprevistos no trabalho. Logo no primeiro dia em que conheci esta outra professora, fiz aula sozinha. Achei que ela falava demais e que insistia muito em que eu fizesse os movimentos com um requinte de perfeição que me desanimava. Me fazia sentir incapaz, como todas as academias de ginástica que já freqüentei na vida.

E é incrível o que acontece quando a gente não gosta de alguém. É como o cheiro que exalam as pessoas que têm medo de cachorro. As pessoas simplesmente começam a não gostar da gente também. Pelo menos era essa a impressão que eu tinha.

A minha pequena deficiência auditiva, que foi delicadamente contornada pela Adri com a recomendação de que eu não me prendesse muito ao que ela falava e simplesmente tentasse acompanhar o fluxo da aula, virou um grande problema para a professora nova. Se eu abria os olhos para fazer leitura labial, ela achava que eu não estava me concentrando o suficiente. Se eu pedia que ela falasse mais alto, ela elevava a voz a uma altura desagradável, como se estivesse gritando ou falando asperamente com toda a turma. Se eu me confundia em alguma postura, ela me perguntava se era porque eu não tinha ouvido direito.

Além disso ela nunca, nunca tocava em mim. A Adri sempre corrigia amorosamente as minhas posturas. Será que eu era invisível? Ou era tão ruim que ela preferia não tentar me corrigir para não me desencorajar? Isso sem mencionar que ela nunca, jamais me tratou pelo nome. Eu desconfiava que ela havia se esquecido como eu chamava.

Apesar de toda a minha resistência, insisti em continuar na turma (afinal, não tenho mais seis anos de idade para desistir de um curso por causa da professora, certo?). E, aos poucos, comecei a gostar dela. Passei a valorizar os seus comentários, que antes me pareciam um pouco maçantes. Encontrei um jeito confortável de lidar com a falta de jeito dela de lidar com a minha surdez. Sobretudo, me concentrei na minha relação com o meu corpo e com a yôga, mais do que na minha relação com ela.

Retomei o ritmo das duas aulas semanais e mergulhei fundo no trabalho. A cada dia, uma nova conquista: uma postura desafiadora da qual vou conseguindo me aproximar aos poucos, minha respiração que já não fica tão ofegante, cada vez menos necessidade de recorrer à postura da criança para acalmar os batimentos cardíacos. Enquanto isso, o cultivar de uma relação crescentemente afetiva com a “nova professora”.

Na última aula, ao me despedir e virar para a porta, recebi um sorriso e um “tchau, querida!”. Isso me fez pensar que a vida é um longo exercício de aprendermos que as separações são inevitáveis, mas sempre é possível estabelecer novas e gratificantes relações.

P.S.: O título desse post faz referência ao livro infantil “A nova professora”, cuja protagonista (Laurinha, uma porca-espinha) vive o drama da substituição da sua querida professora da escola. Toda a coleção da Laurinha marcou momentos felizes da minha infância passados na casa da minha avó Helô. Vó, um beijo!

sexta-feira, 28 de março de 2008

Semibreves

Estóica
Desafio qualquer um a praticar yôga com os joelhos esfolados. Haja elevação espiritual.
Silogismo
Hoje vi um cachorro perseguindo um carteiro. O que prova que as histórias em quadrinho sempre estiveram certas.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Um corpo que cai

Caí. De maduro.

Jovem, saudável, inteligente, descolada, independente, articulada. (Acima de tudo, modesta.)

Mesmo assim, caí. De quatro. De boca. De sola. Como diriam os cariocas: me ishhhtabaquei no chão. E ishhhhcangalhei os joelhos.

Tombo daqueles de se olhar em volta para avaliar o tamanho do vexame. De sentir pena de si mesma pela sua fragilidade, vulnerabilidade e insignificância. Aqueles tombos que machucam principalmente a moral.

Não me lembro se no momento do tombo me ocorria algum pensamento de grandiosidade, mas o contraste foi grande: em um segundo eu era a dona da rua, a musa de Perdizes, a cidadã do mundo, a senhora do meu nariz; no segundo seguinte, beijava o chão, calças rasgadas no joelho, mãos esfoladas.

