terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Acerto de contas

Em 2008, uma coisa maravilhosa aconteceu: descobri o que eu quero ser quando crescer. O melhor de tudo é que eu já cresci e já sou o que eu quero ser. Não é fantástico?

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2008 também foi o ano da maior conquista amorosa da minha vida. Ela tem 1,79m, olhos azuis, cabelos claros e é dada a infinitos (e irritantes) questionamentos existenciais, mas também tem senso de humor e sabe se divertir como ninguém. Não descarto a possibilidade de ter outros relacionamentos paralelos, mas com certeza essa aí eu não largo mais.

***

Sabem qual é a diferença entre ousadia e atrevimento? Segundo me disseram uma vez, quando você arrisca alguma coisa, isso significa ser ousado. Se não tem nada a perder, não passa de um atrevido. Agora, será que é possível não ter nada a perder? E, por outro lado, não há sempre algo a se ganhar? Pelo sim, pelo não, entre ousada ou atrevida prefiro me considerar, nas palavras de uma amiga querida, uma intrépida.

***

Resolvi comprar um vestido vermelho para que o ano novo não tivesse dúvidas sobre o que eu espero dele. Ao chegar ao provador, triste constatação: o vestido era curto demais. Oh, God... São os meus 30 anos me esperando logo ali, depois da esquina...
Espero que o ano novo saiba ler nas entrelinhas do meu novo vestido branco e azul.

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No final de 2007 eu tinha mais ilusões. No final de 2008, descubro que a lucidez da vida também dá barato. Feliz 2009!

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Tradições natalinas


Eu acredito no Natal. Para mim, ele nunca deixou de ter a magia e a felicidade simples da minha infância. Não é preciso muita coisa: família reunida, comida farta, música, presentes escolhidos com amor. Pensando bem, é um bocado de coisas!
Um dos rituais que mais aqueciam o meu coração naquele tempo era montar a árvore. Tirar um por um os enfeites da caixa; distribuí-los simetricamente ao longo dos ramos, deixando os especiais para o topo; enrolar as luzinhas brancas e coloridas e acendê-las sempre que uma visita chegava em casa; salpicar pedacinhos de algodão, nosso simulacro de neve possível no Natal dos trópicos. Também havia os enfeites de porta, o presépio, as velas coloridas dentro da tigela com água. A casa inteira se transformava!
Nos tempos da minha bisa, Natal tinha até Papai Noel. Salvo engano, ele era um lutador de boxe aposentado. Convencia bem, até. Eu não me lembro de acreditar em Papai Noel, mas me lembro de achar bacana ter aquele senhor barbudo no meio da sala, distribuindo presentes para os bisnetos que aumentavam a cada ano.
Minha tia, o coração artístico da família, sempre inventava alguma performance. Aliás, reza a lenda que em um dos meus primeiros natais, escalada para representar Maria no nascimento de Jesus, chorei copiosamente... (acho eu que me senti meio esquisita por já ter um filho e ser esposa do meu primo de terceiro grau, que representava José – eu ainda tinha tanto para viver!). Também fizemos jogral, paródia, números humorísticos...
Música nunca faltou. E sempre ficou por conta da minha tia também a escolha do repertório – cuidadosamente registrado em um programa a ser distribuído para a família. Mas depois das canções do programa, sempre pedíamos para ela tocar todas as cações natalinas de que nos lembrávamos; e depois delas, era de praxe pedir pelo menos um Beatles, só para não perder a tradição. E assim continua sendo, anos após ano.
Foi só recentemente que eu descobri que nem todas as famílias cantam no Natal. Contava para uma amiga sobre um telefonema inesperado que recebi bem na hora em que cantávamos “Pinheiros! Que alegria...” e ela, rindo, achou que se tratava de uma força de expressão. Não sossegou até me pôr ao telefone cantando a música para o seu marido, e tiveram os dois um interminável ataque de riso. Ora, azar de quem não canta; a cantoria é um dos pontos altíssimos do meu Natal.
Quando eu era criança, o Natal começava muito antes do dia 24, mais ou menos quando chegavam as férias escolares. Era o tempo de contar a mesada, dividir por cinco (lá em casa éramos seis) e começar a planejar as compras natalinas. Quando ainda havia Mappin, era lá que eu resolvia a maior parte do problema. Depois, ainda nos meus tempos de João Cachoeira, eram três ou quatro excursões até que eu me sentisse satisfeita com os presentes adquiridos. Hoje em dia o remédio é me enfiar no shopping lotado na véspera do Natal... Mas, ainda assim, acredito no Natal.
Outra tradição familiar, perpetuada pela minha avó e depois por mim e pelas primas, são as bolachinhas de milão, receita tradicional de biscoitinhos amanteigados que também são a cara do nosso Natal. Todo ano a avó faz um quilo de bolachinhas e jura que foi a última vez...
Lá pelos tempos do segundo colegial, querendo juntar dinheiro com uma amiga, resolvemos transformar as bolachinhas em um empreendimento comercial. Tudo bem que os ingredientes, equipamentos e instalações eram fornecidos pelos meus pais – que, junto com os pais dela, eram nossos principais compradores. Chegamos a tentar vender os biscoitinhos na rua, mas eles não tinham muito apelo. Em compensação, resolveram o problema em dois ou três amigos secretos do trabalho dos nossos pais (jeito simpático de presentear a todos sem gastar muito dinheiro). E houve uma encomenda história para um bazar – varamos a madrugada assando as bolachinhas, que quase se perderam por causa de um ovo de pata que desapercebidamente incluímos na massa – que nos rendeu a nossa maior receita! Mesmo não tendo vendido todos os biscoitos que deixamos em consignação, a família que organizou o bazar gostou tanto deles que comprou todos os saquinhos que haviam sobrado.
Nos natais seguintes, continuamos fazendo biscoitos, dessa vez para presentear amigos e familiares (mais os da minha amiga, porque minha avó continuou fornecendo as suas bolachas para a nossa família – e não tem jeito, as bolachas da minha avó têm um sabor inimitável). Tive a idéia de comprar um pote de vidro e dar os biscoitinhos de presente para a minha então sogra; foi um sucesso absoluto. Depois dela, mais três sogras receberam o pote com os famosos biscoitinhos de milão, que viajaram o país: foram para Piracicaba, São Gonçalo, Brasília, Governador Valadares e Coronel Fabriciano.
Em tempos de Mulher Solteira, as bolachinhas também já foram deixadas em portarias de musos inspiradores; afinal, há estratégia mais antiga do que tentar conquistar um homem pelo estômago?
Seja qual for o destino das bolachinhas, anualmente eu e minha amiga lá estamos, em volta da mesa, misturando os ingredientes, falando do passado, escolhendo as forminhas, dividindo angústias, raspando a casca de limão, cantando em portunhol, polvilhando a farinha, desfiando as últimas aventuras da solteira, acendendo o forno, fazendo o balancete da vida da casada, preparando a próxima fornada, revirando um amor esquecido, fazendo suco com os limões descascados, comentando sobre as viagens que faremos, colocando os biscoitos nos saquinhos, fazendo planos para o próximo ano, amarrando fitinhas, reafirmando laços.
Ah, eu acredito no Natal!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Trieb

“Despidos somos todos iguais”, ele disse.

Fui obrigada a discordar. Se assim fosse, não haveria teoria freudiana.

“Que teoria freudiana é essa?”, quis saber.

A resposta está há mais de um mês na minha pasta de rascunho. Começava dizendo que ele desafiava o meu poder de síntese pedindo que eu explicasse esses complexos conceitos psicanalíticos; explicava, em seguida, que para Freud a percepção de meninos e meninas sobre a distinção anatômica entre os sexos é o ponto de partida para o Complexo de Édipo e de Castração, para o interdito ao desejo, para a separação da mãe, para a constituição do sujeito, para a primeira escolha de objeto, para a identificação, para a segunda escolha de objeto...

Parece que em dois ou três parágrafos consegui resumir o que queria dizer. Mas aí já se tinham passado alguns dias desde que a pergunta havia sido feita – no próprio dia eu estava mais ocupada em responder a muitas outras perguntas mais prementes e necessárias – e pareceu perder o sentido enviar a resposta.

Mesmo com a perda do timing, guardei-a lá, na pasta de rascunho.

Se alguém me perguntasse hoje, eu diria, sem sombra de dúvida: no fim das contas, é a distinção anatômica entre os sexos o que move o mundo.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Lei de mercado

– Quem? Ah, aquele meu amigo alto, loiro, simpático, interessante e SOLTEIRO? Então, não te apresentei ainda porque achei que ele não fazia o seu tipo...

RÉLÔU, DESDE QUANDO MULHER SOLTEIRA TEM TIPO, DIO MIO???

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Sempre alerta


Já dizia o profeta: nunca coloque todos os ovos em um só
homem.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Simples

Fim de ano?

Dia de sol?

Sonho bom?

Desses dias em que a gente simplesmente se sente feliz por estar vivo, sem nenhuma razão em particular.

Geografia humana

Uma ilha é...
... uma mulher solteira
cercada de homens casados
por todos os lados.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Dog date

- Oi!
- Olá!
- ...
- Ele é bonzinho?
- É, sim, pode ficar tranqüila.
- Que bom...
- É shi-tzu ou lhasa?
- Shi-tzu.
- Ah...
- O seu é um whipet?
- Isso.
- Aham...
- Como é o nome delas?
- Esta aqui é a Mimi e a outra é a Lola.
- Sei.
- E o seu?
- Flash.
- Flash...
- ...
- ...
- Bom, até logo!
- Boa tarde, até a próxima!

(Sempre me pergunto quando os diálogos com homens-interessantes-passeando-com-seus-cachorros vão passar para a próxima fase.)

