sexta-feira, 30 de maio de 2008

Assassina

Socorro! Meu cacto morreu. Existe maior evidência de incapacidade herbal?

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Ironia das ironias: uma amiga querida foi viajar por um mês e deixou justamente quem encarregada de regar as plantas?

Se ela soubesse quantas mortes vegetais carrego nas costas, pensaria duas vezes antes de me confiar o seu jardim.

domingo, 25 de maio de 2008

Vida bandida

Você pensa que nunca vai acontecer com você (e torce para isso também), o que é bom, já que sofrer por antecipação faz mal para o fígado e não prepara ninguém para a experiência real. Mas, eventualmente, pode acabar acontecendo. Em um feriado qualquer, você está sentado tranqüilamente com um casal de amigos na mesa de um simpático restaurante do seu bairro, aguardando o seu jantar enquanto joga conversa fora, e vê um homem se aproximando da sua cadeira e dizendo algo parecido com “bolsa”, “celular”. Sem entender o que ele diz, você se vira e pergunta “como?” e então ele levanta a blusa e mostra o revólver empunhado para não deixar nenhuma dúvida: “a bolsa, o celular, rápido”. Ainda tentando juntar as sensações com os pensamentos, você abre a bolsa em busca do celular, mas ele interrompe: “dá a bolsa inteira, rápido!”. Você entrega a bolsa e passa a ver tudo em câmera lenta, imaginando se o resto do restaurante vai se dar conta do que está acontecendo. Mas em dois segundos percebe que há mais dois homens igualmente armados que já renderam as mesas de dentro e também o caixa do restaurante. Eles não falam alto, evitam levantar o revólver, mas é difícil prever se o final da história já está perto ou longe e qual vai ser o desfecho. Uma cliente desavisada atravessa a rua em direção ao restaurante rendido. Uma mulher sentada na mesa ao seu lado tenta alertá-la: “vai embora, vai embora”. A mulher não dá ouvidos e rapidamente é abordada por um dos bandidos: “passa a bolsa”. Ela reage com indignação, “não vou dar!”, e quase é possível ouvir todos dentro do restaurante prendendo a respiração ao mesmo tempo. Dois revólveres apontados em direção à mulher fazem com que ela mude de idéia. Pronto, mais algumas bolsas e celulares (inclusive o do seu amigo, mas felizmente a carteira dele e a bolsa da sua amiga ficam intactas), eles mandam todos para a área interna do restaurante e dão o fora.

Ainda sem reação por alguns instantes. As crianças choram. Os garçons continuam circulando e levando os pratos às mesas, sem saber muito bem qual é o protocolo para situações com essa. A proprietária do restaurante convida os clientes a se sentarem e terminarem a sua refeição, afirmando que isso “jamais aconteceu antes”. Mas o apetite se foi. E ainda há muito a fazer: cancelar cheques, cartão do banco, bloquear celular. Quanto mais rápido, melhor. E, sem celular, só é possível fazer isso do telefone de casa.

Mas e a chave do carro? Estava na bolsa. Bom, você tem outra em casa. Mas e a chave de casa? Também na bolsa... Ah, que sorte você ter deixado uma cópia na portaria do prédio para a faxineira. Os seus amigos te dão uma carona para casa e sobem para te fazer companhia enquanto você inicia a operação-bloqueio. Depois vão te levar de novo até o seu carro para que você possa trazê-lo para casa.

Começa a epopéia dos assaltados. Vinte minutos andando em círculos pelo menu da Claro, que pede que você aguarde para falar com a operadora para em seguida repetir todas as opções do menu ad nauseum. Melhor tentar o Itaú. Primeiro você consegue navegar pelo menu eletrônico até a opção “bloquear cartão”. A gravação informa: “para bloquear o seu cartão SEM emissão de um novo cartão, digite 3. Para bloquear o cartão COM emissão de um novo cartão, digite 4”. Bem, você precisa de um novo cartão, o mais rapidamente possível. Após apertar o 4, a gravação alerta: “atenção! A emissão de um novo cartão está sujeita a cobrança de tarifa! Confirma a operação?” Já que nenhum ser humano se oferece para trocar uma idéia com você, o jeito é confirmar e pelo menos ter a tranqüilidade de que o seu cartão não será usado pelos bandidos.

Como você não consegue bloquear os cheques pelo menu eletrônico, desliga o telefone e liga novamente, digitando inúmeras teclas até ouvir a voz de um operador. Isso leva mais alguns minutos. Ao ser atendida pelo Rafael, começa a dizer “boa noite, por gentileza, eu fui assaltada...” mas rapidamente é interrompida com “Um minuto, por favor” e retorna ao menu eletrônico. Respira fundo, põe o fone no gancho e reinicia a operação. Dessa vez quem te atende é o Moisés. Você explica tudo o que aconteceu: “fui assaltada, levaram a minha bolsa, tudo dentro, inclusive cartão de débito e cheques, acho que já consegui bloquear o cartão, mas não os cheques...”. Você espera algum tipo de empatia, de humanidade, mas o atendente dispara, tal qual um menu eletrônico: “nome completo? Endereço? Diga APENAS o dia de seu nascimento. Nome completo de sua mãe? Nome completo de seu pai? Seu CPF? Seu nome completo novamente?” e depois de responder a todas essas perguntas, você ainda ouve atônita, pela terceira vez: “com quem eu falo?”. Exausta, você implora que ele bloqueie os seus cheques. Ele pergunta se são apenas algumas folhas ou o talão inteiro. Você explica que foi o talão inteiro, mas algumas folhas já haviam sido usadas por você. Ele diz: “então o motivo do bloqueio é oposição ao pagamento?”. “Não, meu senhor. O motivo do bloqueio é ASSALTO A MÃO ARMADA”. Suspirando profundamente, o atendente insiste: “minha senhora, existem duas formas de bloqueio: o bloqueio por oposição ao pagamento é para as folhas que já foram assinadas. O outro bloqueio é para as folhas ainda não utilizadas. Qual bloqueio a senhora deseja solicitar?”. “Meu senhor: eu fui assaltada. Algumas folhas já haviam sido utilizadas, outras estavam em branco. Cabe ao senhor me dizer qual é a categoria de bloqueio que se encaixa nessa situação.”. “Nesse caso, senhora, faremos o bloqueio por oposição ao pagamento, mas a senhora deve comparecer na agência bancária em até dois dias úteis para confirmá-lo, caso contrário o talão será automaticamente desbloqueado. Quanto ao seu cartão, consta que ele já foi bloqueado!” “Sim, eu disse ao senhor no início da ligação que já havia bloqueado o cartão pelo menu eletrônico...”. “Bem, a senhora está ciente de que a opção ‘bloqueio com emissão de novo cartão’ está sujeita a cobrança de tarifa?”. “Mesmo em caso de ASSALTO?”. “Bem, se a senhora quiser posso cancelar o pedido de emissão de um novo cartão e na segunda-feira a senhora vai até a agência e conversa com sua gerente...” “Não, não, eu pago a tarifa.”. Mais um assalto, dessa vez institucional.