Nem sabe se quer que alguém ajude ou se prefere que todo mundo finja que não viu. Dói cair e dói saber que o mundo continua girando apesar do seu tombo. Se não há platéia, o negócio é engolir o choro e continuar a caminhada. Ver a dor diminuir aos poucos, com o caminho.

Não tem jeito. Cair, todo mundo cai. A questão é como se levanta.

sábado, 15 de março de 2008

TSC

Ela sofre de um severo quadro de Transtorno da Sinceridade Compulsiva.

Sendo assim, antes de partir para os finalmentes, achou por bem informar o moço:

- Olha, é bom você saber de uma coisa. A gente pode ficar, se curtir, numa boa, mas eu estou bem enrolada,viu? Já estou saindo com três caras... Então vê aí o que você quer fazer.

O rapaz se desconcertou, que história é essa, mulher minha é só minha. Ou então, ela tinha que escolher: ou ficava só com ele ou com os quatro!

Depois, capitulou: ela era uma montanha de areia, à disposição do seu caminhãozinho pelo confortável preço de não ter absolutamente nenhum compromisso. Algum homem pode sonhar com algo além disso?

Mas o diabo é que ele gostou dela. Quando pediu o telefone ela deu, mas quando disse que não ia ligar ela nem ligou (e ainda confessa que perdeu a paciência com homem que pede número de telefone só para fazer média).

A moça deu um nó no moço e o negócio foi apelar para os SMSs, santa pós-modernidade. Faz que vai mas não vai, faz que não está estando, comparece sem fazer pressão. E ela, que além de sincera é educada, respondeu. E foi a deixa pra ele ligar.

Com voz de Fábio Jr., ela conta, meio impaciente. Cheio de frases feitas, de elogios prontos e de rouquidão sedutora puxando para o brega. Mas além de sincera e educada, ela é boa. Achou que mesmo enrolada não custava dar mais uma chance para o moço, ruim não tinha sido, ele que se quisesse encontrasse com ela na festa do Fulano no Lugar Tal.

Mas se um é pouco, dois é bom e três é demais, quatro é quase impossível de administrar. E aos 45 do segundo tempo, sabendo que um dos outros três também havia sido convidado para a festa, ela resolve se emendar por SMS: “Xi! Um dos caras com quem eu estou saindo também vem para a festa... E agora?”. Desaforado, o moço responde do alto dos seus 24 anos com topete de 17: “Fica com ele”.

Ela tenta ligar, não falou por mal, só queria que ele soubesse que ela não poderia ficar com ele naquela festa. Ele não atende. Mas chegando no Lugar Tal, ela vai ao bar tomar alguma coisa e PUMBA! Tromba o dito-cujo. O número três não veio, mas os amigos do três sim. Sendo assim, o protocolo continua valendo.

Como é que ele ainda teve coragem de vir depois daquela troca de torpedos?, as amigas perguntam. Ela explica: ele já estava encostado no balcão do bar quando recebeu a triste notícia. Amigos em punho, acampamento armado, achando que aquela noite ia faturar.

As amigas incentivam: “vai, fica com ele!”. Mas ela não quer que os amigos do alheio vejam a cena. “Vai escondida!”. “Não quero ficar escondida!”. É sincera, educada, boa e tem lá os seus brios, vejam bem. Não está fazendo nada de errado. Tudo o que ela quer é usufruir da sua liberdade feminina, pero sín perder la teruna jamás.
Na saída do bar, pede cinco minutinhos para a amiga e finalmente se despede do rapaz com a devida eloqüência. Mas esclarece: ela não vai deixar de sair com nenhum dos outros três!

E durma-se com um barulho desses.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Um grito de liberdade

Uma rajada de tiros, uma salva de palmas, uma ola, um troféu joinha e um minuto de silêncio em homenagem a Thomas Edison, o mártir, herói e inconfidente dos notívagos solitários!

(...)

[um minuto depois...]