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

A distância das coisas

A distância é uma coisa engraçada.

A distância afasta? Nem sempre. Tão longe, tão perto. Se assim não fosse, não haveria paixão platônica, namoro à distância, amor que resiste a anos de separação.

A distância faz arrefecer os sentimentos? Às vezes. Longe dos olhos, longe do coração. Há aqueles amores que só se constroem no miúdo, no juntar dos corpos, nas vidas que caminham na mesma direção.

A distância é mesmo engraçada. Uma palavra atravessada pode tornar meio metro em um oceano. Uma palavra bem-dita atravessa o mundo para acariciar o ouvido.

Perto demais, o amor pode acabar. Longe demais, também.

A distância entre nove anos? O esquecimento.

A distância entre sete quadras? Uma escolha.

A distância entre dois andares? A prudência.

A distância é assim: ora estica, ora encolhe. O que ela vai fazer comigo e com você, só o tempo vai dizer.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Altas literaturas

Que o Sig me perdoe, mas verão é tempo de ler Marian Keyes.
Los Angeles, aqui vou eu!

Novas lições introdutórias sobre a jardinagem literária

Caro leitor,

Posso imaginar, a esta altura, a sua (mais do que justificada) saturação de posts versando sobre a regular e sistemática – embora absolutamente involuntária – jagunçagem de plantas protagonizada por esta que aqui escreve, assim como as inesgotáveis metáforas decorrentes desta contumaz incompetência vegetal: a crônica da violetinha suicida, a lenda da cebola que germinou na gaveta do refrigerador e sobreviveu ao plantio invertido, o hai kai do cacto falecido, a fábula da cravina endurecida pela vida, a parábola da cravina renascente. No entanto, em nome da sinceridade herbal, é mister que eu cá faça uma retratação pública e retifique informações inverídicas divulgadas neste sítio virtual.

Por ocasião de recente e ilustre visita da Mãe Sereia ao recinto de minha residência, orgulhosamente exibi a ela meu vistoso vaso sobre a mesa de centro da sala:
- Mãe, viu a minha planta que ressuscitou?
- Qual, esta Azedinha?
- Ahhhnmmfff – resmunguei, em um muxoxo (então não era mesmo uma cravina? Bem que eu desconfiei que as folhas eram redondas demais... Maldita Poliana!) – é esse o nome dela, é?
- Sim... Mas e então, você replantou a cravina neste outro vaso?
- Não, mãe, esta outra cravina já existia. Lembra-se de que eram duas, uma rosa e a outra branca? A branca morreu, tirei os restos mortais do vaso e... nasceu essa Azedinha aí.
- Sei (cara de quem já viu de tudo nessa vida). Natural, minha filha... a vida é uma eterna luta pela sobrevivência. Provavelmente a Azedinha veio de gaiato no vaso e acabou parasitando a cravina. Isso acontece o tempo todo na natureza.
- Sim, claro, naturalmente...
Hoje voltando para casa, já havendo me despido do véu de ignorância que cobria meus olhos, constatei o óbvio: a Azedinha é a planta mais ordinária que existe, daquelas que dão – com o perdão do trocadilho – em qualquer moita. Ainda assim, caro leitor, seguirei envidando esforços em prol da sobrevivência de mais este legítimo representante da natureza e das figuras de jardinagem.
Aos aspirantes a escritor (dentre os quais humildemente me incluo), a vida – e as plantas – ensinam mais uma: nem sempre a verdadeira lição é aquela que se julgou haver aprendido.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Tsé-tsé

E com o poder investido em mim por mim mesma, por Irene e por Greiscou, declaro o dia 20 de novembro o Dia Mundial do Sono. E que conste nos autos e que se revoguem todas as disposições contrárias e que tragam o meu travesseiro. E tenho dito. Amém.

domingo, 16 de novembro de 2008

Vicky Cristina Barcelona

Então eles se casaram e viveram felizes para sempre.
Ou quase.

Vinte anos aparentemente felizes, dois filhos criados, uma casa comprada, um negócio prosperando e muitos planos conjuntos concretizados depois, um dia ela nota algo de diferente.

- Você está bem, amor?
- Não.
- O que foi?
- Acho que não te escolhi. A vida escolheu por mim, não fui eu que te escolhi.
- ...
- Não sei se te amo. Não sei se quero continuar com você.
- ...

Ainda levaram dois anos – longos e sofridos – para se separar efetivamente.
Hoje ele caminha em busca de algo que não sabe bem o que é. Espera poder dizer um dia que algo em sua vida foi fruto de uma escolha sua. Ela, na outra direção, caminha em busca de aprender a desejar novamente, depois de quase uma vida inteira de certeza sobre o acerto da sua escolha.

Como pode ser acertada uma escolha para dois que só foi feita por um?
Como é possível viver durante vinte anos com aparente felicidade uma vida que não foi escolhida?

A cada instante, a vida vai se revelando menos exata do que nos ensinaram. Ou talvez ninguém tenha ensinado, talvez tenha sido tudo fruto da nossa própria imaginação. Talvez seja apenas um arranjo psíquico necessário para suportar a angústia de saber que não há uma única pessoa no mundo que seja sempre igual a si mesma (nem nós mesmos), que amar alguém pode ser o caminho mais curto para causar sofrimento a ele ou ela, que nem sempre as pessoas precisam de um bom motivo para deixar de se amar.
Amar. Amor. É o tipo de conceito sobre o qual não se pode ter nada além de um juízo empírico, absolutamente singular, parcial e intransferível.

Que ninguém tenha a pretensão autoritária de julgar o amor de outrem menor, menos belo, menos válido. Que ninguém se arrependa de ter vivido um amor sem higiene, independente de quais tenham sido as suas circunstâncias e o seu fim.

A vida não é exata. O amor não é exato. É algo tão complexo que acaba ficando simples.

Woody Allen que o diga.

sábado, 8 de novembro de 2008

Livre-arbítrio

“Será que existe mesmo esse Deus que quer o que você quer que o outro queira?”

(Frase inspiradíssima do espetáculo “Noé Noé! Deu a louca no convés!”, de Ivaldo Bertazzo, em cartaz no Tuca, em São Paulo.)

sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Metáforas vegetais

Durante algum tempo ela floresceu. É verdade que os botões surgiam de forma intermitente e, ao lado da cravina rosa, suas pétalas brancas sempre pareciam mais tímidas. Mas o inverno chegou e foi embora, a primavera chegou e ela continuou de pé.

Um dia, sem aviso prévio, começou a morrer. A mulher mudou o vaso de lugar. “Talvez o sol direto não faça bem”, pensou. Não adiantou. Definhava. “Será que falta sol e as raízes estão mofando?”. Tentou regar mais, regar menos, podou as folhas mortas, mudou o vaso de lugar mais duas ou três vezes. Por fim, admitiu sua derrota.

Ao arrancar do vaso os últimos pedaços de raiz sem vida, algo a impediu de se desfazer dele. Deixou-o assim, vazio, sobre a mesinha da sala de estar. E, sem que ninguém soubesse, sorrateiramente passou a regar o vaso vazio todas as noites.

Não foi preciso muito tempo para os primeiros brotinhos verdes surgirem na superfície da terra. Havia ainda vida no vaso! Pequenas pontinhas que, a princípio, pareceram à mulher diminutos trevinhos da sorte. Seriam parasitas de cravinas? Predadores naturais de flores de apartamento? Mas o tempo se encarregou de provar que se tratava de legítimos ramos de cravinas – aqueles que nascem e crescem desordenados, marcados pela dureza da vida, formando bonitos arabescos no ar. De dia procuram o sol como pequenos muçulmanos em saudação a Meca; à noite, assumem formas arredondadas de cogumelos-anões.

A cravina voltou à vida. Nunca morreu, afinal. Precisava apenas do seu próprio tempo, de amor e de alguém que continuasse acreditando nela.

***

Ah, sim! Continuo falando de plantas. E recomendo a jardinagem como atividade regular e sistemática a todo aspirante a escritor.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Física sentimental

Quanto espaço um homem é capaz de ocupar no pensamento de uma mulher?

domingo, 19 de outubro de 2008

O estranho

Essa vida já é outra. Já é outra.
Por mais que eu me lembre. Que eu me lembre.
Seus contornos familiares tentam me confundir. Mas basta eu esfregar os olhos e mirar de novo para concluir: não é mais você. Não sou mais eu. Não somos nós.
E é preciso lembrar, por mais que possa doer por alguns segundos: tudo está bem.
Tudo continuará bem.

Votos

Coração quente, cabeça leve, pés no chão e braços em ação.
Felicidade, sempre.
E muitos passarinhos!

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Simples

Ele disse a ela que não sabia.
E que, se não sabia, provavelmente não a amava o suficiente.
Portanto, não era justo prendê-la.
E por isso estava indo embora.

Estou há tanto tempo longe do amor que já não sei mais se as coisas são complicadas demais ou simples demais.

Quem sabe de alguma coisa?
Amar o suficiente para quê?
O que é amar o suficiente?
O que é amar?
O que é ser justo?
O que é prisão e o que é liberdade?

No fim das contas, me parece que tudo se resume a isso: querer ficar ou ir embora. Nada mais.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Estilhaços

Cansada de ser julgada pela essência, decidiu: mostraria ao mundo que à frente daquele cérebro havia um rostinho bonito. E peitos e bunda e lábios sensuais e odores e olhos melindrosos e recônditos e your-waist-is-just-right, you know?

Isso depois. Antes o convite.
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O pretexto foi a língua. Dela. Dele. Só em línguas pensava.

O sangue à face: era um corpo. A carne e o interdito e a carne. Por 72 horas a sofreguidão de ser carne. Contornos que os olhos dele criaram.
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Na segunda-feira, já invisível novamente. Carne por 72 horas e um olhar.

sábado, 27 de setembro de 2008

Cegueira

Foi já na primeira mirada que notou algo de diferente. Coisas que os olhos percebem antes do resto de nós.