É a vez da Claro novamente. Você consegue navegar pelo menu eletrônico até a opção “bloqueio de celular por perda ou furto”. Uma gravação informa: “ao abrir o seu chamado, você receberá um número de protocolo. Para que o seu bloqueio seja confirmado, deve enviar o número do protocolo via torpedo para a Anatel em até 24 horas”. Tá bom, mas como mandar torpedo se o seu celular foi ROUBADO??? Você explica a situação para o simpático atendente, que aparentemente percebe o absurdo da solicitação. Passa o telefone para o seu amigo, que também precisa bloquear o celular dele. Por fim, o seu amigo informa que para habilitar o seu número em um novo aparelho, será preciso apresentar um boletim de ocorrência – mas é possível fazê-lo pela internet, segundo o atendente da Claro.

Antes de dormir, você entra na delegacia virtual e, obedecendo às instruções do menu, abre dois boletins de ocorrência: um apenas para os documentos, outro para o celular. No dia seguinte, vem a resposta por e-mail: os dois boletins foram negados. Motivo da negação do segundo: a ocorrência já havia sido relatada pelo primeiro. Motivo da negação do primeiro: a delegacia só permite o registro de ocorrência de furto. Em caso de roubo, você deve se dirigir à delegacia mais próxima portando cópia do e-mail com a recusa dos boletins eletrônicos.

Como não tem impressora em casa, você ignora a ordem do e-mail, pede cinqüenta reais emprestados para a vizinha só para não ficar inteiramente desprevenida (sem cartão e sem cheque, nada de dinheiro, e o pouco que você tinha também estava na carteira) e se dirige à delegacia da Lapa.

Na recepção, explica ao oficial de plantão: “por favor, preciso fazer um boletim de ocorrência”. “O que aconteceu?”. Bem, você não imagina que vá contar toda a ocorrência de pé na mesa da recepção, então apenas indica: “assalto”. Como se você fosse surda ou burra, o oficial repete: “O que aconteceu?”. Pacientemente, você começa a narrar: “eu estava em um restaurante ontem à noite e fui abordada por um homem armado...” O oficial interrompe: “na Aimberê?” Diante da afirmativa, ele explica, cortês: “veja, este boletim de ocorrência já foi aberto na 23ª DP... A senhora pode abrir outro aqui, mas o IDEAL é que seja incluída no boletim que já foi feito lá”. Bem, que azar, mas de fato se o melhor a fazer é isso, você se dirige à outra delegacia.

Chega junto com dois dos três policiais de plantão, carregados de sacolas de lanchonete e copos de plástico. “Pois não?” “Parece que já abriram aqui um boletim de ocorrência sobre um assalto que ocorreu ontem em um restaurante na Aimberê...”. “Pode se sentar”. O policial se dirige até a televisão, muda de canal para sintonizar no jogo que está começando e some no interior da delegacia, seguido do outro que carregava as sacolas. Alguns minutos depois, o terceiro, que mexia no computador, também se dirige aos fundos da delegacia. Sozinha na enorme sala de espera da delegacia, você fica na companhia do Hino Nacional, pensando na sua “terra adorada”, no seu “povo heróico” na “clava forte da justiça”... O relógio marca a passagem do tempo: um minuto, dois, cinco, dez. O último policial, o mais bem-vestido, volta ao seu computador e continua o seu trabalho de digitação. O segundo se senta na cadeira em frente a ele. O terceiro, entre um arroto e outro do seu guaraná gelado, senta na sua cadeira e gasta mais alguns minutos assistindo ao jogo e fazendo comentários amigáveis para os seus colegas.

Imersa em pensamentos, você ouve o policial te chamar, mas ainda duvida de que finalmente tenha chegado o momento de ser atendida. Para não deixar dúvidas, ele bate palmas. Você se dirige até a mesa dele e informa quais foram os documentos roubados, enquanto ele digita lentamente os dados no computador e acompanha mais alguns lances do jogo de futebol. Em meio àquele deserto emocional, o outro policial finalmente se dirige a você e pergunta: “quantas pessoas estavam no restaurante?” “Ah, estava cheio... umas quarenta”. “Vixe... então vai longe essa história. Hoje passamos o dia atendendo esses casos. Se não fosse por isso, tava light...” O outro emenda: “bom, mas alguns devem ir até a delegacia da Lapa...” Esclareço: “eu fui até lá, mas eles me orientaram a vir aqui porque o boletim já tinha sido aberto”. Os três trocam olhares e um resmunga: “brincadeira, viu...”. Eu pergunto: “não precisava vir até aqui?” “Não, minha filha... boletim de ocorrência você pode abrir em qualquer delegacia. O que acontece é que um sempre chuta pro outro, pra falar português claro...”. “E vocês descobriram alguma coisa?”. O policial, sem tirar os olhos da tela do computador, estala a língua e resmunga: “esquece!”. Imprime o BO em três vias, você avisa que ele digitou o número da sua agência bancária errado mas ele afirma que não tem problema, não há necessidade de consertar.

Próxima parada: a loja da Claro, a única coisa que você consegue adiantar ainda durante o final de semana. Sendo cliente há dez anos e tendo adquirido o seu último celular (também por conta de um assalto) em setembro de 2006, você supõe que tenha alguma chance de conseguir um novo aparelho com a apresentação do BO. Ao pegar a senha na porta da loja, o atendente explica: “Se a senhora quiser pode ligar para a nossa Central e tentar negociar um aparelho...”. “Mas não posso fazer isso aqui mesmo na loja?” “Bom, poder pode, mas a senhora conseguiria condições melhores se negociasse com a nossa Central”. “Bom, como MEU CELULAR FOI ROUBADO, não tenho como ligar para a Central. E como já estou aqui, vou tentar negociar com a vendedora mesmo, obrigada.”

