sábado, 27 de setembro de 2008

Cegueira

Foi já na primeira mirada que notou algo de diferente. Coisas que os olhos percebem antes do resto de nós.

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Sempre a se perguntar por que a falta de assimetria lhe causava repulsa. A imagem da menina com braços diminutos, dedos onde deveriam estar os cotovelos, por anos nas suas retinas, impermeável às suas vergonhas cristãs.

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Tudo lhe era alheio enquanto fitava aqueles olhos, irmãos, mas tão diferentes. Um era altivo, certeiro. O outro, baixo, retraído. Tentava concentrar-se nas palavras, mas o que ouvia eram os olhos.

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Com o tempo, acostumou-se. Não a ponto do não-notar. Passou o fascínio-repulsa das cobras, ficou a vigilância farol.

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Perguntaram-lhe como era. Não soube informar. Tudo o que sabia dela era aquilo: o divórcio dos olhos. Um olho sempre nela; o outro, no nada.

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A arrefecência dos dias. Aceitou-os. Os dois: o certo e o errado.

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Não teria sido menor o seu espanto, no dia em que finalmente percebeu. O horror. Estivera a tomar como bom o olho errado. O olho certo era o outro. O seu, morto.

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Quantas outras vezes na vida não o seria também.

domingo, 21 de setembro de 2008

Theo em quatro tempos

(Theo, sete anos, irmão de Lia, quatro meses)

I
- Cris, você já viu como funciona uma bombinha de tirar leite?
- Não, Theo, como é?
- É assim: você põe essa parte em cima do peito, assim, enfia esse cano aqui na bomba, liga ela assim no aparelho, aí a bomba faz chup-chup-chup e depois o leite sai aqui nesta parte e você coloca na mamadeira.
- Nossa, Theo, você está bem entendido no assunto, não?
- Pois é. A minha mãe agora só fala nisso...

II
(A avó pergunta a Theo se ele não está com frio)
- Ai, vó, você se preocupa demais!
- Theo, todas as vós são assim... Sabe como se chama isso?
- Neurótica?

III
(A mãe de Theo sobe para acudir Lia que acorda do sono da tarde pela quarta vez)
- Theo, seja legal com a sua mãe. Ela está muito cansada!
- Por que, tia? Ela está de TPM?

IV
(Folheio uma revista onde há uma reportagem sobre parto)
- Cris, o que é isso, uma revista de bebê?
- Não, Theo, só esta reportagem aqui é sobre bebê.
- Olha, tem uma mulher pelada!
- Pois é, tem sim.
- Eca. ODEIO ver mulher pelada...
- É mesmo?
- É sim. Morro de nojo disso (aponta para o seio da mulher) e disso (aponta para os países baixos). E disso aqui (aponta para a foto do bebê dentro do útero materno) eu tenho nojo de tudo!

domingo, 14 de setembro de 2008

A carninha do Gabriel

Trim! Trim!

(As histórias da Mãe Sereia que envolvem conversas telefônicas sempre começam com “trim-trim”. Em nome da licença poética, a Mãe Sereia ignora os toques polifônicos e apela para onomatopéias, digamos, mais clássicas. Em homenagem a ela, assim também inicio esta narrativa.)

