sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Metáforas vegetais

Durante algum tempo ela floresceu. É verdade que os botões surgiam de forma intermitente e, ao lado da cravina rosa, suas pétalas brancas sempre pareciam mais tímidas. Mas o inverno chegou e foi embora, a primavera chegou e ela continuou de pé.

Um dia, sem aviso prévio, começou a morrer. A mulher mudou o vaso de lugar. “Talvez o sol direto não faça bem”, pensou. Não adiantou. Definhava. “Será que falta sol e as raízes estão mofando?”. Tentou regar mais, regar menos, podou as folhas mortas, mudou o vaso de lugar mais duas ou três vezes. Por fim, admitiu sua derrota.

Ao arrancar do vaso os últimos pedaços de raiz sem vida, algo a impediu de se desfazer dele. Deixou-o assim, vazio, sobre a mesinha da sala de estar. E, sem que ninguém soubesse, sorrateiramente passou a regar o vaso vazio todas as noites.

Não foi preciso muito tempo para os primeiros brotinhos verdes surgirem na superfície da terra. Havia ainda vida no vaso! Pequenas pontinhas que, a princípio, pareceram à mulher diminutos trevinhos da sorte. Seriam parasitas de cravinas? Predadores naturais de flores de apartamento? Mas o tempo se encarregou de provar que se tratava de legítimos ramos de cravinas – aqueles que nascem e crescem desordenados, marcados pela dureza da vida, formando bonitos arabescos no ar. De dia procuram o sol como pequenos muçulmanos em saudação a Meca; à noite, assumem formas arredondadas de cogumelos-anões.

A cravina voltou à vida. Nunca morreu, afinal. Precisava apenas do seu próprio tempo, de amor e de alguém que continuasse acreditando nela.

***

Ah, sim! Continuo falando de plantas. E recomendo a jardinagem como atividade regular e sistemática a todo aspirante a escritor.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Física sentimental

Quanto espaço um homem é capaz de ocupar no pensamento de uma mulher?

domingo, 19 de outubro de 2008

O estranho

Essa vida já é outra. Já é outra.
Por mais que eu me lembre. Que eu me lembre.
Seus contornos familiares tentam me confundir. Mas basta eu esfregar os olhos e mirar de novo para concluir: não é mais você. Não sou mais eu. Não somos nós.
E é preciso lembrar, por mais que possa doer por alguns segundos: tudo está bem.
Tudo continuará bem.

Votos

Coração quente, cabeça leve, pés no chão e braços em ação.
Felicidade, sempre.
E muitos passarinhos!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Simples

Ele disse a ela que não sabia.
E que, se não sabia, provavelmente não a amava o suficiente.
Portanto, não era justo prendê-la.
E por isso estava indo embora.

Estou há tanto tempo longe do amor que já não sei mais se as coisas são complicadas demais ou simples demais.

Quem sabe de alguma coisa?
Amar o suficiente para quê?
O que é amar o suficiente?
O que é amar?
O que é ser justo?
O que é prisão e o que é liberdade?

No fim das contas, me parece que tudo se resume a isso: querer ficar ou ir embora. Nada mais.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Estilhaços

Cansada de ser julgada pela essência, decidiu: mostraria ao mundo que à frente daquele cérebro havia um rostinho bonito. E peitos e bunda e lábios sensuais e odores e olhos melindrosos e recônditos e your-waist-is-just-right, you know?

Isso depois. Antes o convite.
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O pretexto foi a língua. Dela. Dele. Só em línguas pensava.

O sangue à face: era um corpo. A carne e o interdito e a carne. Por 72 horas a sofreguidão de ser carne. Contornos que os olhos dele criaram.
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Na segunda-feira, já invisível novamente. Carne por 72 horas e um olhar.