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Sempre a se perguntar por que a falta de assimetria lhe causava repulsa. A imagem da menina com braços diminutos, dedos onde deveriam estar os cotovelos, por anos nas suas retinas, impermeável às suas vergonhas cristãs.

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Tudo lhe era alheio enquanto fitava aqueles olhos, irmãos, mas tão diferentes. Um era altivo, certeiro. O outro, baixo, retraído. Tentava concentrar-se nas palavras, mas o que ouvia eram os olhos.

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Com o tempo, acostumou-se. Não a ponto do não-notar. Passou o fascínio-repulsa das cobras, ficou a vigilância farol.

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Perguntaram-lhe como era. Não soube informar. Tudo o que sabia dela era aquilo: o divórcio dos olhos. Um olho sempre nela; o outro, no nada.

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A arrefecência dos dias. Aceitou-os. Os dois: o certo e o errado.

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Não teria sido menor o seu espanto, no dia em que finalmente percebeu. O horror. Estivera a tomar como bom o olho errado. O olho certo era o outro. O seu, morto.

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Quantas outras vezes na vida não o seria também.

domingo, 21 de setembro de 2008

Theo em quatro tempos

(Theo, sete anos, irmão de Lia, quatro meses)

I
- Cris, você já viu como funciona uma bombinha de tirar leite?
- Não, Theo, como é?
- É assim: você põe essa parte em cima do peito, assim, enfia esse cano aqui na bomba, liga ela assim no aparelho, aí a bomba faz chup-chup-chup e depois o leite sai aqui nesta parte e você coloca na mamadeira.
- Nossa, Theo, você está bem entendido no assunto, não?
- Pois é. A minha mãe agora só fala nisso...

II
(A avó pergunta a Theo se ele não está com frio)
- Ai, vó, você se preocupa demais!
- Theo, todas as vós são assim... Sabe como se chama isso?
- Neurótica?

III
(A mãe de Theo sobe para acudir Lia que acorda do sono da tarde pela quarta vez)
- Theo, seja legal com a sua mãe. Ela está muito cansada!
- Por que, tia? Ela está de TPM?

IV
(Folheio uma revista onde há uma reportagem sobre parto)
- Cris, o que é isso, uma revista de bebê?
- Não, Theo, só esta reportagem aqui é sobre bebê.
- Olha, tem uma mulher pelada!
- Pois é, tem sim.
- Eca. ODEIO ver mulher pelada...
- É mesmo?
- É sim. Morro de nojo disso (aponta para o seio da mulher) e disso (aponta para os países baixos). E disso aqui (aponta para a foto do bebê dentro do útero materno) eu tenho nojo de tudo!

domingo, 14 de setembro de 2008

A carninha do Gabriel

Trim! Trim!

(As histórias da Mãe Sereia que envolvem conversas telefônicas sempre começam com “trim-trim”. Em nome da licença poética, a Mãe Sereia ignora os toques polifônicos e apela para onomatopéias, digamos, mais clássicas. Em homenagem a ela, assim também inicio esta narrativa.)

Trim! Trim!
- Alô, comadre!
- Comadre, alerta vermelho... Estou péssima, com infecção intestinal. Será que você pode vir aqui depois do trabalho e dar uma mão com o Gabo?
Se um amigo quiser me fazer feliz, basta pedir a minha ajuda para qualquer coisa, dando a entender que sou indubitavelmente o ser humano mais indicado da face da Terra para cumprir aquela missão, quiçá o único. Pode ser arrumar um chaveiro às 23h, fazer compra de supermercado, regar plantas, cuidar do filho ou dar remédio para o cachorro doente e, sobretudo, dar apoio moral ou sentimental em um momento de crise.
Diante da nobilíssima missão de acudir a comadre e entreter o afilhado, agora com lindos um ano e três meses, enforco a yôga e disparo para a casa dela. Brinco dez simbólicos minutos com o Gabo antes de ele ter um ataque de manha – quer “escovar” os dentes sozinho (leia-se chupar a pasta de dente da escova) e não admite interferência.
Mãe que é mãe conhece seu filho. Vendo o choro sem lágrima, a comadre diagnostica: “hora de ir pra cama”. Prepara a mamadeira enquanto eu me viro nos 30 e, em seguida, põe em prática a metodologia ultra-avançada que desenvolveu para pôr para dormir o seu pequeno: coloca-o no berço, deixa a chupeta do seu lado, encaixa a mamadeira na sua mão, dá boa-noite, apaga a luz e fecha a porta. Essa minha comadre é o meu orgulho.
De volta à sala, antes de desabar no sofá, a comadre quer me alimentar. Não existe mãe-leonina que suporte receber alguém em casa sem oferecer tudo do bom e do melhor. Estão aí a minha própria mãe-sereia, minha amiga Isadora, a comadre e até minha ex-sogra que não me deixam mentir (coincidência das coincidências, as quatro fazem aniversário no mesmíssimo dia).
Vamos até a cozinha, ela abre a geladeira e, logo depois de ter dito que “nessa casa só tem pão”, retira de lá uma farta gama de tupperwares com os mais variados quitutes: arroz, feijão, seleta de legumes, verdurinhas. “Só não tem carne, Cris...”. Mas logo se lembra da “carninha do Gabriel” no congelador.
Epa. Está certo, todo mundo tem uma verdadeira predileção por comida de nenê (conheço adulto a rodo que compra papinha da Nestlé para consumo próprio), mas comer a carninha do Gabriel é sacanagem, né? “Imagina, Cris... a Neta faz um monte e congela um pouquinho em cada tupperware. Pode comer que depois ela faz mais...”.
Olho para o minúsculo tupperware, onde três diminutos pedaços de carne congelada me perguntam, inquisidores, se eu terei coragem de comê-los. Mando os escrúpulos às favas e coloco tudo no microondas. Enquanto isso, a comadre, um pouco mais refeita, vai olhar a sua correspondência no computador.
Dois minutos depois, abro o tupperware e vejo os três pedacinhos da suculenta carninha do Gabo quentinhos, macios e esperando ser espetados pelo meu garfo. No prato com arroz, feijão e legumes, despejo graciosamente a carninha e, para fazê-la render mais, raspo bem todo o molho de dentro do tupperware em cima do feijão-com-arroz.
Sento na mesa satisfeita com a perspectiva da minha refeição. Monto a “garfada perfeita” e dirijo o garfo à boca antevendo o prazer de saboreá-la. Mas algo não corresponde à minha expectativa. Ainda sem identificar exatamente o que foi que deu errado, preparo a minha segunda garfada. Enquanto mastigo, procuro descobrir o que é que está me causando um certo incômodo, um certo tremor no corpo e arrepio nos braços. Do recôndito de minha memória, vem a lembrança de um sabor que há vinte anos eu não sentia: fígado.
A essa altura, a história já merece um parêntese. Meus santos pais penaram durante toda a minha infância para me fazer comer aquilo que se sabe necessário para que um ser humano cresça saudável: frutas, verduras, legumes, grãos, peixe etc. etc. Dentre as diversas batalhas que travaram contra o meu enjoado paladar infantil, houve uma que não conseguiram vencer. Minha aversão ao bife de fígado suplantava qualquer pequena birra infantil: era o meu corpo quem o rejeitava, com terríveis ânsias de vômito. Não houve jeito: meus pais tiveram que aceitar que fígado eu não comia e pronto.
Ainda durante a minha infância, houve uma nebulosa época certamente lembrada por boa parte dos meus familiares, em que uma cena se repetia toda vez que me ofereciam um prato com carne. Antes de qualquer coisa, eu me dirigia ao adulto responsável e perguntava: “isso é carne de vaca ou de boi?”. Se o pobre adulto desavisado desconhecesse a minha idiossincrasia e caísse na besteira de me dizer que era carne de boi, não havia Cristo que me fizesse engolir o tal bife. “Só como carne de vaca”, eu explicava, assertiva, sem dar margem a negociação.
Levei anos para entender que misterioso mecanismo psíquico havia produzido em mim tal restrição: associei “fígado de boi” a qualquer carne vermelha que me oferecessem. Se fosse de vaca, era uma carne normal. Se fosse de boi, era fígado. Portanto, carne de boi não dava jogo. (Muito tempo depois, alguém me explicou que só os bois vão para o abate, já que as vacas são produtoras de leite.)
Agora nos transportamos novamente à cozinha da comadre, onde eu, vinte anos depois do meu último episódio de ânsia de vômito diante de um bife de fígado, descubro-me mais uma vez frente a frente com o famigerado petisco. De uma hora para a outra, as três isquinhas se tornaram três bifões enormes, intransponíveis.
Sacanagem maior do que comer a carninha do Gabriel seria não comê-la, depois de já ter esquentado e colocado no prato, misturada com o resto da comida. Que pecado desperdiçar a comida de uma criança!
Enquanto enfrento o segundo pedaço (dividido em muitas e muitas garfadas), reflito sobre a condição do adulto. Aquele que, depois da dureza da vida, aprende a se haver com monstros que algum dia pareceram invencíveis aos seus olhos infantis.
O meu próprio paladar é uma prova disso. Certos alimentos que quando criança eu só era capaz de ingerir a muito custo, por mera obrigação, hoje não são apenas tolerados como apreciados pelas minhas papilas gustativas. Minha mãe desacredita de me ver comendo sushi; nunca imaginou que a menina enjoada um dia apreciaria peixe cru.
Sigo confiante para o terceiro pedaço, celebrando ditos populares como “o que não mata engorda”. Eu venci o fígado! Mas subitamente um calafrio percorre o meu corpo e descubro que cantei vitória antes do tempo. Um terrível engulho se manifesta cada vez que aproximo o garfo com o bife de fígado a menos de três centímetros da boca. Resignada, mais uma vez acedo à minha fraqueza humana e despejo o resto da carninha do Gabriel no lixo.
Vou atrás da Comadre e comento: “só você mesma para me fazer comer fígado depois de vinte anos...”. Ela parece demonstrar genuína surpresa: “Era fígado??? Ai, Cris... não acredito!”.
Episódios como esse remontam a uma longa linhagem de históricos equívocos alimentares e suas vítimas. O mais famoso da minha família aconteceu quando saboreamos, na casa da minha tia, hambúrgueres de carne com algum ingrediente secreto e deveras crocante. Só o meu primo mais novo, na mais genuína manifestação da sinceridade infantil (“O rei está nu!”), recusou-se a comer o hambúrguer por suspeitar do tal elemento crocante. Minha tia então esbugalhou os olhos e gritou: “parem de comer!”. Correu para a cozinha e confirmou a sua suspeita: a empregada usara os restos de carne comprados na feira para alimentar o cachorro (cartilagens incluídas) para confeccionar os hambúrgueres.
Passado o susto, todos sobreviveram. Eu também me recompus e não sofri maiores traumas pela ingestão desavisada da carninha do Gabriel. Chegando em casa, bati um copão de leite com nescau para tentar neutralizar o gosto que ainda insistia em me visitar de tempos em tempos. No dia seguinte, a carninha do Gabriel já tinha virado história. Ou melhor, post.
Mas eu ainda tenho cá minhas dúvidas a respeito do “equívoco”. Escolada com bolinhos de espinafre, maravilhas de cenoura e souflés de chuchu, desconfio que fui vítima de mais um golpe de uma mãe-leonina zelosa. E o pior: dessa vez, nem era a minha.
Te cuida, Gabo!

