segunda-feira, 27 de abril de 2009

Hilda

Preciso fazer as sobrancelhas. Mas elas podem esperar.

A última vez que fiz as sobrancelhas foi um pouco antes do meu aniversário. Pedi a Hilda para caprichar, queria chegar aos trinta bonitona. Ela garantiu que eu não precisava me preocupar: estava na flor da idade!

Enquanto fazia o serviço – de longe a melhor do salão – me contava sobre a cachorrinha nova. Uma gracinha! Mas desconfiavam que estava grávida. Se o ultrassom confirmasse, teriam que sacrificar os filhotinhos. A cachorrinha mal completara seis meses, estava no primeiro cio e não teria chance se levasse a gravidez até o fim.

Já não me lembro se foi nesse dia ou em outro, Hilda me contou algumas passagens da sua vida. Depois de muitos anos de casamento, dois filhos, o marido a deixou para ficar com outra. Pressenti na sua fala uma solidão aguda, dessas que poderiam tê-la deixado amarga, mas que ela soube transformar em serenidade. Oxalá eu tenha a mesma sabedoria.

Em um desses dias também falou dos filhos. O menino se formou cabeleireiro e estava trabalhando no mesmo salão – que orgulho! A menina também trabalhava, estava se formando, muito bem encaminhada. Dever cumprido.

Na última quinta liguei no salão e pedi uma hora com Hilda para o sábado. Foi só então que descobri a sua morte. Teve uma dor de cabeça, foi ao médico, internou-se, entrou em coma e morreu (aneurisma). Tudo em apenas dois dias. Isso já há quase dois meses, dias depois do nosso último encontro, quando nada parecia indicar que ela estivesse de partida.

Penso na dor da família, mas para me consolar penso também que Hilda teve a melhor das mortes: aquela que não se pressente e que não causa dor nem sofrimento para quem parte.

Tenho vontade de me apresentar ao filho, dizer dos meus sentimentos por Hilda e de como ela sentia orgulho dele. Mas temo ser inconveniente. Cada um sabe da sua dor.

Lembro agora que dei de presente para uma amiga, nesse fim de semana, uma coleção de livros infantis sobre um ácaro e uma pulga. Ele, Glauber; ela, Hilda. Não havia muita razão para escolher tal presente. Acho que foi minha homenagem silenciosa a essa mulher tão delicada, tão serena, quase invisível.

Hilda se foi. Minhas sobrancelhas crescem, a despeito de sua partida. E a vida continua.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Peter Pan faz aniversário

Theo, aos oito anos:

I.
- Droga, droga, droga! A gente perdeu o cinema!
- Sério, Preto? Por quê?
- Tudo culpa desse... Moleque grande!
- Theo.............
- Que foi, mamãe? Não posso chamar o papai de moleque grande?

II.
- Tia, quer ouvir a minha banda preferida de todos os tempos e a minha música preferida de todos os tempos?
- Quero, Theo!
- Peraí que eu vou entrar no youtube...
- Tá bom.
- Aliás, peraí que eu vou te mostrar como é a dança dele no palco!
- UAU!
- Aliás, peraí que eu vou pegar a minha guitarra pra te mostrar como é o solo do Slash!
- GENIAL!
- É assim, ó: tuninuniruniruni-tuniruniruniruni, tuniruniruniruni-tuniruniruniruni... Oooooh, suitchaioma-ai!!!

III.
- Mamãe, sabe o que eu ia fazer? Eu ia te zoar, mas depois eu decidi que não!
- Ah, é?
- É! Sabe o que eu ia fazer?
- O que, Theo?
- Eu ia colocar no papel de parede do seu Ipod aquela foto sua toda “ensangrentada” do parto da Lilica! Mas depois eu decidi que não...

IV.
- Tia, a sua calcinha é branca?
- Possivelmente...
- Ué, você não olha antes de vestir???

V.
- Mamãe, posso mamar no seu peito?
- Não.
- Ah, mamãe, por favor! Deixa eu mamar que nem a Lilica! É que eu não lembro que gosto tem o seu leite...
- Nada disso, Theo... Você já mamou quando tinha idade pra isso.
- Hum... Mamãe?
- Oi, Theo.
- Já que eu não posso mamar no seu peito, mama você no meu?
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Difícil decidir se a gente quer crescer de uma vez ou continuar criança para sempre...

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Laços de família

Olha só quem está aqui! Meu primo!

Mas... Como é mesmo o nome dele?... Oh, well...

... Bom, sem dúvida que é neto de uma das irmãs da minha Vó Helô. Mas de qual delas? Da tia Heloide, da tia Heloína ou da tia Heloiny?... Será Ferrari ou será Faustini?

Ah, com certeza é neto da tia Heloiny! É ela que tem aquele monte de neto homem. Aliás, ela tem um monte de filho homem também. E agora, será que ele é filho do Flávio, do Fausto, do Fábio ou do Fernando?

Bom, salvo engano, quem tem um monte de filhos homens são o Flavio e o Fábio, apesar de que um deles tem uma menina também. Aliás, já perdi um pouco (um pouco?) o fio da árvore genealógica a partir do Fausto e do Fernando. É, realmente, para ser desse tamanho, só pode ser filho do Fábio ou do Flávio. Mas de qual deles?...

