segunda-feira, 30 de março de 2009

Lost in translation

- Você por aqui?
- Você sumiu. Ocupada?
- Não. Esperei você me ligar.
- Estou aqui.
- Agora já sou uma mulher de trinta.
- É verdade. Quando foi mesmo?
- Mês passado, dia dezoito. Agora a crise passou.
- Minha sobrinha nasceu essa noite. Comprei uma camiseta escrito “eu amo meu titio”.
- Sua irmã está bem?
- Passei no vestibular para fisioterapia, mas não tenho dinheiro para pagar a faculdade. Perdi a inscrição.
- Sinto muito. Minhas aulas de psicanálise recomeçaram.
- Minha mãe se ofereceu para pagar, mas não aceitei. Ela é comissionária.
- São tempos difíceis. Estou fazendo aula de salsa.
- Tá brincando? Adoro salsa! Quantas aulas você já fez?
- Umas quatro ou cinco. Não entendo esses casais que não aceitam dançar com outros parceiros. Que ilusão achar que o amor vai durar a vida inteira!
- Em 99 passei no curso de engenharia de alimentos da Mauá, mas a mensalidade era mil reais. Essa pelo menos é 300 e pouco.
- Estou trabalhando muito, estou apaixonada pelo trabalho. Tenho me sentido mais feliz trabalhando do que quando não trabalho. Isso me preocupa um pouco.
- Eu queria fazer nutrição. Depois pensei melhor e resolvi prestar fisioterapia.
- Parece que o trabalho tem trazido um sentido para a vida que eu não tenho encontrado em outras coisas.
- Ainda não arranjei emprego.
- Tenho sentido muita solidão.
- Está tarde. Tenho que ir. Vê se não some, hein.
- Preciso de uma mão para segurar na minha no domingo à noite.
- Boa semana.
- Tchau.
- Tchau.

domingo, 29 de março de 2009

A traição das imagens

("A traição das imagens" - René Magritte)
Resolvi sacudir o esqueleto em uma aula de salsa. Um pouco traumatizada desde que sofri um assalto a mão armada no ano passado, comento com minha amiga o quanto a escola de dança me parece desorganizada e vulnerável. “Se eu fosse um ladrão, entraria em uma dessas salas e faria uma rapa nas bolsas”, comento.

As neuroses urbanas nossas de cada dia ficam de lado enquanto treinamos o nosso cross simples e com giro, rimos dos mocinhos desajeitados e perfumados que sofrem para aprender os novos passos, driblamos a empáfia dos vovôs dançarinos que insistem em apontar algum defeito no nosso suingue, aprendemos a ser conduzidas e não tentar adivinhar os passos do cavalheiro antes do tempo.

Ao fim da aula, encontro vazio o gancho onde deixara pendurada a minha bolsa. Congelo por dentro, chocada: que boca, meu Deus! Esse poder de predição aplicado à megassena faria um estrago. Mas no momento só penso mesmo no transtorno de refazer todos os documentos que, menos de um ano atrás, me fizeram percorrer todo o circuito banco-poupa-tempo-cartório-eleitoral-loja-da-claro, além daqueles que eu ainda não tinha naquela época, como o cartão de ponto e o cartão da catraca de entrada para o trabalho. E a chave do carro? No primeiro assalto me levaram uma, e agora, sem a outra, teria que ir até a concessionária para fazer uma nova cópia.

Enquanto tento me consolar pensando que pelo menos dessa vez fui poupada do trauma de ver apontada em minha direção uma arma de fogo, conto a notícia para Lóris. Checamos duas vezes o banheiro e a sala de aula antes de voar até a recepção. Lá, minha solidária amiga pergunta, com um fio de esperança na voz, se alguém por acaso deixou uma bolsa sem dono para identificação. Diante da negativa da recepcionista, damos a má notícia. Ela procura imediatamente o dono da escola. Pedem que eu descreva a bolsa; faço-o em minúcias: é preta, de tecido, com delicada estampa de fios brancos bem fininhos, alça de couro cor de ouro velho, com fivelas... Nem comento que acabei de ganhá-la de aniversário de Manélson e que, além de linda, tem enorme valor afetivo para mim.

Aproveito para dizer à recepcionista e ao dono da escola que, para além do meu pequeno drama pessoal, gostaria de aproveitar a oportunidade para sugerir que melhorem a segurança. Comento a ridícula coincidência do meu comentário sobre o assunto pouco antes da aula. Eles afirmam que jamais tiveram problemas como esse, que não sabem explicar como pode ter acontecido, que não notaram nenhum desconhecido dentro da escola naquela noite. Afirmo, um tanto resignada, que certamente o responsável pelo furto é alguém conhecido. A recepcionista volta comigo até a sala, mostro a ela que a bolsa não está no gancho em que a pendurei e em nenhum outro.

Voltamos para a entrada da escola. Comento com Lóris que é melhor verificar se o meu carro está estacionado onde o deixei; vai que o ladrão já tivesse me seguido desde a chegada e, de posse da minha bolsa, tenha levado o carro junto. A recepcionista e o dono da escola comentam sobre o incidente com o vigia e também com os professores de salsa. Todos repetem os mesmos comentários: isso nunca aconteceu antes, não viram nenhum desconhecido na escola naquele dia, estão sempre de olho em quem entra e quem sai de cada sala... Mais uma vez insisto na minha tese: não se pode confiar em ninguém, certamente um dos alunos aproveitou-se da desorganização da escola para partir levando a bolsa impunemente. Lóris balança a cabeça para cima e para baixo, em concordância. Eles pedem que eu descreva a bolsa; faço-o mais uma vez: preta, de tecido, detalhes em branco, alças de couro...