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Nota sobre o esquecimento

[...]
Peço tanto a Deus
Para esquecer
Mas só de pedir
Já lembro
[...]

(Amado, Vanessa da Mata)

É preciso esquecer de se lembrar para se lembrar de esquecer.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Cravinas


Faz algum tempo ganhei um vaso de flores. Não eram para mim, mas quem as ganhou achou que eu tinha feito por merecer.

Uma semana se passou, a cena se repetiu. Eu e a sombra de árvores alheias.

Eis-me com dois vasos de cravinas, eu, a mulher que matou as flores, o anti-cristo da jardinagem.

E eis que elas resistem. Ao tempo seco, à incompetência da jardineira, à falta de poesia. Não apenas resistem como se desenham no ar em graciosos arabescos.

Explico: as cravinas são particularmente sensíveis à ausência de água. (As minhas pelo menos são). Basta um dia de lapso da dona para que os caules das flores enverguem, qual as flores de história em quadrinhos. Às vezes, em um único dia particularmente seco, já lá estão as flores todas apontando para baixo, em desalento.

Rego-as com amor. Sobreviver à minha posse não é para qualquer vegetal. Elas são tenazes, convenhamos. E basta sentir o geladinho da água para que novamente os caules recuperem o vigor. Nunca, no entanto, retornam exatamente à posição original. Seja pela força da gravidade, seja pela dureza da vida, o reerguer-se sempre traz uma marca, uma curvatura, uma cicatriz.

Pode ser miopia, mas aos meus olhos elas ficam mais bonitas.

Eu, fracassada jardineira de flores, jamais deixo de colher uma metáfora que explode de madura diante dos meus olhos.

sábado, 23 de agosto de 2008

Post it

Só passei para dizer que não estou.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Minha Favorita é Pantanal

Sou uma noveleira de carteirinha e dificilmente um autor de novela consegue me tirar do sério. Até o Manoel Carlos consegue granjear a minha tolerância e, vez ou outra, alguma simpatia da minha parte.

Por isso é preciso que conste dos autos: estou revoltadíssima com a reviravolta da novela das oito. Desde que A Favorita começou, eu a defendia com unhas e dentes. Achei genial e original a proposta de abandonar o maniqueísmo das “irmãs gêmeas” e explorar a ambigüidade de duas personagens femininas, jogar com simpatias e antipatias, impressões e evidências, induções e inferências. Quando parecia ser possível começar a formar uma impressão sobre uma delas, algo inesperado acontecia e virava o jogo novamente. O resultado era que ambas, de alguma forma, contavam com a nossa simpatia e nos faziam quase torcer para os dois lados ao mesmo tempo, a despeito do antagonismo das personagens.

Aí o sujeito, pressionado pela baixa audiência, me enfia um revólver na mão da Patrícia Pilar, faz a criatura atirar em um inocente a sangue-frio, mostra e remostra flashbacks do primeiro crime que ela cometeu (e cuja autoria – até então não revelada – era a chave de toda a trama da novela) e simplesmente assassina a novela no meio do caminho. De uma hora para a outra, a pobrezinha miserável e humilde, que só queria provar a sua inocência e passava os seus dias fazendo faxina e bobó de camarão no cafofo do Silveirinha, chega no seu apê novo cheia de sacolas de compra, chama a filha que ela sonhava conquistar de “boboca” e diz que é melhor “vestir os trapinhos” antes de se encontrar com uma de suas vítimas, para não chamar atenção.

Esse tipo de solução desesperada (e nesse ponto concordo com o noveleiro da Record, apesar de nunca ter assistido a nenhum capítulo das suas novelas-mutantes) me irrita a tal ponto que começo a perder a paciência com idiotices que normalmente eu engoliria sem grande esforço, como a cena de um grupo de presas tentando cavar com as próprias mãos um buraco no chão de uma cela sem que ninguém percebesse. Pior: levando disfarçadamente a terra nos bolsos das calças jeans (!) para dispensá-la no pátio. Se não tivessem sido deduradas às carcereiras, elas certamente cumpririam pena antes de conseguir se sentar dentro do buraco que cavavam.

Fico me lembrando de uma palestra a que assisti uma vez com a Lygia Fagundes Telles lá na PUC. Naquela época eu ainda não havia lido quase nada da Lygia, mas fiquei com uma impressão fortíssima daquela mulher. Uma das coisas que guardei com mais nitidez foi um comentário seu sobre a adaptação que a Globo fez do seu conto Antes do Baile Verde. Toda a história gira em torno de uma moça que, em uma noite de carnaval, se vê dividida entre o pai enfermo, cuja morte parece iminente, e o desejo quase infantil de participar de um baile de foliões. O diálogo da protagonista com a empregada da casa revela as suas oscilações “demasiado humanas”, que vão da negação da morte ao egoísmo em seu estado mais bruto.

Lygia nos explicou, generosamente, o peso que representa a porta fechada do quarto do pai naquela história, pai cujo estado só nos é permitido supor e inferir a partir das conversas entre as outras duas personagens. A porta fechada permite que nos identifiquemos, por mais irracional que pareça, com os imaturos anseios daquela jovem. Ao mesmo tempo, é uma presença maciça, a imposição da morte, algo que jamais conseguimos esquecer.

O que me faz a dona-rede-Globo? Abre a porta da Lygia. Mostra o velho caquético, babando, respirando mal, cheio de apetrechos médicos. Uma didática lição sobre como assassinar uma obra de arte.

Não é que A Favorita fosse uma obra de arte. Mas era uma novela honesta. Agora, virou bandalheira. Não há nada que me tire mais do sério em uma novela do que a falta de sutileza. Como é que os dois vilões passam três meses falando por meias-palavras, usando subterfúgios e fazendo vagas referências ao passado e, de uma hora para a outra, estão comemorando um assassinato com champanhe e dizendo frases verossímeis como "a idéia daquele golpe que nós demos dezoito anos atrás foi genial"? Santo Deus, fechem essa porta!!!

Eu não digo que deixarei de ver A Favorita porque, em Terra de TV aberta, quem tem uma novela das oito é rei. Mas que dá desgosto, dá. Quem me salva a pátria agora é Pantanal. Taí uma novela digna. Às vezes de uma simplicidade que beira o mexicano, como nas tomadas do Rio de Janeiro que inevitavelmente antecedem uma cena de estúdio, em que as pessoas fatalmente estarão fazendo nada a não ser falar sobre a vida, como se ninguém mais tivesse nada para fazer a não ser esperar que os outros decidam alguma coisa a respeito de suas próprias vidas. (E não dá para não comentar a estratégia de marketing do SBT: anunciar que Pantanal começa assim que acaba a novela da Globo!)

Toda a ação se passa praticamente em três locações: a fazenda de Zé Leôncio, a fazenda do Seu Tenório e a casa da segunda mulher desse último no Rio de Janeiro. Se juntarmos todos os personagens de Pantanal, eles não completam um núcleo de novela das oito da Globo. Há personagens-fantasma que aparecem a cada trinta capítulos, como a avó do Joventino e seu mordomo.

E mesmo assim, a novela é mais digna. É bela. A direção é firme, correta. Mesmo os atores que já tiveram atuações bem medianas em novelas globais posteriores me surpreendem em Pantanal (destaque para o bico e o impagável “seeei lá!” de Marcos Palmeira, fazendo pela primeira vez o personagem do peão xucro que depois ele cairia na besteira de repetir ad nauseum em outras milhares de novelas).

No Pantanal também há morte, mas as pessoas não matam porque são “terrivelmente más”: matam porque assim é a vida. Porque devem matar ou morrer. Matam por terras, por amor, por fraqueza, por sina. Matam pela simples banalidade da vida. Matam, simplesmente. Só não matam para levantar a audiência.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Coisas que você não aprendeu na escola

Que o Bocage foi o poeta mais expressivo do Arcadismo em Portugal a Da. Margarida certamente te ensinou.