... Vejamos... Ele tem mais a cara da Adriana do que da Teco... É, deve ser filho do Fábio... Aliás, ele é a cara do Fábio! Só pode ser do Fábio, então.

Hum, como são mesmo os nomes dos filhos do Fábio? Tem a Marina e os dois meninos... Fabinho não é... Esse é do ramo da tia Heloide (nem vou queimar neurônios tentando lembrar se o Fabinho é do Ney, do Volney ou da Márcia... Ah, ele é irmão do Márcio, o meu primo que fez o José naquele antológico Natal em que me vestiram de Virgem Maria e eu abri o bocão... Márcio só pode ser filho da Márcia; Márcia é filha da tia Heloide... Não, definitivamente esse não é o Fabinho).

Rafael? Bruno? Victor? Felipe? Guilherme? Caramba, sempre confundo os nomes dos filhos do Fábio e do Flávio...

Bom, eu pelo menos já aprendi quem é a tia Heloína e quem é a tia Heloiny! Já a Feca, não sei não, hehehehehe... Opa! Lá vem ele...

- E aí, primo! Que legal te encontrar aqui! Tudo joia?
- Oi, prima! Tudo bem! Pois é, faz tempo que não nos vemos, hein? Desde o último Natal coletivo...
- Pois é, pois é... Deixa eu te apresentar para a minha amiga aqui... Bom, esse é o meu primo...
- Oi, tudo bem? Prazer! Bom, prima, deixa eu ir que meus amigos estão me esperando! Boa balada!
- Valeu, primo, pra você também!
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Ma siamo tutti famiglia!

terça-feira, 14 de abril de 2009

Odisseia

“Seu pai é um turista em minha vida”, diz a Mãe Sereia, com aquele humor resignado que o tempo lhe fez conhecer.

Eu acrescentaria que meu pai é um guia turístico em nossas vidas. É um homem de pequenas, mas consistentes obsessões temporárias – inofensivas, diga-se de passagem –: olimpíadas, eleições presidenciais, minissérie sobre Maysa, novela das oito. Não contente em devotar noites e noites à tela da tevê, a cada breve parada no “mundo de cá” ele faz questão de nos guiar por entre as sendas da sua viagem particular. Pode ser de manhã cedo, após passar algum tempo meditando sobre os caminhos das índias: “Acho que o Bahuan fez muito mal em não convidar o menino para a inauguração do restaurante”; ou após a caminhada na esteira em companhia do seu Ipod – “a Maysa cantava com absoluta afinação, é incrível”; ou, ainda, durante um almoço, às vezes de forma até autoritária: “acho impressionante como vocês se mostram alienadas em relação à tragédia da Faixa de Gaza”. Não adianta dizer a ele que, enquanto se encontra alhures, a vida também acontece aqui, entre nós. Quem estiver por perto é intimado a embarcar nessas viagens – qualquer gesto em contrário provoca um profundo sentimento de ofensa no guia.

“Sua mãe é capaz de acreditar ferreamente na mais idiossincrática das teorias que ela mesma criou”, diz meu pai, com aquela certeza inflamada que o tempo nunca lhe tira.

Em geral, fico sabendo da última “parada do sucesso” do meu pai pela Mãe Sereia, sua fiel companheira de viagem há 39 anos. Enquanto meu pai sacia a sua fome de ficção e alteridade na frente da TV, minha mãe faz a sua tapeçaria. É lazer para os fins de semana no sítio – não pode trazer para São Paulo, porque senão perde a vontade de trabalhar, só quer tecer. Faz questão de exibir o desenho que começa a se definir no retângulo de pano – “não está maravilhoso?”. Subverte todas as cores da estampa original – “imagine se eu vou usar esse rosa pálido horroroso no meu tapete...”. No meio de um ponto, opa! Uma neta canina se aboleta no seu colo, sem cerimônia. Enquanto isso ela acena para a outra com uma bolinha de lã, rindo enquanto um focinho xereta se intromete em sua sacola de costura. Não adianta contar à Mãe Sereia uma história com começo, meio e fim, esperando que ela siga o seu fio narrativo: é uma editora nata e produz uma nova versão dos fatos em simultaneidade ao relato. Além disso, tem teorias para absolutamente tudo – de plantas a unha encravada (nisso concordo com meu pai).

Meu pai e minha mãe. Ulisses e Penélope. Tenho um pouco de cada um deles. Enquanto Ulisses viaja o mundo pela tela da TV, buscando o caminho de volta a si mesmo, Penélope, serena, tece os fios dos nossos afetos.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Corpo

- Não me lembro de você, anunciou altiva, espremendo das palavras o seu salvoconduto.

- Eu lembro de você. E os olhos confirmaram.

Tarde demais. Já era duas.

De fora, a bala na boca pateticamente escancarada, a recusar pipocas. Céus, precisava ter aberto o bocão? Sentiu que desfaleceria se a linguagem verbal não viesse silenciar o corpo.

Mas ser corpo é o princípio primeiro que a todo custo se tenta ocultar. As mãos se guiaram sozinhas noite adentro.