Antes que eu vá até o meu carro, o professor sugere uma última olhada na escola. Talvez o ladrão tenha pego apenas o que lhe interessava e descartou a bolsa e parte do seu conteúdo em algum lugar próximo. Ele me acompanha novamente até a sala e, no caminho, comenta sobre o furto de seu carro no fim do ano passado, com um prejuízo de aproximadamente 7 mil reais. Penso que o ladrão não levou nada de valor com minha bolsa, mas me deixou uma enorme dor de cabeça para refazer todos os documentos que eu carregava nela.

Entramos na sala discretamente para não atrapalhar a aula em andamento. Mais uma vez aponto para os ganchos na parede e afirmo, com convicção: “veja, minha bolsa estava exatamente aqui”.

Para dirimir qualquer dúvida, repouso as mãos em todas as bolsas penduradas, uma a uma, confirmando: “não é essa, não é essa, não é essa, não é es...”.

Durante cerca de cinco segundos, meus olhos e meu cérebro tentam chegar a um acordo. Diz meu cérebro: “veja, nenhuma dessas é a minha bolsa”. Meus olhos comentam: “Puxa, mas esta bem que se parece com aquela de couro marrom que minha mãe me deu de Natal...”. O cérebro devolve: “sim, mas não foi com essa bolsa que eu vim para a aula de salsa”. Os olhos: “amigo, se eu vim com essa bolsa ou não eu não sei, mas que essa é bolsa é minha, isso é...”.

Nos quinze segundos seguintes, em pânico, procuro as palavras certas para anunciar a descoberta ao meu professor. Seria mais digno fazer-me de desentendida, voltar para a casa a pé e esperar que me ligassem, no dia seguinte, contando que a bolsa reaparecera. Mas como eu não poderia tirá-la do gancho e jogá-la no meio do caminho em algum lugar que confirmasse o meu álibi, fatalmente a verdade viria à tona.

Não há o que fazer a não ser assumir o vexame e, de orelhas baixas, pedir sinceras desculpas. Na sequência, voltar para casa e me enfiar embaixo dos lençóis por pelo menos sete dias.
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Será que uma caixa de bombons da Kopenhagen é suficiente para convencê-los de que sou uma pessoa relativamente normal e inofensiva à sociedade?
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Bom, não se pode ter tudo. Se autorizarem novamente a minha entrada na academia, já estou no lucro.

quarta-feira, 25 de março de 2009

Vocação precoce

- Mamãe?
- Fala, filhinha...
- O que que é tesão?
- ... Hein?
- Tesão, mamãe.
- Ahn, sim... Tesão...
- O que que quer dizer?
- ... Tesão? Eh, bem, ahn... Gasp... Tesão é... Bom... É quando a gente... Quando a gente sente vontade de ficar, assim... bem... Bem pertinho de alguém... Entendeu, meu amor?
- Mamãe...
- Oi, meu bem.
- Tesão não é nada disso. Eu já olhei no dicionário.

Vinte anos depois, virou editora de livros didáticos e aspirante a psicanalista.

quarta-feira, 11 de março de 2009

Terra de cego

Na primeira semana, repassaram adiante o zombeteiro apelido de advogado jr. “Com esse jeito engomadinho, não deve ter um pingo de senso de humor”.

Na segunda semana, riram das suas três rugas de preocupação diante do computador. “Ele deve estar zelando pela paz mundial!”

Na terceira semana, compararam seu olhar vidrado ao de um pug do Google Imagens. “E não é que parece mesmo?”

Na quarta, começaram a reparar nos seus bíceps durante a troca do galão de água. E que bunda... Essa rendeu um extintor de incêndio + uma perereca do Google Imagens, devidamente colados e disseminados pelo e-mail institucional.

Na quinta semana, perceberam que ele tinha um belo sorriso. Aliás, com o sorriso as três rugas de preocupação sumiam e ele ficava bem gatinho...

Na sexta semana, descobriram que ele era cinéfilo. E super gracinha. E dava parabéns aos aniversariantes do mês, mesmo para aqueles com quem nunca tinha trocado uma palavra. Ai, ai...

Na sétima, constataram que além do doutorado, ele também tinha feito teatro. (Dá pra pensar na vida sem Orkut?)

Na oitava, todas já suspiravam ante a sua passagem e os e-mails e bilhetes colegiais circulavam sem intervalo. “Você viu que fofo ele vindo na minha mesa falar sobre o Oscar? Puxe assunto sobre cinema com ele pra você ver como é uma gracinha.”

Na nona semana, os boatos começaram a circular. Será que o andar perderia seu primeiro espécime masculino capaz de amansar até mesmo a grande Medusa?

Na décima, ele anunciou que sairia. Arranjara colocação melhor. Mas a convivência tinha sido intensa e inesquecível! A equipe de DA veio abaixo.

Na décima primeira semana, gentilmente convidou suas viúvas para um almoço de despedida. Todas queriam sentar ao seu lado. Ninguém ficou sem um beijo, um abraço e a promessa de manter contato.

Na décima segunda, já não se via uma boca com batom, um rosto com blush, um olhar com rímel, um colo com decote. Pra quê? Ele se fora.