Que existe o “Bocage lírico” e o “Bocage satírico” é bem provável que ela também tenha te dito.

Agora, sendo a escola por excelência uma instituição conservadora (e isso não é culpa da pobre Da. Margarida), du-vi-de-o-dó que ela tenha te contado o quão boca-suja era aquele gajo.

Os livros didáticos sempre dão um jeitinho de apresentar uma poesia satírica do Bocage que não faça corar a Da. Margarida. Mas acredite: perto dele, boquinha-da-garrafa é música de igreja. Taí o próprio, que não me deixa mentir, em suas lúdicas elucubrações sobre a prisão de ventre.


Soneto da dama cagando
Manual Maria Barbosa du Bocage

Cagando estava a dama mais formosa,
E nunca se viu cu de tanta alvura;
Porém o ver cagar a formosura
Mete nojo à vontade mais gulosa!

Ela a massa expulsou fedentinosa
Com algum custo, porque estava dura;
Uma carta d'amores de alimpadura
Serviu àquela parte malcheirosa:

Ora mandem à moça mais bonita
Um escrito d'amor que lisonjeiro
Afetos move, corações incita:

Para o ir ver servir de reposteiro
À porta, onde o fedor, e a trampa habita,
Do sombrio palácio do alcatreiro!

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Não existe queijo ruim

No msn, ela contava ao amigo mineiro sobre a balada daquela noite. Sofrível. Acompanhara uma amiga animada a certo estabelecimento nos Jardins, de propriedade de representantes da mais fina elite paulistana, e o resultado não poderia ter sido outro: hordas de homens plastificados, robotizados, de peitorais assustadoramente definidos quase rompendo a camiseta justa, invariavelmente estampada com um brasão, corrente grossa no pescoço, cabelos duvidosamente penteados com gel. Até o cheiro daquelas criaturas era estranho. Simplesmente não pareciam desse planeta. A qualquer momento puxariam a máscara que recobria seus rostos e revelariam a sua verdadeira identidade alienígena. Sentira medo de olhar para os lados.

O amigo mineiro, ouvinte sempre atento e interessado, quis saber se havia rolado interação com o sexo oposto. Ela rebateu no ato: lera uma linha do que ela dissera? Achava que ela era mulher de dar mole para bonecos chuck? Ele assentiu, lera tudo. Mas ainda assim resolvera perguntar. Afinal, como se diz por aí, “no inferno abrace o capeta”. E completou: para mineiro, não existe queijo ruim.

Ela riu-se. Que revelação! Logo o amigo mineiro, sempre tão tímido, vira-e-mexe confessando seu sem-jeito na abordagem das mulheres, tão discreto. Não à toa se diz por aí que “mineiro come quieto”. Pois sim. Ora, ora...

De vez em vez ela se lembrava da máxima mineira: não existe queijo ruim. E ficava se perguntando quantas e tantas o amigo mineiro não devia estar aprontando, com tão poucas exigências em matéria feminina. Às vezes até se perguntava se não residiria no provérbio um tanto de sabedoria. Mas, ao lembrar dos chucks, rapidamente concluía que havia, sim, queijo de todo o tipo, mas nem todos eram para o seu paladar.

Tempos depois o amigo mineiro se aprochegou para uma visita à capital. Escolheram um bar simpático com banda de jazz ao vivo e aproveitaram para pôr em dia o assunto que o msn já não dava mais conta de atualizar. Papo vai, papo vem, voltaram ao tema dos queijos. Ele começou a teorizar sobre aqueles que, quando criança, ele julgava merecedores de ir à lata de lixo e, depois de adulto, passou a comer com gosto. Ela achou graça de ele tergiversar e comentou, maliciosa, que não era bem sobre queijo que eles falavam quando o dito veio à baila pela primeira vez...

Ele desentendeu-se. Sobre o que falavam então? Ela riu-se mais um pouco. Homem escorregadio... Tentou comer pelas beiradas: lembrava-se de uma conversa que haviam tido sobre “abraçar o capeta”? Ele lembrou, confirmou, mas garantiu que o queijo era uma coisa, o capeta era outra. Provavelmente falavam sobre comida quando ele pontificou sobre os laticínios.

Queria competir com a memória infalível da moça... Que não só se lembrava como tinha provas: guardara a conversa do msn. Assim que desse, demonstraria. E ainda arrematou: não se lembrava que tempos depois, em outra conversa ainda, ela perguntara a ele sobre a qualidade dos queijos em sua última visita a Minas? E ele respondera, malandramente, que “os queijos estavam perfeitos”? Queria agora convencê-la de que era realmente sobre queijos que eles falavam? O amigo afirmou, com patente seriedade, que da parte dele sem dúvida se tratava de queijos, laticínios, víveres, gênero alimentício.

Ela não quis dar o braço a torcer, mas encafifou-se. Seria possível que tivesse se enganado? Bem que às vezes achava o amigo mais apegado ao pé da letra do que ela... Na primeira oportunidade, correu para o histórico do msn.

Lá, no meio da conversa sobre chucks, correntes douradas, cabelos engomados, cheiros estranhos, interações com o sexo oposto e alienígenas, corria uma breve conversa paralela [entre colchetes] sobre o paladar infantil dela, que não se amigava ao álcool, e a sua preferência por um sabor de pizza que ninguém mais apreciava: catupiri com milho.

E logo depois da alusão do amigo ao amplexo no coisa-ruim, a máxima mineira [também entre colchetes]: não existe queijo ruim.

Ela teve que aceitar que Foucalt, Bakhtin, Freud & Cia. tinham razão. Impossível prever a infinidade de fatores que interferem no processo comunicativo...

O amigo mineiro? Um gentleman, é claro. Até que os queijos provem o contrário.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Caça com gato

Amiga, a dica da semana para driblar a estiagem é fazer da sua panela de pressão um poderoso umidificador de ar caseiro! Escolha legumes sortidos, de cores variadas, e faça uma sopa bem colorida! Encha a panela de pressão com água até a boca e deixe cozinhar em fogo baixo por cerca de uma hora, até o vapor umedecer todas as janelas da casa. Ao desligar o fogo e levantar o pino da panela, não deixe de aproveitar para inalar profundamente o vapor até o último minuto! Essa vale por uma receitinha da vovó, não?

domingo, 20 de julho de 2008

Amor perdido

Revirei gavetas e saudades. Levantei poeira de um amor perdido.

Não do último. Do primeiro. Se não o primeiro de todo, pelo menos o de fato e de direito. E não perdido pelo fim do amor – embora, de alguma forma, em algum momento, o amor em si também tenha se perdido –, mas perdido no mundo.

Endereço, telefone, e-mail, nada mais nos conecta. Nove anos foram suficientes para que todos os nossos pequenos pontos de contato deixassem de existir. Moramos em cidades diferentes. Em dois mundos diferentes. Não temos amigos em comum. Comum é o seu nome, tão comum que nem a velha lista telefônica é pista suficiente para reencontrá-lo. Nem mesmo o milagroso orkut.

Caberiam medidas extremas, mas em nome de quê? Tudo aconteceu há tanto tempo... O amor foi vivido inteiro, com começo, meio e fim. As vidas seguiram rumos diferentes. Enquanto ainda doía ficar sem ele, tentei mantê-lo perto de mim. Ele não quis. Foi em frente, amou de novo, guardou distância respeitosa. Eu também. Aquela que o amou é hoje um espectro, como se muitas outras vidas já houvessem se passado desde então.

Mas os e-mails empoeirados, de um tempo em que conhecer alguém pela internet ainda soava estranho aos ouvidos dos amigos, são a prova de que tudo aconteceu, e nessa vida. Fazem lembrar que o que se viveu foi muito mais do que um amor adolescente. Dois anos de um amor verdadeiro, que prevaleceu sobre uma diferença de sete anos de idade e seiscentos quilômetros de distância. Muitos dias de saudade, muitas noites de paixão. O frenesi de saber-se amada. O deslumbramento depois da primeira noite juntos. O primeiro eu-te-amo. O dormir abraçado, colado, fundido, no dia da morte do pai dele. O calor daquele quarto, daquele corpo. Tantas lágrimas derramadas pela simples inexperiência de amar e, ainda assim, a felicidade extrema. Ah...

Todos os outros estão perto, mesmo que não próximos; à distância de um amigo, sete quadras ou um telefonema. Ele não.

Fecho as gavetas e as saudades.

Assim é a vida.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Aforismo

Não existe chefe normal. Se você acha o seu chefe equilibrado e previsível, isso significa apenas que já se acostumou à loucura dele.

terça-feira, 1 de julho de 2008

A psicoescatologia da vida cotidiana

Depois de trabalhar durante quatro anos no subsolo, em salas sem janela ou com janelas que davam para o mais puro ar do estacionamento, olhando para paredes com mofo ou para trilhas de formiga, mudei de emprego e literalmente subi na vida: fui para o terceiro andar, sento de frente para a janela, meu lixo é limpo três vezes por dia, trabalho com um computador novíssimo, em uma cadeira para lá de confortável.

Mas o melhor de tudo é o banheiro. Banheiros individuais são um luxo! Especialmente para pessoas que, como eu, sofrem de prisão de ventre. Quer coisa mais constrangedora do que se haver com as suas dificuldades de evacuação ouvindo conversas alheias? (E, o pior de tudo, sendo ouvida?) Isso quando a chefe não resolvia despachar lá mesmo, no banheiro. Sorte que a surdez sempre foi desculpa convincente (e real) para não prolongar muito os assuntos separados por paredes.

Além disso, o banheiro coletivo do trabalho anterior não primava pela limpeza e não era raro encontrar um “presentinho” da usuária anterior, ou mesmo experimentar na pele os problemas de relacionamento com a descarga e depender da boa vontade de uma vizinha de boxe para conseguir um balde com água e apagar as provas do crime. Felizmente, são águas passadas...