Trim! Trim!
- Alô, comadre!
- Comadre, alerta vermelho... Estou péssima, com infecção intestinal. Será que você pode vir aqui depois do trabalho e dar uma mão com o Gabo?
Se um amigo quiser me fazer feliz, basta pedir a minha ajuda para qualquer coisa, dando a entender que sou indubitavelmente o ser humano mais indicado da face da Terra para cumprir aquela missão, quiçá o único. Pode ser arrumar um chaveiro às 23h, fazer compra de supermercado, regar plantas, cuidar do filho ou dar remédio para o cachorro doente e, sobretudo, dar apoio moral ou sentimental em um momento de crise.
Diante da nobilíssima missão de acudir a comadre e entreter o afilhado, agora com lindos um ano e três meses, enforco a yôga e disparo para a casa dela. Brinco dez simbólicos minutos com o Gabo antes de ele ter um ataque de manha – quer “escovar” os dentes sozinho (leia-se chupar a pasta de dente da escova) e não admite interferência.
Mãe que é mãe conhece seu filho. Vendo o choro sem lágrima, a comadre diagnostica: “hora de ir pra cama”. Prepara a mamadeira enquanto eu me viro nos 30 e, em seguida, põe em prática a metodologia ultra-avançada que desenvolveu para pôr para dormir o seu pequeno: coloca-o no berço, deixa a chupeta do seu lado, encaixa a mamadeira na sua mão, dá boa-noite, apaga a luz e fecha a porta. Essa minha comadre é o meu orgulho.
De volta à sala, antes de desabar no sofá, a comadre quer me alimentar. Não existe mãe-leonina que suporte receber alguém em casa sem oferecer tudo do bom e do melhor. Estão aí a minha própria mãe-sereia, minha amiga Isadora, a comadre e até minha ex-sogra que não me deixam mentir (coincidência das coincidências, as quatro fazem aniversário no mesmíssimo dia).
Vamos até a cozinha, ela abre a geladeira e, logo depois de ter dito que “nessa casa só tem pão”, retira de lá uma farta gama de tupperwares com os mais variados quitutes: arroz, feijão, seleta de legumes, verdurinhas. “Só não tem carne, Cris...”. Mas logo se lembra da “carninha do Gabriel” no congelador.
Epa. Está certo, todo mundo tem uma verdadeira predileção por comida de nenê (conheço adulto a rodo que compra papinha da Nestlé para consumo próprio), mas comer a carninha do Gabriel é sacanagem, né? “Imagina, Cris... a Neta faz um monte e congela um pouquinho em cada tupperware. Pode comer que depois ela faz mais...”.
Olho para o minúsculo tupperware, onde três diminutos pedaços de carne congelada me perguntam, inquisidores, se eu terei coragem de comê-los. Mando os escrúpulos às favas e coloco tudo no microondas. Enquanto isso, a comadre, um pouco mais refeita, vai olhar a sua correspondência no computador.
Dois minutos depois, abro o tupperware e vejo os três pedacinhos da suculenta carninha do Gabo quentinhos, macios e esperando ser espetados pelo meu garfo. No prato com arroz, feijão e legumes, despejo graciosamente a carninha e, para fazê-la render mais, raspo bem todo o molho de dentro do tupperware em cima do feijão-com-arroz.
Sento na mesa satisfeita com a perspectiva da minha refeição. Monto a “garfada perfeita” e dirijo o garfo à boca antevendo o prazer de saboreá-la. Mas algo não corresponde à minha expectativa. Ainda sem identificar exatamente o que foi que deu errado, preparo a minha segunda garfada. Enquanto mastigo, procuro descobrir o que é que está me causando um certo incômodo, um certo tremor no corpo e arrepio nos braços. Do recôndito de minha memória, vem a lembrança de um sabor que há vinte anos eu não sentia: fígado.
A essa altura, a história já merece um parêntese. Meus santos pais penaram durante toda a minha infância para me fazer comer aquilo que se sabe necessário para que um ser humano cresça saudável: frutas, verduras, legumes, grãos, peixe etc. etc. Dentre as diversas batalhas que travaram contra o meu enjoado paladar infantil, houve uma que não conseguiram vencer. Minha aversão ao bife de fígado suplantava qualquer pequena birra infantil: era o meu corpo quem o rejeitava, com terríveis ânsias de vômito. Não houve jeito: meus pais tiveram que aceitar que fígado eu não comia e pronto.
Ainda durante a minha infância, houve uma nebulosa época certamente lembrada por boa parte dos meus familiares, em que uma cena se repetia toda vez que me ofereciam um prato com carne. Antes de qualquer coisa, eu me dirigia ao adulto responsável e perguntava: “isso é carne de vaca ou de boi?”. Se o pobre adulto desavisado desconhecesse a minha idiossincrasia e caísse na besteira de me dizer que era carne de boi, não havia Cristo que me fizesse engolir o tal bife. “Só como carne de vaca”, eu explicava, assertiva, sem dar margem a negociação.
Levei anos para entender que misterioso mecanismo psíquico havia produzido em mim tal restrição: associei “fígado de boi” a qualquer carne vermelha que me oferecessem. Se fosse de vaca, era uma carne normal. Se fosse de boi, era fígado. Portanto, carne de boi não dava jogo. (Muito tempo depois, alguém me explicou que só os bois vão para o abate, já que as vacas são produtoras de leite.)
Agora nos transportamos novamente à cozinha da comadre, onde eu, vinte anos depois do meu último episódio de ânsia de vômito diante de um bife de fígado, descubro-me mais uma vez frente a frente com o famigerado petisco. De uma hora para a outra, as três isquinhas se tornaram três bifões enormes, intransponíveis.
Sacanagem maior do que comer a carninha do Gabriel seria não comê-la, depois de já ter esquentado e colocado no prato, misturada com o resto da comida. Que pecado desperdiçar a comida de uma criança!
Enquanto enfrento o segundo pedaço (dividido em muitas e muitas garfadas), reflito sobre a condição do adulto. Aquele que, depois da dureza da vida, aprende a se haver com monstros que algum dia pareceram invencíveis aos seus olhos infantis.
O meu próprio paladar é uma prova disso. Certos alimentos que quando criança eu só era capaz de ingerir a muito custo, por mera obrigação, hoje não são apenas tolerados como apreciados pelas minhas papilas gustativas. Minha mãe desacredita de me ver comendo sushi; nunca imaginou que a menina enjoada um dia apreciaria peixe cru.
Sigo confiante para o terceiro pedaço, celebrando ditos populares como “o que não mata engorda”. Eu venci o fígado! Mas subitamente um calafrio percorre o meu corpo e descubro que cantei vitória antes do tempo. Um terrível engulho se manifesta cada vez que aproximo o garfo com o bife de fígado a menos de três centímetros da boca. Resignada, mais uma vez acedo à minha fraqueza humana e despejo o resto da carninha do Gabriel no lixo.
Vou atrás da Comadre e comento: “só você mesma para me fazer comer fígado depois de vinte anos...”. Ela parece demonstrar genuína surpresa: “Era fígado??? Ai, Cris... não acredito!”.
Episódios como esse remontam a uma longa linhagem de históricos equívocos alimentares e suas vítimas. O mais famoso da minha família aconteceu quando saboreamos, na casa da minha tia, hambúrgueres de carne com algum ingrediente secreto e deveras crocante. Só o meu primo mais novo, na mais genuína manifestação da sinceridade infantil (“O rei está nu!”), recusou-se a comer o hambúrguer por suspeitar do tal elemento crocante. Minha tia então esbugalhou os olhos e gritou: “parem de comer!”. Correu para a cozinha e confirmou a sua suspeita: a empregada usara os restos de carne comprados na feira para alimentar o cachorro (cartilagens incluídas) para confeccionar os hambúrgueres.
Passado o susto, todos sobreviveram. Eu também me recompus e não sofri maiores traumas pela ingestão desavisada da carninha do Gabriel. Chegando em casa, bati um copão de leite com nescau para tentar neutralizar o gosto que ainda insistia em me visitar de tempos em tempos. No dia seguinte, a carninha do Gabriel já tinha virado história. Ou melhor, post.
Mas eu ainda tenho cá minhas dúvidas a respeito do “equívoco”. Escolada com bolinhos de espinafre, maravilhas de cenoura e souflés de chuchu, desconfio que fui vítima de mais um golpe de uma mãe-leonina zelosa. E o pior: dessa vez, nem era a minha.
Te cuida, Gabo!