Cinqüenta minutos depois, o seu número é chamado. Você explica a situação para a vendedora, mostra o boletim de ocorrência. Ela confirma que você tem direito a um aparelho, afinal não está mais na carência, pode tirar por um real, dez reais ou até gratuitamente dependendo do modelo. Traz as opções, você escolhe e então ela pede: “preciso do seu RG e CPF originais”. Com um suspiro e o resto da sua paciência, você explica: “Então, justamente... como eu vinha te dizendo, fui assaltada e levaram toda a minha bolsa. Minha carteira, meu RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor, cartão do banco, talão de cheques, tudo. Inclusive, é por isso que preciso de um novo celular.” “Ah, mas a senhora não foi ao Poupatempo?” “O Poupatempo não está funcionando hoje, fui assaltada ontem às dez da noite”. “Bem, vou verificar com a gerente...”. “Olha, tenho aqui um xerox do meu RG e o documento do meu carro... isso foi tudo o que deu para salvar”. Alguns minutos depois: “infelizmente não vai ser possível... só mesmo com o original do CPF e do RG. Mas eu posso anotar num papel o número do modelo para a senhora e...” “Não se incomode, a sua anotação não vai evitar a minha dor de cabeça de ficar sem comunicação até segunda-feira e nem pegar outros cinqüenta minutos de fila para ser atendida novamente por você após ter passado o dia no Poupatempo”.

Já que não há o que fazer até a segunda-feira chegar, o jeito é pegar uma carona e ir até a casa de uma amiga para arejar a cabeça e relaxar. Mas não sem antes, no caminho, ter o carro abordado no sinal e ouvir: “cinco reais para eu não puxar o revólver...”. Que mundo cão. De um lado, os bandidos, pra quem a sua vida não tem absolutamente nenhum valor. Do outro, a lógica do mercado, eficientíssimo na hora de vender, lentíssimo na hora de resolver o seu problema; máquinas no lugar de pessoas, indiferença no lugar de humanidade. Do outro, a polícia, para quem a sua vida vale ainda menos...

Fica o gosto amargo na boca. Como diria José Simão: “hoje, só amanhã...”. Pátria amada, Brasil.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O último sonho

Estamos no seu consultório, eu sentada em minha cadeira e você na sua, que é um trono e fica em uma espécie de mezanino, bem acima do chão.

Eu: Primeiro eu queria te perguntar: você tem se sentido confortável aí no seu trono?

Você desce do mezanino e se senta na beira da minha cama.

Você: Uma pessoa me disse que eu tenho muita dificuldade de me expressar. Achei que o trono podia ajudar...
Eu: E você ficar mais desconfortável, né? Bom, vamos lá: fiz a minha lição de casa.
Você: Você sempre faz a sua lição de casa!
Eu: Sim, mas é justamente sobre isso que eu quero falar... Estou lendo o Freud e gostando muito.
Você: E o que você está achando do Freud?
Eu: Já li quatro textos: o caso Elisabeth (você fica espantada), Uma breve descrição da psicanálise, Seis lições elementares e agora estou lendo Sobre os Sonhos.

Você se deita na cama, apoiando a cabeça sobre o braço, como se fosse uma amiga.

Você: Cristina... Cristina...

Percebo que dormi. Estou coberta. Lembro do que você me disse uma vez, quando eu comentei em uma sessão que estava como sono, vontade de deitar e dormir: “Dormir na frente de alguém é sinal de muita confiança!”.

Eu: Mas até onde eu consegui contar para você?

Encontramos minha mãe, que fala alguma coisa sobre o Charcot.

Você: E o que você acha do Charcot?
Eu: Só vi o Charcot como apoio para o Freud. Meu curso é 100% orientado para o Freud. Mas minha mãe ficou tão encantada com o Charcot que achou que o Freud é que é apoio para ele.

Enquanto falamos, estou vendo um mostruário de bijuterias. Pego na mão um par de alianças de compromisso. Fico com medo de acharem na loja que estou roubando o anel que já estava comigo. Devolvo as alianças ao mostruário.

Estamos em uma sala de espera, eu você e mais uma pessoa. Estamos vendo TV. Minha mãe está sentada na cama dela, mexendo em sua agenda. Estou de pijama. Minha irmã entra na sala com um rapaz muito magro, ela também de pijama.

Por fim, você entra no quarto da minha mãe e vocês abrem a agenda e combinam um horário para um compromisso. Penso que preciso pagá-la, lembro que estou de pijama e fico me perguntando onde está o dinheiro.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Piada interna

Roupa? Jóia? Livro?

Que nada. Arranjei um presente muito mais supimpa de Dia das Mães: uma profissão bem simplinha, que ela consegue comunicar em apenas uma palavra, e um emprego que ela vai poder resumir em uma frase. Curta.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Ciclotimia


Cheio vazio cheio vazio cheio vazio madrugada e-mail móveis desejo dia de sol preguiça fotografia dor de cabeça cama fria escrita solidão homeopatia presente do bebê amiga sumiço pão caseiro divã boas novas comentários colação de grau saudade aquele livro novo é ótimo ausente correio sono msn sem gasolina no meio da rua mais dinheiro mais trabalho menos dinheiro mais trabalho sem trabalho sem tempo será que vou te conhecer tédio macarrão esperança língua portuguesa máscara internet acabou o jornal lembranças filme dublado contas depressão lâmpada queimada passado dedetização trabalho novo cadê você música sexo postura de equilíbrio trânsito um novo amigo cadê a bolinha notícia ruim euforia blog professora do colégio silêncio princípio do prazer distância promoção futuro leveza sapato furado espanhol medo cama nova luzes o sonho é a via régia para o inconsciente insônia minha planta cresce novela das oito cães sms festa de aniversário idéias vazio cheio vazio cheio vazio.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

13 de maio

Era um sábado frio, como o dia de hoje. 13 de maio. Não fosse a minha “memória ridícula”, como você carinhosamente costumava dizer, talvez a data estivesse gravada do mesmo jeito, pela ironia do seu simbolismo. Quatro anos antes, quando pela primeira vez você sentiu a sua liberdade ameaçada pela minha presença na sua vida, foi no mesmo 13 de maio que tentou partir de mim.

