Há quem defenda o novo acordo ortográfico com unhas e dentes. Esse tipo de convicção intelectual sempre me causou inveja. Estou mais para aqueles que em um primeiro momento viram o acordo com desconfiança e, mais tarde, por força do ofício e/ou compromisso com a educação linguística, acabaram entendendo a nobreza da causa e perdoando as imperfeições e incoerências da proposta, ou simplesmente aprendendo a pôr o hífen no seu devido lugar. A partir de 1º de janeiro de 2009, passei a escrever “frequência” sem trema, “egoico” sem acento agudo e “autoescola” sem hífen (o pobre do Word insiste em dizer que estou errada, mais por fora do que surdo em bingo). Em uma noite de fúria, após assistir a uma entrevista de Ferreira Gullar no Programa do Jô em que eles atacavam o novo acordo com os pseudoargumentos linguísticos mais equivocados da história da televisão, escrevi um e-mail gigante à produção do programa, apontando, com muita educação e paciência, todos os sofismas e falácias embutidos no discurso dos caros colegas. Ganhei uma resposta automática com um beijo do gordo e, para fazer jus às horas gastas diante do computador, reencaminhei o e-mail aos amigos, com a esperança de desfazer alguns equívocos sobre o assunto que corriam a boca miúda.
Graças a esse e-mail, conheci o outro extremo do espectro dos amores ortográficos: os radicais da turma do contrário. Cheguei a trocar mensagens durante meses com o irmão de uma amiga, a quem ela havia repassado o meu e-mail, reunindo argumentos, traçando paralelos com outras iniciativas e indicando artigos de pessoas mais gabaritadas do que eu e que defendem a importância da proposta. A minha própria amiga, possivelmente influenciada pelo irmão (que acabou me vencendo pelo cansaço e se considerando vitorioso na nossa querela), chegou a “descorrigir” as minhas atualizações ortográficas em um projeto que ela pretendia inscrever em um edital, depois de pedir que eu o lesse, comentasse e fizesse sugestões. Eu ainda acho que há causas mais nobres do que a ortografia para inspirar atos de desobediência civil, mas cada um sabe o que faz o seu coração bater mais forte...
Entre os apocalípticos e os integrados, o pessoal do meião. Manélson, por exemplo: menos preocupada com as implicações teóricas e mais interessada nas consequências práticas, ainda não havia conseguido decorar as novas regras, mas temia cometer alguma gafe ortográfica. É claro que Manélson aproveitou o nosso jantar de fim de ano, em restaurante japonês moderninho, com música instrumental, luz de velas e saquê, para aprender o beabá do novo acordo. Quem visse de longe a cena poderia até imaginar que abríamos nossos corações a respeito de dilemas amorosos, filosóficos ou existenciais (é claro que passamos por essa etapa), mas se chegasse mais perto da mesa descobriria o nosso segredo:
- Mana, até agora não entendi nada! “Ideia” não tem mais acento por quê?
- Calma, Mana, é facinho. Vamos lá: você lembra o que é ditongo?
- Hum, vagamente...
- Há dois tipos de encontro vocálico, ou seja, de vogais pronunciadas em sequência: o ditongo e o hiato.
- Tá.
- O ditongo é quando o encontro vocálico acontece em uma mesma sílaba, tipo em “ideia”. Repete comigo: i-dei-a.
- I-dei-a.
- Viu que o “ei” ficou junto, na mesma sílaba? Ditongo. Se fosse “saída”, seria um hiato.
- Sa-í-da. Aham.
- O “ei” em “ideia” é um ditongo aberto. Olha a minha boca: i-dei-a. Joi-a. He-roi-co. Se fosse “meia” ou “moita”, seria um ditongo fechado. Lembra do que é paroxítona?
- Hum, vagamente...
- É a palavra que tem a penúltima sílaba tônica. Repete comigo: i-dei-a.
- I-dei-a.
- Então, a nova regra é a seguinte: todos os ditongos abertos em paroxítonas deixaram de ser acentuados... Mas só os ditongos abertos, e só em paroxítonas. É por isso que “heroico" perdeu o acento, mas “herói” não.
- Caramba, como é que eu vou lembrar disso?
- Faz o seguinte: pensa numas palavras-chave, que você pode ter como parâmetro. Se pintar a dúvida, você associa com uma dessas palavras e segue a mesma regra. Eu fiz assim.
- Hum, legal!
- Agora vamos aos acentos diferenciais...
No dia seguinte, o último de 2009, a ruiva anunciava à comunidade tuitense:
"Vou fechar o ano entendendo o novo acordo ortográfico graças à amiga Manelson que infelizmente não tuíta. Ganhei aula regada a sakê".
Na sequência, me mandou o tuíte e um complemento:
“Adorei nosso jantar, achei ótima ideia, tipo uma joia, muito mais útil que uma panaceia. Sempre ajuda para o autoconhecimento e evita que nos tornemos antissociais. Um voo livre de delícias e bom papo. É legal quando duas pessoas que se gostam tanto se veem e creem em coisas parecidas.”
Para não ficar para trás, dei o troco na mesma moeda:
“Mesmo não morando na Pompeia, você nunca boia na conversa; é daquelas pessoas que leem pensamentos, além de ser uma fera da auto-observação. Se eu fosse um aviador, você sem dúvida seria meu copiloto. Jantar com você é bom até numa baiuca! E tenho dito!”
É! Cada um sabe o que faz seu coração bater mais forte...