Na nova sala, além dos banheiros claramente sinalizados e próximos das estações de trabalho, há um outro, de canto, escondido, que só fui descobrir depois de alguns dias. Levei algum tempo para entender por que algumas pessoas caminhavam resolutas naquela direção e só retornavam após alguns minutos. A desvantagem é que o espelho e a pia ficam em área externa – fora do campo de visão dos colegas de sala, é verdade, mas de frente para uma das janelas que dão para a rua principal –, inibindo aquela checagem obrigatória do perfil, dentes, cabelo, olhos e sobrancelhas. Por outro lado, uma vez que você passe por aquela porta, pode se ausentar durante um tempo significativo sem que os seus colegas de trabalho desconfiem dos momentos difíceis pelos quais você pode estar passando.

Dias atrás, o banheiro feminino principal estava ocupado e me dirigi ao “privê”. Antes de desabar sobre o vaso, no entanto, notei que ele estava sem água. Ufa! Ainda bem que percebi a tempo! Imaginem que mico usar o banheiro quebrado logo nas primeiras semanas do novo emprego. Discretamente me recompus, abri a porta e me encaminhei à segurança do banheiro nosso de cada dia.

Um ou dois dias depois, a cena se repetiu. Mais familiarizada com os altos padrões de qualidade da empresa – que se refletem, inclusive, na manutenção dos banheiros –, desconfiei da minha percepção inicial sobre o vaso quebrado. Afinal, a troco do quê deixariam um banheiro descontinuado sem nenhuma sinalização, permitindo que os funcionários passassem pelo constrangimento de utilizá-lo sem condições mínimas de higiene? Ou melhor, por que esperariam mais de dois dias para mandar consertá-lo? Por via das dúvidas, antes de qualquer coisa resolvi acionar a descarga. Bingo! A água jorrou na horizontal, de um lado para o outro da cavidade sanitária, com vazão suficiente para eliminar qualquer vestígio dos aliviamentos. Satisfeita, atendi ao chamado da natureza e voltei tranqüilamente aos meus afazeres.

Na terceira tentativa de usar o banheiro, resolvi arriscar: sem testar a descarga, entreguei minha contribuição ao vaso e torci para que o princípio da uniformidade da natureza humiano não me deixasse na mão. Foi nesse ato de coragem que entendi o fascínio que o tal banheiro exerce sobre as pessoas: já imaginou ter a oportunidade diária de examinar a sua produção “in natura”?

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Olhos meus

Se há algo a celebrar nos pequenos e grandes desvios é o poder que eles têm de colocar em relevo as miudezas que, outra feita, seriam invisíveis aos nossos olhos.

O metrô sempre tão cheio de poesia concreta. Lá os vi. De longe e de costas um único corpo. Vencidas distâncias, a figura ainda não encontrava equivalência nas categorias do meu conhecer. Seria uma mulher, amparada pelo companheiro, se locomovendo com o auxílio de um andador? Foi só no emparelhar que realmente os apreendi: os dois cegos, braços tão entrelaçados que eram um, as bengalas tateando o caminho em movimentos sincrônicos de pára-brisa, vup-vup, vup-vup, varrendo o chão, marcando o compasso. Ele, mais alto, protetoramente envolvendo as costas dela, mas sem hierarquia. O que lhes faltava de olhos sobrava de harmonia.

Não era eu a única a me admirar da cena. Havia quase uma suspensão coletiva dos pequenos aconteceres no olhar o casal. Se por um segundo suspeitávamos – a escada! O degrau! A coluna! – eles jamais se abalavam e nada perturbava a sua caminhada. As bengalas astutamente alertavam o porvir e seguiam, resolutas. Sem sobressaltos.

E o se dar conta de que tudo o que se poderia um-dia-pensar-dizer sobre o amor estava ali, condensado na singela, onze horas da manhã, meio da multidão.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Troféu-joinha: Dia dos namorados

Eu sou bem mais um Gitti do que um Cafa, mas esse ano o post de Dia dos Namorados do nosso amigo superou todos os concorrentes.
Já que o tempo ruge e a falta de inspiração abunda, deixo-os em boa companhia.
Leiam e se deliciem com as dicas do Cafa para as solteiras nesse 12 de junho.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sex and the city

Dane-se que a vida não tem aquele glamour. Amei cada segundo. Ri, chorei, sofri, me apaixonei pela Carrie de novo, perdoei o Big mais uma vez.
E quem me chamou de Cris Bradshaw estava certo: também acho que o amor é a única grife que nunca sai de moda.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Assassina

Socorro! Meu cacto morreu. Existe maior evidência de incapacidade herbal?

***

Ironia das ironias: uma amiga querida foi viajar por um mês e deixou justamente quem encarregada de regar as plantas?

Se ela soubesse quantas mortes vegetais carrego nas costas, pensaria duas vezes antes de me confiar o seu jardim.

domingo, 25 de maio de 2008

Vida bandida

Você pensa que nunca vai acontecer com você (e torce para isso também), o que é bom, já que sofrer por antecipação faz mal para o fígado e não prepara ninguém para a experiência real. Mas, eventualmente, pode acabar acontecendo. Em um feriado qualquer, você está sentado tranqüilamente com um casal de amigos na mesa de um simpático restaurante do seu bairro, aguardando o seu jantar enquanto joga conversa fora, e vê um homem se aproximando da sua cadeira e dizendo algo parecido com “bolsa”, “celular”. Sem entender o que ele diz, você se vira e pergunta “como?” e então ele levanta a blusa e mostra o revólver empunhado para não deixar nenhuma dúvida: “a bolsa, o celular, rápido”. Ainda tentando juntar as sensações com os pensamentos, você abre a bolsa em busca do celular, mas ele interrompe: “dá a bolsa inteira, rápido!”. Você entrega a bolsa e passa a ver tudo em câmera lenta, imaginando se o resto do restaurante vai se dar conta do que está acontecendo. Mas em dois segundos percebe que há mais dois homens igualmente armados que já renderam as mesas de dentro e também o caixa do restaurante. Eles não falam alto, evitam levantar o revólver, mas é difícil prever se o final da história já está perto ou longe e qual vai ser o desfecho. Uma cliente desavisada atravessa a rua em direção ao restaurante rendido. Uma mulher sentada na mesa ao seu lado tenta alertá-la: “vai embora, vai embora”. A mulher não dá ouvidos e rapidamente é abordada por um dos bandidos: “passa a bolsa”. Ela reage com indignação, “não vou dar!”, e quase é possível ouvir todos dentro do restaurante prendendo a respiração ao mesmo tempo. Dois revólveres apontados em direção à mulher fazem com que ela mude de idéia. Pronto, mais algumas bolsas e celulares (inclusive o do seu amigo, mas felizmente a carteira dele e a bolsa da sua amiga ficam intactas), eles mandam todos para a área interna do restaurante e dão o fora.

Ainda sem reação por alguns instantes. As crianças choram. Os garçons continuam circulando e levando os pratos às mesas, sem saber muito bem qual é o protocolo para situações com essa. A proprietária do restaurante convida os clientes a se sentarem e terminarem a sua refeição, afirmando que isso “jamais aconteceu antes”. Mas o apetite se foi. E ainda há muito a fazer: cancelar cheques, cartão do banco, bloquear celular. Quanto mais rápido, melhor. E, sem celular, só é possível fazer isso do telefone de casa.

Mas e a chave do carro? Estava na bolsa. Bom, você tem outra em casa. Mas e a chave de casa? Também na bolsa... Ah, que sorte você ter deixado uma cópia na portaria do prédio para a faxineira. Os seus amigos te dão uma carona para casa e sobem para te fazer companhia enquanto você inicia a operação-bloqueio. Depois vão te levar de novo até o seu carro para que você possa trazê-lo para casa.

Começa a epopéia dos assaltados. Vinte minutos andando em círculos pelo menu da Claro, que pede que você aguarde para falar com a operadora para em seguida repetir todas as opções do menu ad nauseum. Melhor tentar o Itaú. Primeiro você consegue navegar pelo menu eletrônico até a opção “bloquear cartão”. A gravação informa: “para bloquear o seu cartão SEM emissão de um novo cartão, digite 3. Para bloquear o cartão COM emissão de um novo cartão, digite 4”. Bem, você precisa de um novo cartão, o mais rapidamente possível. Após apertar o 4, a gravação alerta: “atenção! A emissão de um novo cartão está sujeita a cobrança de tarifa! Confirma a operação?” Já que nenhum ser humano se oferece para trocar uma idéia com você, o jeito é confirmar e pelo menos ter a tranqüilidade de que o seu cartão não será usado pelos bandidos.