Diferente daquela primeira vez, essa nossa conversa durou menos de 15 minutos. Você foi direto ao ponto e, mesmo engasgada de susto (não era a nossa “melhor fase”?), tantas vezes já vivera essa cena na minha cabeça que foi mais fácil te deixar ir. Sem emoções ou energia, quis tratar de questões práticas: “quem vai ficar com a Mimi?”. Você achou que não era hora, queria pedir desculpas. Eu não queria ouvir desculpas, então pedi pra você ir embora.

Tudo o que aconteceu nas quarenta-e-oito-horas-seguintes faz parte de um quadro semi-abstrato na minha lembrança. O tempo chutou pedrinhas pela rua enquanto eu tentava juntar algumas partes de mim. Na segunda-feira, São Paulo parou; às quatro da tarde não se via mais viv’alma. Temi por você, sozinho, talvez distraído das notícias. Liguei, pedi para ficar em casa. O hábito de cuidar de você, a intimidade já não era mais minha. E todos pareciam silenciosamente se unir à minha dor: a guerra era fora e dentro de mim.

Não sei bem quando foi que o amor acabou (alguém sabe?). Nem você sabia. Às vezes achava que fazia tempo; outras, que ainda não tinha acabado. Mas, naquele sábado, alguma coisa que meus olhos tinham visto e a cabeça ainda não tinha percebido, o meu coração já sabia.

Dizem que leva metade do tempo que se passou junto. Se assim fosse, hoje eu finalmente me livraria de você. Mas não é. Você está em mim como eu estou em você, mesmo que a vida não seja mais a mesma. Já não dói, mas esquecer é impossível.

domingo, 11 de maio de 2008

Sereia

Ela me conta que nasci com uma icterícia muito forte e, por isso, ela teve alta antes de mim. Os primeiros dias de vida passei no hospital, tomando banho de luz, de olhos tapados, berrando a plenos pulmões, “sem nenhum paninho pra me confortar”. Na hora de mamar, era entrar no quentinho do colo dela e logo dormia. Por isso a minha primeira história de ninar foi a da mamãe gata e do gatinho no hospital. O gatinho miava, miava, miava, mas a mamãe gato aparecia e dizia: “a mamãe não foi embora, a mamãe está aqui e nunca vai te abandonar”.

Com cinco ou seis anos, desenhei uma menina com os cabelos cheios de laçarotes, mas sem os braços. Ela me mandou para um psicodiagnóstico. “Fique tranqüila, está tudo bem com ela”, foi o parecer da psicóloga. Mesmo confiando no veredicto, resolveu criar a “História da Velhinha Banguela”, livro infantil escrito e ilustrado por ela, em que a “Menina Sem-Braço” (esta que vos fala), o “Joãozinho Sem-Perna” (papi), a “Menina Sem-Orelha” (minha sis) e a “Velhinha Banguela” (uma mistura das duas herdeiras reais, que se recusavam a tomar sopa com pedaços: tudo tinha que ser bem batidinho no liquidificador e peneirado pra não ficar um fiapinho ou bolotinha) viviam numa casa administrada pela zelosa Polva (síntese da própria e da nossa babá), que “lavava, passava, cozinhava, encerava, ava, ava, ava” e, ao fim do dia, mal tinha forçar para assistir à novela das oito. Foi o seu jeito de mostrar pra gente que todo mundo tinha sua contribuição a dar...

Sempre alimentou a nossa imaginação com histórias fantásticas e, ao longo dos anos, se especializou em “aumentar um ponto” em cada conto que contava. Não é por mal, simplesmente não consegue refrear a sua criatividade. A surdez foi piorando com os anos e com isso o sinal de recepção ficou ainda mais sujeito a captar as informações de um jeito que é “só dela”. Foi assim que criei a expressão “randomicamente avoada”: ora a mais atenta dos ouvintes, ora a mais distraída dos mortais. A piada favorita do meu pai é pedir para a minha mãe explicar a alguém o que eu faço no trabalho (vamos dizer que não é muito fácil de contar, menos ainda de lembrar, mas ela consegue criar a cada relato uma versão mais interessante).

Pela sua total incapacidade de se lembrar do nome dos médicos e a sua total indiferença em gastar qualquer energia mental com algo que ela considera supérfluo, convencionou se referir a todos eles como “Dr. Coisorino”. Mas não se deixem enganar por essa pinta de mãe-bicho-grilo: me ensinou direitinho a passar protetor solar, evitar frituras e carregar sempre um guarda-chuva na bolsa. Com dez anos, me mandou fazer um curso de datilografia. Buzinava no meu ouvido: “tem que ler jornaaal!” e até hoje paga pra mim uma assinatura de revista semanal, com medo de eu ficar muito desconectada do mundo e da realidade. Também não deixa de me ligar pra anunciar a previsão do tempo quando sabe que vem vindo uma frente fria ou chuva forte. Quando eu ainda morava com ela, mais ou menos uma vez por mês tentava driblar a minha tendência natural à bagunça deixando um post-it na porta do meu quarto: “por favor, me arrume!”. Fechava a porta do meu banheiro pra eu perceber que por lá “parecia ter passado um filhote de São Bernardo”. Quando fui morar sozinha, me deu uma carta com instruções sobre como cozinhar feijão e algumas dicas de sobrevivência: “abriu, fechou; sujou, limpou; usou, guardou”. Infelizmente essa batalha ela não venceu, mas acabou por aceitar a minha bagunça (desde que bem longe dos olhos dela).

Sempre foi uma esteta. Não consegue olhar para um prato de frutas sem dizer: “que coisa maravilhosa! Parece um Cézanne!”. Na minha adolescência de contestação, eu a provocava dizendo: “estética, estética, estética!”. Não me conformei quando, na minha primeira ida ao Teatro Municipal, ela proibiu a minha calça jeans e me obrigou a usar uma saia. Aliás, ainda um cotoco de gente, quando voltava da escola coberta dos pés à cabeça com cola, areia e tinta guache, ela dizia: “Cris, você está limpérrima!!!” e eu revidava, ofendida: “não gosto que falem assim comigo!”. Minha adolescência chegou cedo... E dá-lhe jogo de cintura para lidar com o meu famoso “emburramento”, aquele que me fazia passar horas sem falar, sem interagir, sem reagir cada vez que eu me sentia contrariada. Ela morre de rir até hoje ao lembrar do rosto grave da professora de flauta, quando a chamou para conversar sobre esses meus “episódios”: “há alguma coisa errada com a Cristina...”.