E três vivas ao elevador, à TV, ao DVD, ao computador, à Internet, à geladeira, ao fogão, ao microondas, ao chuveiro elétrico e ao secador de cabelos! Viva! Viva! Viva!

quinta-feira, 13 de março de 2008

Bolsa

Então.
Aproveitei a terça-feira para ir ao Na Mata, ouvir boa música e dar uma sondada no mercado.
Minha gente: o mercado tá fraco.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Pra titia

Falando em casamentos...

Minha prima vai casar. Minha prima linda, querida e amada vai casar. A idéia original era morar junto e fazer um test-drive antes de completar o serviço, mas titia deu uma chamada e os noivos resolveram se enquadrar. O casório é em janeiro de 2008. Vivam nos noivos!

Então me dei conta de que, depois do casamento de outra prima, por parte de pai, marcado para agosto desse ano, e do casório da minha prima querida no começo do ano que vem, me tornei a próxima na linha sucessória da família. E não vejo ninguém à minha frente!...

O pior de tudo é que até hoje absolutamente todas as minhas cinco primas mais velhas (e a minha irmã) se casaram (ou casarão) exatamente como manda o figurino: com um bom homem, na igreja, em cerimônia celebrada por um pastor (as duas famílias são protestantes), de branco, com direito a aliança e festão pra mais de 200 convidados.

Quando a minha irmã se casou eu pensei secretamente: “papai, mamãe, aproveitem bem esse momento, pois ele será único na vida de vocês...”. Eu já sabia que nunca me casaria na igreja e, mesmo namorando naquela época e curtindo a idéia de rituais, também desconfiava que morar junto seria o primeiro passo antes de pensar em algum tipo de celebração. E mesmo a tal celebração, se houvesse, certamente não seguiria os moldes dos casamentos tradicionais.

Hoje em dia, porém, já fui ainda mais longe nas minhas elucubrações sobre o futuro: será que algum dia eu vou sequer juntar os meus trapinhos com alguém? E isso não é um discurso amargurado e anticasamento, é apenas uma constatação sobre a imprevisibilidade da vida. Poucas pessoas que eu conheço são tão românticas quanto eu. Quase nenhuma das minhas amigas curte tanto a idéia de “se amarrar” quanto eu curto. Quando amo (reformulando: até hoje, quando amei...), nunca lamento o fato de estar comprometida e não sinto falta da liberdade da vida de solteira. E acho que, desde sempre, a idéia de casar e ter filhos é um dos meus maiores desejos e aquilo que talvez atribua mais sentido à existência.

Ainda assim, ao longo dos últimos 22 meses da minha vida, comecei a exercitar o pensamento sobre a possibilidade de isso nunca vir a acontecer e traçar rotas alternativas para que a minha vida possa vir a ter tanto ou mais sentido quanto eu encontraria se pudesse realizar aquele meu sonho original. Por mais que se diga “que é isso! Você só tem 29 anos!”, passei a sentir uma necessidade leonina de aprender a me pensar como uma pessoa completa mesmo sozinha.

Tenho certeza de que ainda vou viver muitos encontros nessa vida, e espero que cada uma das coisas que eu vivi até hoje esteja me preparando para vivê-los cada vez mais intensamente e extrair deles o máximo de prazer, dor e ensinamento. Mas quero também ter a certeza de que, se por uma falta de sorte nenhum desses encontros for mágico o suficiente para me fazer desejar dividir a minha vida com outra pessoa, ainda assim posso me sentir feliz e realizada.

Acho que tenho feito um bom trabalho até agora. Mas é inevitável, de vez em quando, se render a essas pequenas fantasias que acompanham as meninas desde sempre: pensar no seu vestido de noiva, na música que você queria que tocasse na sua entrada triunfal, em quem seriam os seus padrinhos... Só falta mesmo um pequeno detalhe para completar o quadro: o noivo!

Por que é que nenhuma das minhas primas resolveu fazer a Revolução antes de mim, casar com uma mulher, entrar para um harém, namorar um casal (acreditem, isso existe), enfim, romper com os paradigmas? Bem, simplesmente não aconteceu... E felizmente, cada uma delas, a meu ver, encontrou a felicidade ao seu modo.