Como você não consegue bloquear os cheques pelo menu eletrônico, desliga o telefone e liga novamente, digitando inúmeras teclas até ouvir a voz de um operador. Isso leva mais alguns minutos. Ao ser atendida pelo Rafael, começa a dizer “boa noite, por gentileza, eu fui assaltada...” mas rapidamente é interrompida com “Um minuto, por favor” e retorna ao menu eletrônico. Respira fundo, põe o fone no gancho e reinicia a operação. Dessa vez quem te atende é o Moisés. Você explica tudo o que aconteceu: “fui assaltada, levaram a minha bolsa, tudo dentro, inclusive cartão de débito e cheques, acho que já consegui bloquear o cartão, mas não os cheques...”. Você espera algum tipo de empatia, de humanidade, mas o atendente dispara, tal qual um menu eletrônico: “nome completo? Endereço? Diga APENAS o dia de seu nascimento. Nome completo de sua mãe? Nome completo de seu pai? Seu CPF? Seu nome completo novamente?” e depois de responder a todas essas perguntas, você ainda ouve atônita, pela terceira vez: “com quem eu falo?”. Exausta, você implora que ele bloqueie os seus cheques. Ele pergunta se são apenas algumas folhas ou o talão inteiro. Você explica que foi o talão inteiro, mas algumas folhas já haviam sido usadas por você. Ele diz: “então o motivo do bloqueio é oposição ao pagamento?”. “Não, meu senhor. O motivo do bloqueio é ASSALTO A MÃO ARMADA”. Suspirando profundamente, o atendente insiste: “minha senhora, existem duas formas de bloqueio: o bloqueio por oposição ao pagamento é para as folhas que já foram assinadas. O outro bloqueio é para as folhas ainda não utilizadas. Qual bloqueio a senhora deseja solicitar?”. “Meu senhor: eu fui assaltada. Algumas folhas já haviam sido utilizadas, outras estavam em branco. Cabe ao senhor me dizer qual é a categoria de bloqueio que se encaixa nessa situação.”. “Nesse caso, senhora, faremos o bloqueio por oposição ao pagamento, mas a senhora deve comparecer na agência bancária em até dois dias úteis para confirmá-lo, caso contrário o talão será automaticamente desbloqueado. Quanto ao seu cartão, consta que ele já foi bloqueado!” “Sim, eu disse ao senhor no início da ligação que já havia bloqueado o cartão pelo menu eletrônico...”. “Bem, a senhora está ciente de que a opção ‘bloqueio com emissão de novo cartão’ está sujeita a cobrança de tarifa?”. “Mesmo em caso de ASSALTO?”. “Bem, se a senhora quiser posso cancelar o pedido de emissão de um novo cartão e na segunda-feira a senhora vai até a agência e conversa com sua gerente...” “Não, não, eu pago a tarifa.”. Mais um assalto, dessa vez institucional.

É a vez da Claro novamente. Você consegue navegar pelo menu eletrônico até a opção “bloqueio de celular por perda ou furto”. Uma gravação informa: “ao abrir o seu chamado, você receberá um número de protocolo. Para que o seu bloqueio seja confirmado, deve enviar o número do protocolo via torpedo para a Anatel em até 24 horas”. Tá bom, mas como mandar torpedo se o seu celular foi ROUBADO??? Você explica a situação para o simpático atendente, que aparentemente percebe o absurdo da solicitação. Passa o telefone para o seu amigo, que também precisa bloquear o celular dele. Por fim, o seu amigo informa que para habilitar o seu número em um novo aparelho, será preciso apresentar um boletim de ocorrência – mas é possível fazê-lo pela internet, segundo o atendente da Claro.

Antes de dormir, você entra na delegacia virtual e, obedecendo às instruções do menu, abre dois boletins de ocorrência: um apenas para os documentos, outro para o celular. No dia seguinte, vem a resposta por e-mail: os dois boletins foram negados. Motivo da negação do segundo: a ocorrência já havia sido relatada pelo primeiro. Motivo da negação do primeiro: a delegacia só permite o registro de ocorrência de furto. Em caso de roubo, você deve se dirigir à delegacia mais próxima portando cópia do e-mail com a recusa dos boletins eletrônicos.

Como não tem impressora em casa, você ignora a ordem do e-mail, pede cinqüenta reais emprestados para a vizinha só para não ficar inteiramente desprevenida (sem cartão e sem cheque, nada de dinheiro, e o pouco que você tinha também estava na carteira) e se dirige à delegacia da Lapa.

Na recepção, explica ao oficial de plantão: “por favor, preciso fazer um boletim de ocorrência”. “O que aconteceu?”. Bem, você não imagina que vá contar toda a ocorrência de pé na mesa da recepção, então apenas indica: “assalto”. Como se você fosse surda ou burra, o oficial repete: “O que aconteceu?”. Pacientemente, você começa a narrar: “eu estava em um restaurante ontem à noite e fui abordada por um homem armado...” O oficial interrompe: “na Aimberê?” Diante da afirmativa, ele explica, cortês: “veja, este boletim de ocorrência já foi aberto na 23ª DP... A senhora pode abrir outro aqui, mas o IDEAL é que seja incluída no boletim que já foi feito lá”. Bem, que azar, mas de fato se o melhor a fazer é isso, você se dirige à outra delegacia.

Chega junto com dois dos três policiais de plantão, carregados de sacolas de lanchonete e copos de plástico. “Pois não?” “Parece que já abriram aqui um boletim de ocorrência sobre um assalto que ocorreu ontem em um restaurante na Aimberê...”. “Pode se sentar”. O policial se dirige até a televisão, muda de canal para sintonizar no jogo que está começando e some no interior da delegacia, seguido do outro que carregava as sacolas. Alguns minutos depois, o terceiro, que mexia no computador, também se dirige aos fundos da delegacia. Sozinha na enorme sala de espera da delegacia, você fica na companhia do Hino Nacional, pensando na sua “terra adorada”, no seu “povo heróico” na “clava forte da justiça”... O relógio marca a passagem do tempo: um minuto, dois, cinco, dez. O último policial, o mais bem-vestido, volta ao seu computador e continua o seu trabalho de digitação. O segundo se senta na cadeira em frente a ele. O terceiro, entre um arroto e outro do seu guaraná gelado, senta na sua cadeira e gasta mais alguns minutos assistindo ao jogo e fazendo comentários amigáveis para os seus colegas.

Imersa em pensamentos, você ouve o policial te chamar, mas ainda duvida de que finalmente tenha chegado o momento de ser atendida. Para não deixar dúvidas, ele bate palmas. Você se dirige até a mesa dele e informa quais foram os documentos roubados, enquanto ele digita lentamente os dados no computador e acompanha mais alguns lances do jogo de futebol. Em meio àquele deserto emocional, o outro policial finalmente se dirige a você e pergunta: “quantas pessoas estavam no restaurante?” “Ah, estava cheio... umas quarenta”. “Vixe... então vai longe essa história. Hoje passamos o dia atendendo esses casos. Se não fosse por isso, tava light...” O outro emenda: “bom, mas alguns devem ir até a delegacia da Lapa...” Esclareço: “eu fui até lá, mas eles me orientaram a vir aqui porque o boletim já tinha sido aberto”. Os três trocam olhares e um resmunga: “brincadeira, viu...”. Eu pergunto: “não precisava vir até aqui?” “Não, minha filha... boletim de ocorrência você pode abrir em qualquer delegacia. O que acontece é que um sempre chuta pro outro, pra falar português claro...”. “E vocês descobriram alguma coisa?”. O policial, sem tirar os olhos da tela do computador, estala a língua e resmunga: “esquece!”. Imprime o BO em três vias, você avisa que ele digitou o número da sua agência bancária errado mas ele afirma que não tem problema, não há necessidade de consertar.

Próxima parada: a loja da Claro, a única coisa que você consegue adiantar ainda durante o final de semana. Sendo cliente há dez anos e tendo adquirido o seu último celular (também por conta de um assalto) em setembro de 2006, você supõe que tenha alguma chance de conseguir um novo aparelho com a apresentação do BO. Ao pegar a senha na porta da loja, o atendente explica: “Se a senhora quiser pode ligar para a nossa Central e tentar negociar um aparelho...”. “Mas não posso fazer isso aqui mesmo na loja?” “Bom, poder pode, mas a senhora conseguiria condições melhores se negociasse com a nossa Central”. “Bom, como MEU CELULAR FOI ROUBADO, não tenho como ligar para a Central. E como já estou aqui, vou tentar negociar com a vendedora mesmo, obrigada.”

Cinqüenta minutos depois, o seu número é chamado. Você explica a situação para a vendedora, mostra o boletim de ocorrência. Ela confirma que você tem direito a um aparelho, afinal não está mais na carência, pode tirar por um real, dez reais ou até gratuitamente dependendo do modelo. Traz as opções, você escolhe e então ela pede: “preciso do seu RG e CPF originais”. Com um suspiro e o resto da sua paciência, você explica: “Então, justamente... como eu vinha te dizendo, fui assaltada e levaram toda a minha bolsa. Minha carteira, meu RG, CPF, carteira de motorista, título de eleitor, cartão do banco, talão de cheques, tudo. Inclusive, é por isso que preciso de um novo celular.” “Ah, mas a senhora não foi ao Poupatempo?” “O Poupatempo não está funcionando hoje, fui assaltada ontem às dez da noite”. “Bem, vou verificar com a gerente...”. “Olha, tenho aqui um xerox do meu RG e o documento do meu carro... isso foi tudo o que deu para salvar”. Alguns minutos depois: “infelizmente não vai ser possível... só mesmo com o original do CPF e do RG. Mas eu posso anotar num papel o número do modelo para a senhora e...” “Não se incomode, a sua anotação não vai evitar a minha dor de cabeça de ficar sem comunicação até segunda-feira e nem pegar outros cinqüenta minutos de fila para ser atendida novamente por você após ter passado o dia no Poupatempo”.

Já que não há o que fazer até a segunda-feira chegar, o jeito é pegar uma carona e ir até a casa de uma amiga para arejar a cabeça e relaxar. Mas não sem antes, no caminho, ter o carro abordado no sinal e ouvir: “cinco reais para eu não puxar o revólver...”. Que mundo cão. De um lado, os bandidos, pra quem a sua vida não tem absolutamente nenhum valor. Do outro, a lógica do mercado, eficientíssimo na hora de vender, lentíssimo na hora de resolver o seu problema; máquinas no lugar de pessoas, indiferença no lugar de humanidade. Do outro, a polícia, para quem a sua vida vale ainda menos...

Fica o gosto amargo na boca. Como diria José Simão: “hoje, só amanhã...”. Pátria amada, Brasil.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

O último sonho

Estamos no seu consultório, eu sentada em minha cadeira e você na sua, que é um trono e fica em uma espécie de mezanino, bem acima do chão.