Sempre se preocupou com a minha excessiva sensibilidade e me via no enredo mitológico da “Princesa e a Ervilha”, aquela que dormiu uma noite sobre vinte colchões, vinte lençóis, vinte cobertores, vinte travesseiros e ainda assim conseguiu sentir a pequena ervilha crua colocada pela rainha no estrado da cama (esse era um teste para detectar se a forasteira que batera no meio da madrugada no portão do castelo era mesmo uma “verdadeira princesa”). Quando criança eu era especialmente seletiva com relação a roupas (nada de babados, lacinhos, bolinhas, fitinhas, mangas bufantes, elásticos, detalhes “cheguei”) sapatos (não podiam apertar, nem ter lacinho, nem botão, nem fitinha e invariavelmente começavam a machucar o meu pé dois minutos depois que ela assinava o cheque na loja), comida (não gostava de salada, nem de legumes, nem de frutos do mar, nem de rabada, nem de língua, nem de fígado, nem de frutas, nem de bichinhos fofinhos) entre outros. Assim, ela criou em nossa fantasia a cadeia de lojas infantis “Para Meninas Enjoadas”, aquela que atenderia a todas as minhas intermináveis exigências e tornaria a vida dela um pouco menos complicada.

Vibrava junto comigo com as músicas do Balão Mágico. As suas preferidas são “É tão lindo” e “Tia Josefina”: adora cantar sobre os “bigodes de foca, nariz de tamanduá e orelhas de camelo” e sobre a tia que “dizem que é lelé da cuca, mas [..] é gente fina e companheira, bota a camisola e uma peruca, faz um baita chuca-chuca e toma mamadeira”. Aliás, em seu imaginário sempre habitaram os desenhos animados e as histórias em quadrinhos. Adora o desenho do Pica-pau barbeiro, deslizando perigosamente a lâmina sobre o rosto de Leôncio enquanto trina, esganiçado: “Fíííígaroooo!”. Quando me via em longas conversas no telefone sem-fio, dando voltas e voltas em torno do sofá, dizia que eu estava na “sala de preocupações do tio Patinhas”. Também morre de rir com o alter-ego de Luluzinha, a “Pobre menininha”. Despertador? Que nada. Quem me acordava de manhã eram as “pulgas sapateadoras”, que faziam hábeis coreografias no meu couro cabeludo até que eu conseguisse abrir os olhos e começar o dia. No auge da sua chocolatria, concebeu em sua imaginação um container caseiro que liberasse apenas um “chocolate Charge” por dia. Depois, capitulou: já podia se imaginar descontrolada, dando chutes de pijama na tal máquina às quatro da manhã.

Quando éramos crianças, ela abriu uma conta na Livraria Horizonte para comprarmos os livros que quiséssemos, a qualquer hora. É lógico que essa regalia não durou muito, pois o prejuízo foi grande. Mas ela continua sendo a minha maior fornecedora de livros. Quase sempre me esqueço de devolver e ela reclama: “os livros vão, mas nunca voltam...”, mas continua me emprestando. Não conheço ninguém que tenha uma sede de conhecimento maior do que ela. Lê jornal, revista, bula de remédio, qualquer coisa que cair na sua mão. Se interessa por física quântica, a história da Inglaterra, neurociência, Calvin e Haroldo, Doris Lessing, Guimarães Rosa, Amós Oz, García Márquez, literatura japonesa, israelense, americana, italiana, francesa, russa... Ao mesmo tempo, não tem o menor compromisso com a erudição. Escolhe muito bem o que merece ser absorvido e o que pode ser “deletado”. A soberba definitivamente não é um dos seus defeitos e o seu maravilhamento com relação à vida é inesgotável.

Essa é minha Mãe Sereia, minha referência e porto seguro. Foi o seu olhar amoroso, atento, respeitoso, generoso e compreensivo que primeiro me fez quem sou. Esse amor tão grande e ao mesmo tempo tão singelo que ela conseguiu resumir em uma canção de ninar feita para mim há tantos anos:

“Meu amor, meu amor
Eu gosto tanto de você
Eu vou ficar no seu pertinho
Meu amor, meu amor”

sábado, 10 de maio de 2008

O bom selvagem

Onde foi parar a paixão? Aquela dos olhos brilhantes, da boca seca e do coração acelerado? Será que ficou para trás, enterrada no passado junto com os nossos 18 anos?

Queria saber quando foi que nos tornamos todos tão comedidos, medrosos, arredios, secos, distantes, impenetráveis, indiferentes.

Será que as desilusões da vida nos embotaram? Será que perdemos a capacidade de simplesmente nos encantar com o outro? Será que perdemos a coragem de nos expor, de nos entregar?

Hoje todos os movimentos parecem meticulosamente calculados. Não há mais espontaneidade. Há sempre o cuidado para não assustar o outro, para não demonstrar demais. Ninguém se permite colocar em uma situação de vulnerabilidade.

Antigamente, a paixão nos dominava. Perdíamos a fome, o sono, não conseguíamos nos concentrar na escola, no trabalho. Éramos tomados de corpo inteiro, doentes, febris, como se fosse um caso de vida ou morte.

Dizíamos que a paixão era cega. A excitação crescia de forma mística, guiada pelas nossas fantasias. Entregávamo-nos às sensações: o leve arrepiar da pele ao toque, o frio-calor de bocas, línguas e salivas, o leve suor nas axilas, o rubor nas faces. Cheiro, gosto, toque, sussurro no pé do ouvido, olhos famintos.

Hoje andamos muito bem aparelhados com nossas lupas, buscando no outro as mais insignificantes imperfeições, cotejando-o com o nosso script, analisando os prós e os contras, apalpando e pondo de lado como uma fruta madura demais. Adiando eternamente o momento da verdadeira entrega, deixando-nos esmagar pelo tédio, pela falta de humor, pelo cinismo, pela monotonia.