Enquanto isso, estou aqui trabalhando com afinco para encontrar o meu...

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mulheres apaixonadas

“O dia do meu casamento foi um dia muito, muito feliz na minha vida. Embora a gente já morasse junto há algum tempo, resolvemos casar no civil. Eu e ele queríamos oferecer uma festa para os amigos, e alguém precisava pagar por essa festa... Mas, além disso, muito acima disso, eu quis dar esse casamento de presente para o meu pai. Eu era a filha mais nova, a única que ainda não tinha casado. E fiz questão que o meu pai me conduzisse até o juiz de paz diante de todos os meus amigos, que me levasse pelo braço e me entregasse para o meu futuro marido. Ensaiamos essa entrada milhares de vezes. Se você me perguntasse naquela época, eu não saberia te dizer por quem estava mais apaixonada: se por ele ou pelo meu pai...”.

terça-feira, 4 de março de 2008

Loucos

Eles estão por toda parte. Às vezes vestem terno e gravata, tailleurs, exibem cargos importantes e se escondem por trás de uma grande fachada institucional. Desses eu quero distância, embora seja impossível escapar de ter pelo menos um ocupando um papel importante na sua vida.

Os que me interessam mesmo são aqueles que vivem a céu aberto, dizendo suas verdades aos transeuntes, exibindo as entranhas que todos nós, ao longo da vida, aprendemos a ocultar.

No bairro da minha mãe havia um. Estava sempre descalço, sentado no chão em frente à padaria, em uma pose infantil com as pernas esticadas e abertas e um pedaço de papelão à sua frente. Falava muito sozinho. Tinha a pele morena e a cabeça calva. Às vezes, em meio ao seu solilóquio, parecia um pouco agressivo, por isso meu coração de menina nunca teve coragem de se aproximar. O que mais me atraía e aterrorizava eram os desenhos sempre iguais que ele fazia no pedaço de papelão, com uma velha caneta esferográfica: eram bustos de seres meio-homem, meio-macaco, como as figuras de 2001 – Uma Odisséia no Espaço ou do Planeta dos Macacos.

Aqueles homens-macacos exerciam em mim o mesmo fascínio e repulsa que as cobras. Não há como não olhar, mas não há como olhar e não se sentir repelido. Ele fazia parte da paisagem, do caminho de casa. Ele e sua caneta esferográfica, seu pedaço de papelão, sua pose infantil, seu monólogo agitado e seus homens-macacos.

O louquinho do meu bairro é de outro tipo. É aquele que a gente costuma chamar de “louco manso”. Idoso, sem um dente na boca, rosto enrugado, cabelos branquinhos. Está sempre caminhando e conversando, com alguém que pode ou não estar lá. Às vezes me diz frases incompreensíveis, desconfio que faz críticas a políticos ou defende alguma teoria conspiratória.

Ele adora as minhas cachorras e, acho eu, me adora também. Lembro muito bem da primeira vez em que nos encontramos, como ele exibiu a gengiva banguela e disse como elas eram bonitinhas. Desde então, sempre que o encontro, faço questão de parar, dar bom dia/boa tarde e esperar que faça uma festinha nas cachorras e o seu mini-discurso.

Uma vez fui tomar um lanche perto de casa com minha mãe e encontramos com ele. Eu a apresentei a ele como se apresenta a mãe a qualquer amigo. A mãe-sereia estranhou um pouco, mas entrou na história. Percebeu que ele era inofensivo.

Em outro dia quente e modorrento, topei com o “meu louquinho” no caminho de volta para casa. Ele sorriu de longe as gengivas vermelhas, se abaixou para aguardar a chegada das cachorras, me olhou com olhinhos brilhantes e saudou: “as bonequinhas!”.

Quando cheguei mais perto, dei boa tarde, esperei que concluísse os afagos nas chuquinhas e então ele disse, entre tímido e galante: “são três!”. Cogitei que ele estivesse enxergando uma terceira cachorra imaginária e resolvi entrar na brincadeira: “Três bonequinhas? Cadê a terceira?”. E ele respondeu, exibindo a banguela e me apontando o dedo: “É você!”.