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Nota sobre o esquecimento

[...]
Peço tanto a Deus
Para esquecer
Mas só de pedir
Já lembro
[...]

(Amado, Vanessa da Mata)

É preciso esquecer de se lembrar para se lembrar de esquecer.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cravinas


Faz algum tempo ganhei um vaso de flores. Não eram para mim, mas quem as ganhou achou que eu tinha feito por merecer.

Uma semana se passou, a cena se repetiu. Eu e a sombra de árvores alheias.

Eis-me com dois vasos de cravinas, eu, a mulher que matou as flores, o anti-cristo da jardinagem.

E eis que elas resistem. Ao tempo seco, à incompetência da jardineira, à falta de poesia. Não apenas resistem como se desenham no ar em graciosos arabescos.

Explico: as cravinas são particularmente sensíveis à ausência de água. (As minhas pelo menos são). Basta um dia de lapso da dona para que os caules das flores enverguem, qual as flores de história em quadrinhos. Às vezes, em um único dia particularmente seco, já lá estão as flores todas apontando para baixo, em desalento.

Rego-as com amor. Sobreviver à minha posse não é para qualquer vegetal. Elas são tenazes, convenhamos. E basta sentir o geladinho da água para que novamente os caules recuperem o vigor. Nunca, no entanto, retornam exatamente à posição original. Seja pela força da gravidade, seja pela dureza da vida, o reerguer-se sempre traz uma marca, uma curvatura, uma cicatriz.

Pode ser miopia, mas aos meus olhos elas ficam mais bonitas.

Eu, fracassada jardineira de flores, jamais deixo de colher uma metáfora que explode de madura diante dos meus olhos.