Quando é que nos tornamos assim inatingíveis? Quando foi que penetrar a intimidade de alguém se tornou esse processo kafkaniano, repleto de pré-requisitos, guichês, carimbos, segundas-vias?

Pra onde foi o “tempo da delicadeza”? Sucumbiu ao “lirismo comedido, funcionário-público”? Onde estão as nossas “cartas de amor ridículas”?

Se isso é ser civilizado, saudável, bem-ajustado, sensato e ponderado, quero mais é voltar a ser selvagem.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Sobre a traição

Há muito tempo tenho vontade de escrever alguma coisa a respeito da traição, mas minha volta à vida solteira provocou de tal forma um processo de suspensão de todas as minhas verdades que passei a achar que certas perguntas não merecem ser respondidas hipoteticamente. Há questões que só podem ser inteiramente avaliadas e ponderadas quando vividas. Então, falar sobre traição, em última instância, implica estar em uma relação.

Mas Manélson me mandou um e-mail que eu considerei tão desaforado (o desaforo não foi de Manélson, é claro, ela só estava partilhando o tal manifesto com as amigas) que achei que estava na hora de colocar a minha voz no mundo sobre o assunto. Meus pais sempre acharam que eu devia ter feito Direito (mais uma pulga atrás da minha orelha vocacional). Ô vontade de argumentar que não acaba nunca... Enfim, senti vontade de organizar alguns pensamentos dispersos sobre o tema e achei que o texto oferecia vários ganchos para isso.

O tal texto é supostamente assinado pelo Arnaldo Jabor, mas nem vou levar isso em consideração, primeiro porque a quantidade de textos que circula pela internet e cuja autoria declarada é absolutamente fajuta é espantosa; segundo porque não pretendo fazer dessa reflexão um ataque pessoal ao autor (suposto ou real) desse texto, até porque tenho certeza de que ele representa a opinião de muitos homens e mulheres sobre o assunto.

Pra começo de conversa, é bom dizer que o texto se propõe a “ajudar as mulheres a entenderem os homens e, enfim, pararem de tentar nos mudar com métodos ineficazes” (parece que já li isso em algum lugar...).

Esse poderia ser mesmo um serviço de utilidade pública, já que os homens reais que queremos entender dificilmente se dispõem a esclarecer as nossas eternas – e mais do que justificadas – dúvidas. Além disso, dizer que tentamos mudá-los com métodos ineficazes leva a entender que há métodos eficazes para tentar modificá-los. Seria um começo bem promissor.

Infelizmente, na seqüência, e, sem fazer uso de meias-palavras, o autor desce o porrete: “não existe homem fiel” e “isso se aplica a 99,9% dos homens baianos e brasileiros”. Em seguida, diz que “a traição do homem é hormonal, efêmera. [...] Não é como a da mulher. Mulher tem que admirar para trair; ter algum envolvimento”.

Péra lá, minha gente. Se a situação realmente fosse essa, eu perderia completamente a minha fé no sexo oposto. Não vamos tapar o Sol com a peneira: todos nós estamos sujeitos a trair e a ser traídos em algum momento da vida (e vocês estão ouvindo isso da boca de alguém que nunca traiu e, verdade seja dita, nunca teve vontade de trair). Daí a defender que essa afirmação hipotética, condicional é uma verdade absoluta, há uma enorme distância. Também pode ser que a traição tenha se tornado algo banal, generalizado. Mas não concordo em torná-la um atributo essencialmente masculino e nem em aplicá-lo indiscriminadamente a todo esse contingente populacional.

Outra coisa que não pode ser afirmada de modo algum é que a traição masculina é “hormonal, efêmera” e a da mulher requer “admiração e envolvimento”. Eu não disponho de tantos recursos estatísticos para afirmar a porcentagem de homens e mulheres que se encaixam em cada categoria, mas me parece óbvio que um homem pode primeiro admirar e depois trair e se envolver e uma mulher pode ceder a uma tentação carnal, efêmera sem qualquer envolvimento. Isso, para mim, é um machismo às avessas. Os homens ainda não estão convencidos de que as mulheres também sentem desejo sexual por outros homens e podem, sim, trair sem um bom motivo que não seja o puro tesão. Não é orgulho para ninguém, mas também não dá pra fingir que não aconteça.

A próxima afirmação que merece destaque é que “a traição tem seu lado positivo. Até digo, é um mal necessário. O cara que fica [...] sem trair é infeliz no casamento, seu desempenho sexual diminui [...], ele fica mal da cabeça. Entenda de uma vez por todas: homens e mulheres são diferentes. Se quiser alguém que pense como você, vire lésbica [...] ou case com um viado enrustido que precisa de uma mulher para se enquadrar no modelo social”.

Me parece óbvio que o autor do texto quis usar o humor para defender o seu ponto de vista, mas confesso que não me diverti nem um pouco com esse parágrafo. Mais uma vez, é verdade que há casais que conseguem viver bem em um esquema de relacionamento aberto e se beneficiar do fato de terem experiências sexuais com outros parceiros. É verdade, também, que outros casais que não têm esse tipo de pacto já conseguiram superar uma dolorosa experiência de traição e usá-la em favor do relacionamento, tornando-o mais autêntico, assumindo-se como pessoas imperfeitas, abrindo-se para a imprevisibilidade da vida. É verdade, ainda, que há casais em que um trai sistematicamente e o outro é traído e, uma vez que a traição não é descoberta, isso não afeta o casamento. Todas essas afirmações são verdadeiras. Daí a afirmar que o homem que não trai é infeliz no casamento e seu desempenho sexual diminui é o fim da picada... É tentar usar os fins (infundados) para justificar os meios (torpes). Se o homem é infeliz no casamento ou não se sente satisfeito com a sua parceira sexual tem mais é que se separar. E “entendam de uma vez por todas”: ninguém “vira lésbica”. E ninguém é lésbica porque quer ter ao seu lado “alguém que pense como você”. Supor que não exista traição em relacionamentos lésbicos e que todos os motivos de tensão existentes em uma relação hétero sejam automaticamente eliminados em um relacionamento homo é de uma ignorância atroz. E nunca ouvi uma sugestão mais estapafúrdia do que casar com um “viado enrustido”. Toda a minha argumentação vai na direção da liberdade (não na sua acepção mais óbvia ou comum, como tento demonstrar mais adiante), por isso viver um casamento de fachada e não assumir a sua sexualidade é, definitivamente, um conselho de alguém que não preza essa fundamental dimensão da existência humana. (Mas lembrem-se: isso não é um ataque pessoal ao talvez-pseudo-Jabor!)