---------------------------------------
Dedico esse post ao meu pai, cujo coração palpita mesmo é pela dita “norma culta”, para tristeza da filha militante da variedade e tolerância linguística. Feliz aniversário, Papi! Que as nossas paralelas continuem sempre se encontrando no infinito...
Graças a esse e-mail, conheci o outro extremo do espectro dos amores ortográficos: os radicais da turma do contrário. Cheguei a trocar mensagens durante meses com o irmão de uma amiga, a quem ela havia repassado o meu e-mail, reunindo argumentos, traçando paralelos com outras iniciativas e indicando artigos de pessoas mais gabaritadas do que eu e que defendem a importância da proposta. A minha própria amiga, possivelmente influenciada pelo irmão (que acabou me vencendo pelo cansaço e se considerando vitorioso na nossa querela), chegou a “descorrigir” as minhas atualizações ortográficas em um projeto que ela pretendia inscrever em um edital, depois de pedir que eu o lesse, comentasse e fizesse sugestões. Eu ainda acho que há causas mais nobres do que a ortografia para inspirar atos de desobediência civil, mas cada um sabe o que faz o seu coração bater mais forte...
Entre os apocalípticos e os integrados, o pessoal do meião. Manélson, por exemplo: menos preocupada com as implicações teóricas e mais interessada nas consequências práticas, ainda não havia conseguido decorar as novas regras, mas temia cometer alguma gafe ortográfica. É claro que Manélson aproveitou o nosso jantar de fim de ano, em restaurante japonês moderninho, com música instrumental, luz de velas e saquê, para aprender o beabá do novo acordo. Quem visse de longe a cena poderia até imaginar que abríamos nossos corações a respeito de dilemas amorosos, filosóficos ou existenciais (é claro que passamos por essa etapa), mas se chegasse mais perto da mesa descobriria o nosso segredo:
- Mana, até agora não entendi nada! “Ideia” não tem mais acento por quê?
- Calma, Mana, é facinho. Vamos lá: você lembra o que é ditongo?
- Hum, vagamente...
- Há dois tipos de encontro vocálico, ou seja, de vogais pronunciadas em sequência: o ditongo e o hiato.
- Tá.
- O ditongo é quando o encontro vocálico acontece em uma mesma sílaba, tipo em “ideia”. Repete comigo: i-dei-a.
- I-dei-a.
- Viu que o “ei” ficou junto, na mesma sílaba? Ditongo. Se fosse “saída”, seria um hiato.
- Sa-í-da. Aham.
- O “ei” em “ideia” é um ditongo aberto. Olha a minha boca: i-dei-a. Joi-a. He-roi-co. Se fosse “meia” ou “moita”, seria um ditongo fechado. Lembra do que é paroxítona?
- Hum, vagamente...
- É a palavra que tem a penúltima sílaba tônica. Repete comigo: i-dei-a.
- I-dei-a.
- Então, a nova regra é a seguinte: todos os ditongos abertos em paroxítonas deixaram de ser acentuados... Mas só os ditongos abertos, e só em paroxítonas. É por isso que “heroico" perdeu o acento, mas “herói” não.
- Caramba, como é que eu vou lembrar disso?
- Faz o seguinte: pensa numas palavras-chave, que você pode ter como parâmetro. Se pintar a dúvida, você associa com uma dessas palavras e segue a mesma regra. Eu fiz assim.
- Hum, legal!
- Agora vamos aos acentos diferenciais...
No dia seguinte, o último de 2009, a ruiva anunciava à comunidade tuitense:
"Vou fechar o ano entendendo o novo acordo ortográfico graças à amiga Manelson que infelizmente não tuíta. Ganhei aula regada a sakê".
Na sequência, me mandou o tuíte e um complemento:
“Adorei nosso jantar, achei ótima ideia, tipo uma joia, muito mais útil que uma panaceia. Sempre ajuda para o autoconhecimento e evita que nos tornemos antissociais. Um voo livre de delícias e bom papo. É legal quando duas pessoas que se gostam tanto se veem e creem em coisas parecidas.”
Para não ficar para trás, dei o troco na mesma moeda:
“Mesmo não morando na Pompeia, você nunca boia na conversa; é daquelas pessoas que leem pensamentos, além de ser uma fera da auto-observação. Se eu fosse um aviador, você sem dúvida seria meu copiloto. Jantar com você é bom até numa baiuca! E tenho dito!”
É! Cada um sabe o que faz seu coração bater mais forte...
---------------------------------------
Dedico esse post ao meu pai, cujo coração palpita mesmo é pela dita “norma culta”, para tristeza da filha militante da variedade e tolerância linguística. Feliz aniversário, Papi! Que as nossas paralelas continuem sempre se encontrando no infinito...
6 comentários:
Te achei por aí. Aderi. Beijos.
Que bonito! Me faltou tomar um sake entre amigas esse fim de ano. ;-) Beijão. Feliz ano novo!
Amei!
Eu acho o acordo uma perda de tempo, mas não fico discutindo não. Tento aprender e bola pra frente, que a língua é viva e as regras mudam mesmo!
Saudades!! beijo
Puxa vida, nunca tinha pensado nas regras desse jeito. Com certeza fica muito mais fácil!
Ih, agora entendi porque o corretor do celular insiste em corrigir o meu idÉia. E eu crente que estava abafando o dito cujo. É...preciso revisar a minha ortografia desde o acordo.
Texto ótimo. Apesar de ter finalizado o blog, espero que, de alguma forma, você continue escrevendo.
Postar um comentário