Mais adiante, nosso amigo filosofa: “Todo ser humano busca a felicidade, a realização. A mulher se realiza satisfazendo o desejo maternal, com a segurança de ter uma família estruturada e saudável, com um bom homem ao lado que a proteja e lhe dê carinho. [...] A realização pessoal dele vem de diversas formas: pode vir com o sentimento de paternidade, com uma família estruturada, etc. mas nunca vai vir se não puder acesso a outras fêmeas [...].”

Pra não soar repetitiva, retomo meus principais contra-argumentos: concordo que todo ser humano busca a felicidade, discordo de que a realização da mulher se limite à satisfação do desejo maternal, segurança, família e um bom homem. Mulher sente desejo sexual tanto quanto homem. E homem, tanto quanto mulher, também pode precisar dos itens anteriores para se realizar. Quanto a ter “acesso a outras fêmeas”, uma das principais chatices da vida adulta é constatar o fato de que escolhas implicam renúncias. Todo homem tem direito a ter acesso a quantas fêmeas quiser; basta não se comprometer com apenas uma. E o mesmo vale para as mulheres.

Vejam qual é a imagem de homem perfeito contemporâneo traçada pelo meu interlocutor: “Os homens perfeitos de hoje são aqueles bem desenvolvidos profissionalmente que traem esporadicamente (uma vez a cada dois meses, por exemplo), mas que respeitam a mulher [...].”

Se trair a cada dois meses é um exemplo de como se respeita uma mulher, quero esse homem perfeito longe de mim.

Há ainda outra máxima a respeito dos homens que as mulheres precisam conhecer: “90% dos homens não querem nada sério. Os 10% restantes estão momentaneamente cansados da vida de balada ou estão ficando com má fama por não estarem casados ou enamorados; por isso procuram casamento.”

É verdade que, para quem vive uma vida de mulher solteira, tem sido muito difícil encontrar um homem que queira levar um relacionamento a sério. Por outro lado, tenho a felicidade de contar com vários amigos que, embora obviamente não deixem de desejar sexualmente outras mulheres, vivem relações estáveis e apaixonadas com mulheres maravilhosas e definitivamente não querem abrir mão dessa vida. Se realmente há homens que procuram casamento por estarem com má fama, meu conselho para eles: não caiam nessa. Prefiro continuar sozinha e ver todas as minhas outras amigas solteiras ficarem para titia do que mal-acompanhadas. Vade-retro!

Por último, cabe lembrar a verdade ululante que nosso amigo fez questão de enfatizar em seu discurso: “O homem é capaz de te trair e de te amar ao mesmo tempo.”. Verdade inconteste. Assim como é possível amar duas mulheres (ou dois homens) ao mesmo tempo. Assim como é possível não amar sua mulher e traí-la com uma mulher que você ama, ou não amar ninguém, nem mesmo a você mesmo. O que está em jogo, para mim, não é o quanto ser fiel ou infiel é sinal de amor ou desamor, e sim o quanto a traição está ou não no campo das escolhas – e o que ela implica.

Embora não fosse a minha intenção comentar um por um cada um dos trechos do manifesto em favor da traição masculina, acabei sentindo necessidade de fazê-lo antes de partir para o que eu realmente gostaria de falar sobre traição. Vocês hão de concordar que esse e-mail dá um bom pano pra manga, paletó, colete e terno completo.

Tenho vontade de falar, primeiro, sobre uma impressão geral sobre esse tipo de argumentação. O que me impressiona é o determinismo que esse texto revela. Dizer que os homens “são assim” e que as mulheres “são assado” me parece uma generalização caricatural que ignora aquilo que é tão próprio da natureza humana: a singularidade. Aqui tenho que fazer um mea culpa: eu mesma vivo chamando a atenção para as famosas diferenças entre homens e mulheres, achando graça dessa querela insolúvel que se trava entre os de Marte e as de Vênus. E acho, mesmo, que via de regra homens e mulheres são diferentes. Acho, também, que essas diferenças dão conta de boa parte da graça da vida e dos relacionamentos. São o veneno e o remédio. Mas jamais aceitaria que me impingissem determinado comportamento sob a categórica afirmação: “ela é mulher, toda mulher é assim”. E o mesmo diria a respeito de qualquer homem.

Para além da singularidade humana, essa linha argumentativa parece ignorar uma das mais caras e inevitáveis dimensões da existência humana: a liberdade. Sem ter medo de soar repetitiva, cito Sartre, sempre ele: “o ser humano está condenado a ser livre”. Que ninguém atribua suas escolhas a determinadas características e condições pré-determinadas (por exemplo, hormônios!). Sartre também disse que cada um de nós nada mais é do que o resultado de nossas ações. Então, ninguém trai ninguém porque “é homem”, e sim porque escolheu trair.

Além disso, em seu artigo “O existencialismo é um humanismo?”, Sartre nos mostra que nenhum homem é livre se toda a humanidade também não o for, pondo por terra a definição mais tosca de liberdade que diz que “a de um acaba onde começa a do outro”. Isso não é liberdade, é demarcação de território. Liberdade é a infinita capacidade – e necessidade – de escolha que cada um de nós deve fazer a cada segundo da vida e a assunção das conseqüências que cada escolha implica. Corro o risco de simplificar demais um dos pilares mais significativos da obra de Sartre e do pensamento ocidental do século XX. Prefiro ficar por aqui e recomendar a leitura do artigo a quem desejar se aprofundar no assunto.

Vamos falar português claro: ser traído é uma merda. Ninguém deseja isso para si. Só isso já dá uma boa dica sobre se trair é ou não é legal. Ainda assim, as pessoas traem, e pelas mais diversas razões. Foi só quando ouvi da boca de uma senhora dos seus cinqüenta anos, casada, inteligente, coerente, articulada, que “é praticamente impossível pensar que alguém que viva um relacionamento estável e de longa duração não vá trair o parceiro em algum momento da vida” que a minha ficha caiu. A carne é fraca, às vezes o corpo pensa mais rápido do que a cabeça ou o princípio do prazer fala mais alto do que o da realidade. Às vezes é mais fácil acreditar que “é preferível trair minha mulher do que deixá-la”. Aliás, certamente há mulheres que pensam assim. E homens. E alguns deles (homens e mulheres) provavelmente têm razão: trairão esporadicamente (não uma vez a cada dois meses!) para suportar os momentos de crise do casamento e com isso conseguirão, em alguma medida, preservar a relação e seguir adiante.

Ainda assim, por mais que a traição – e o perdão – façam parte da vida, pra mim o que faz toda a diferença é a distância entre admitir a sua possibilidade (“todos nós estamos sujeitos a trair e ser traídos”) e afirmar a sua inexorabilidade (“todo homem é infiel”). Somos, sim, falíveis. Mas, assim como todo homem busca a felicidade, busca também a auto-superação. Que ninguém embarque em uma relação sem a convicção de que fará tudo o que está ao seu alcance para fazer deste um encontro verdadeiro, autêntico, honesto, digno, respeitoso.

E quando a vontade de trair se tornar insuportável, acho que isso deve ser tomado como um sinal de alerta e um bom pretexto para rever a relação. Às vezes o amor acaba. E só isso já é suficientemente doloroso, para quem não ama mais e para quem deixou de ser amado. Não há por que melar uma história de amor que deu certo (dar certo não é sinônimo de ser eterno) com um fim desrespeitoso por pura falta de coragem de partir ou deixar o outro ir.

Para concluir (sem nenhuma pretensão de ter esgotado o assunto), quero deixar registrado que nem tudo o que escreveu o tal defensor da traição masculina precisa ser descartado. Selecionei dois trechos do manifesto que me parecem cheios de sabedoria, e os deixo aqui como um convite à reflexão:

“O segredo é dar espaço para o homem viajar nos seus desejos (na maioria das vezes, quando ele não está sufocado pela mulher ele nem chega a trair, fica só nas paqueras, troca de olhares).”

O segredo é dar espaço para homens e mulheres vivenciarem os seus desejos. Casamento não é sinônimo de morte cerebral. Todos nós temos pensamentos íntimos, desejos secretos, fantasias que merecem ser preservadas e cultivadas no recanto da nossa privacidade. Isso sim, me parece algo fundamental para garantir a felicidade de um casal. E é também uma boa dica para os ciumentos patológicos que sufocam os seus parceiros com cobranças de uma irreal exclusividade de pensamentos e ignoram a necessidade que todo ser humano tem de, como bem disse o nosso amigo, “viajar”. Em pensamentos.

É bom lembrar que “desejo” é um conceito tão amplo e complexo quanto a “liberdade” (estou me lembrando da minha professora substituta de psicanálise perguntando para uma classe atônita: “vocês já viram desejo?” – como se perguntasse “posso considerar matéria dada?”). Por ora vale lembrar aquela famosa frasezinha que encerra uma boa dose de sabedoria: o desejo nasce da falta. Como ninguém nasceu grudado, cada um tem mais é que exercitar as suas atividades, ir atrás dos seus interesses, sair de vez em quando com os seus próprios amigos ou sozinho mesmo, viajar sozinho – por que não? – e continuar existindo como um indivíduo inteiro. Fácil falar, difícil fazer, algumas mulheres vão falar. Mas sem dúvida é algo vital não só para a saúde do relacionamento, mas para a saúde mental de qualquer pessoa.

“O que você procura pode ser impossível de achar, então, procure algo que você pode achar e seja feliz ao invés de passar a vida inteira procurando algo indefectível que você nunca vai encontrar.”

Concordo em gênero, número e grau. Como eu costumo dizer: viva os encontros que a vida lhe oferece, independente de eles parecerem certos ou errados.

I rest my case.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Em nome da Ciência - II

A equipe do Instituto Mulher Solteira de Pesquisa Aplicada aos Esportes Radicais de Compreensão da Mente Masculina decidiu empreender um novo experimento científico com o objetivo de verificar a topografia de resposta do sexo masculino a diferentes abordagens femininas. Para o experimento, foi utilizada a espécie masculina Arredius mutantis. Os principais dados obtidos por meio do experimento são brevemente relatados a seguir:

Abordagem A

Veículo: e-mail.
Tom da mensagem: amistoso.
Conteúdo da mensagem: pedido de informação com demonstração de interesse e afeto.
Tempo de demora da resposta: 2 dias, 20 horas e 30 minutos.
Tom da resposta: evasivo.
Conteúdo da resposta: fornecimento impreciso de informação, alusão a possível atividade sem data estabelecida.
Resultado final: nenhum.

Abordagem B

Veículo: e-mail.
Tom da mensagem: provocante.
Conteúdo da mensagem: ironia sobre a resposta evasiva e clara demonstração de interesse sexual.
Tempo de demora da resposta: 23 minutos.
Tom da resposta: direto.
Conteúdo da resposta: convite para atividade na mesma noite.
Resultado final: conteúdo impróprio para a audiência deste blog (alô, mamãe!).

Conclui-se, assim, que a Abordagem B aplicada à espécie Arredius mutantis apresentou resposta em tempo mais curto e com pleno alcance dos objetivos estabelecidos pela pesquisadora.


domingo, 4 de maio de 2008

Sempre ela

A vizinha reagiu com indignação quando eu disse que me sentia invisível e, pela primeira vez em muito tempo, finalmente começava a me sentir notada por um certo rapaz.

Ela tinha razão ao achar que a minha metáfora era um tanto autodepreciativa, mas pedi que ela não fosse tão literal e entendesse o que eu tentava lhe explicar: que em meio a uma vida tão ordinária e banal, finalmente alguém parecia ver em mim a riqueza interior que eu acreditava ter e tanto desejava compartilhar. Afinal, passamos a vida alimentando a fantasia de que somos especiais e desejando ardentemente que alguém de nosso agrado considere nossa “especialidade” irresistível. Ainda um pouco desconfiada, ela acabou engolindo a minha tese.

Só mais tarde, refletindo sobre a conversa, fui rir da minha santa ingenuidade e lembrar o que realmente nos torna visíveis perante os olhos masculinos: a bunda.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Hai kai

Tempo de falar.
Tempo de calar.
Tempo de ralar.