Eu: Primeiro eu queria te perguntar: você tem se sentido confortável aí no seu trono?

Você desce do mezanino e se senta na beira da minha cama.

Você: Uma pessoa me disse que eu tenho muita dificuldade de me expressar. Achei que o trono podia ajudar...
Eu: E você ficar mais desconfortável, né? Bom, vamos lá: fiz a minha lição de casa.
Você: Você sempre faz a sua lição de casa!
Eu: Sim, mas é justamente sobre isso que eu quero falar... Estou lendo o Freud e gostando muito.
Você: E o que você está achando do Freud?
Eu: Já li quatro textos: o caso Elisabeth (você fica espantada), Uma breve descrição da psicanálise, Seis lições elementares e agora estou lendo Sobre os Sonhos.

Você se deita na cama, apoiando a cabeça sobre o braço, como se fosse uma amiga.

Você: Cristina... Cristina...

Percebo que dormi. Estou coberta. Lembro do que você me disse uma vez, quando eu comentei em uma sessão que estava como sono, vontade de deitar e dormir: “Dormir na frente de alguém é sinal de muita confiança!”.

Eu: Mas até onde eu consegui contar para você?

Encontramos minha mãe, que fala alguma coisa sobre o Charcot.

Você: E o que você acha do Charcot?
Eu: Só vi o Charcot como apoio para o Freud. Meu curso é 100% orientado para o Freud. Mas minha mãe ficou tão encantada com o Charcot que achou que o Freud é que é apoio para ele.

Enquanto falamos, estou vendo um mostruário de bijuterias. Pego na mão um par de alianças de compromisso. Fico com medo de acharem na loja que estou roubando o anel que já estava comigo. Devolvo as alianças ao mostruário.

Estamos em uma sala de espera, eu você e mais uma pessoa. Estamos vendo TV. Minha mãe está sentada na cama dela, mexendo em sua agenda. Estou de pijama. Minha irmã entra na sala com um rapaz muito magro, ela também de pijama.

Por fim, você entra no quarto da minha mãe e vocês abrem a agenda e combinam um horário para um compromisso. Penso que preciso pagá-la, lembro que estou de pijama e fico me perguntando onde está o dinheiro.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Piada interna

Roupa? Jóia? Livro?

Que nada. Arranjei um presente muito mais supimpa de Dia das Mães: uma profissão bem simplinha, que ela consegue comunicar em apenas uma palavra, e um emprego que ela vai poder resumir em uma frase. Curta.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Ciclotimia


Cheio vazio cheio vazio cheio vazio madrugada e-mail móveis desejo dia de sol preguiça fotografia dor de cabeça cama fria escrita solidão homeopatia presente do bebê amiga sumiço pão caseiro divã boas novas comentários colação de grau saudade aquele livro novo é ótimo ausente correio sono msn sem gasolina no meio da rua mais dinheiro mais trabalho menos dinheiro mais trabalho sem trabalho sem tempo será que vou te conhecer tédio macarrão esperança língua portuguesa máscara internet acabou o jornal lembranças filme dublado contas depressão lâmpada queimada passado dedetização trabalho novo cadê você música sexo postura de equilíbrio trânsito um novo amigo cadê a bolinha notícia ruim euforia blog professora do colégio silêncio princípio do prazer distância promoção futuro leveza sapato furado espanhol medo cama nova luzes o sonho é a via régia para o inconsciente insônia minha planta cresce novela das oito cães sms festa de aniversário idéias vazio cheio vazio cheio vazio.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

13 de maio

Era um sábado frio, como o dia de hoje. 13 de maio. Não fosse a minha “memória ridícula”, como você carinhosamente costumava dizer, talvez a data estivesse gravada do mesmo jeito, pela ironia do seu simbolismo. Quatro anos antes, quando pela primeira vez você sentiu a sua liberdade ameaçada pela minha presença na sua vida, foi no mesmo 13 de maio que tentou partir de mim.

Diferente daquela primeira vez, essa nossa conversa durou menos de 15 minutos. Você foi direto ao ponto e, mesmo engasgada de susto (não era a nossa “melhor fase”?), tantas vezes já vivera essa cena na minha cabeça que foi mais fácil te deixar ir. Sem emoções ou energia, quis tratar de questões práticas: “quem vai ficar com a Mimi?”. Você achou que não era hora, queria pedir desculpas. Eu não queria ouvir desculpas, então pedi pra você ir embora.

Tudo o que aconteceu nas quarenta-e-oito-horas-seguintes faz parte de um quadro semi-abstrato na minha lembrança. O tempo chutou pedrinhas pela rua enquanto eu tentava juntar algumas partes de mim. Na segunda-feira, São Paulo parou; às quatro da tarde não se via mais viv’alma. Temi por você, sozinho, talvez distraído das notícias. Liguei, pedi para ficar em casa. O hábito de cuidar de você, a intimidade já não era mais minha. E todos pareciam silenciosamente se unir à minha dor: a guerra era fora e dentro de mim.

Não sei bem quando foi que o amor acabou (alguém sabe?). Nem você sabia. Às vezes achava que fazia tempo; outras, que ainda não tinha acabado. Mas, naquele sábado, alguma coisa que meus olhos tinham visto e a cabeça ainda não tinha percebido, o meu coração já sabia.

Dizem que leva metade do tempo que se passou junto. Se assim fosse, hoje eu finalmente me livraria de você. Mas não é. Você está em mim como eu estou em você, mesmo que a vida não seja mais a mesma. Já não dói, mas esquecer é impossível.

domingo, 11 de maio de 2008

Sereia

Ela me conta que nasci com uma icterícia muito forte e, por isso, ela teve alta antes de mim. Os primeiros dias de vida passei no hospital, tomando banho de luz, de olhos tapados, berrando a plenos pulmões, “sem nenhum paninho pra me confortar”. Na hora de mamar, era entrar no quentinho do colo dela e logo dormia. Por isso a minha primeira história de ninar foi a da mamãe gata e do gatinho no hospital. O gatinho miava, miava, miava, mas a mamãe gato aparecia e dizia: “a mamãe não foi embora, a mamãe está aqui e nunca vai te abandonar”.

Com cinco ou seis anos, desenhei uma menina com os cabelos cheios de laçarotes, mas sem os braços. Ela me mandou para um psicodiagnóstico. “Fique tranqüila, está tudo bem com ela”, foi o parecer da psicóloga. Mesmo confiando no veredicto, resolveu criar a “História da Velhinha Banguela”, livro infantil escrito e ilustrado por ela, em que a “Menina Sem-Braço” (esta que vos fala), o “Joãozinho Sem-Perna” (papi), a “Menina Sem-Orelha” (minha sis) e a “Velhinha Banguela” (uma mistura das duas herdeiras reais, que se recusavam a tomar sopa com pedaços: tudo tinha que ser bem batidinho no liquidificador e peneirado pra não ficar um fiapinho ou bolotinha) viviam numa casa administrada pela zelosa Polva (síntese da própria e da nossa babá), que “lavava, passava, cozinhava, encerava, ava, ava, ava” e, ao fim do dia, mal tinha forçar para assistir à novela das oito. Foi o seu jeito de mostrar pra gente que todo mundo tinha sua contribuição a dar...

Sempre alimentou a nossa imaginação com histórias fantásticas e, ao longo dos anos, se especializou em “aumentar um ponto” em cada conto que contava. Não é por mal, simplesmente não consegue refrear a sua criatividade. A surdez foi piorando com os anos e com isso o sinal de recepção ficou ainda mais sujeito a captar as informações de um jeito que é “só dela”. Foi assim que criei a expressão “randomicamente avoada”: ora a mais atenta dos ouvintes, ora a mais distraída dos mortais. A piada favorita do meu pai é pedir para a minha mãe explicar a alguém o que eu faço no trabalho (vamos dizer que não é muito fácil de contar, menos ainda de lembrar, mas ela consegue criar a cada relato uma versão mais interessante).

Pela sua total incapacidade de se lembrar do nome dos médicos e a sua total indiferença em gastar qualquer energia mental com algo que ela considera supérfluo, convencionou se referir a todos eles como “Dr. Coisorino”. Mas não se deixem enganar por essa pinta de mãe-bicho-grilo: me ensinou direitinho a passar protetor solar, evitar frituras e carregar sempre um guarda-chuva na bolsa. Com dez anos, me mandou fazer um curso de datilografia. Buzinava no meu ouvido: “tem que ler jornaaal!” e até hoje paga pra mim uma assinatura de revista semanal, com medo de eu ficar muito desconectada do mundo e da realidade. Também não deixa de me ligar pra anunciar a previsão do tempo quando sabe que vem vindo uma frente fria ou chuva forte. Quando eu ainda morava com ela, mais ou menos uma vez por mês tentava driblar a minha tendência natural à bagunça deixando um post-it na porta do meu quarto: “por favor, me arrume!”. Fechava a porta do meu banheiro pra eu perceber que por lá “parecia ter passado um filhote de São Bernardo”. Quando fui morar sozinha, me deu uma carta com instruções sobre como cozinhar feijão e algumas dicas de sobrevivência: “abriu, fechou; sujou, limpou; usou, guardou”. Infelizmente essa batalha ela não venceu, mas acabou por aceitar a minha bagunça (desde que bem longe dos olhos dela).

Sempre foi uma esteta. Não consegue olhar para um prato de frutas sem dizer: “que coisa maravilhosa! Parece um Cézanne!”. Na minha adolescência de contestação, eu a provocava dizendo: “estética, estética, estética!”. Não me conformei quando, na minha primeira ida ao Teatro Municipal, ela proibiu a minha calça jeans e me obrigou a usar uma saia. Aliás, ainda um cotoco de gente, quando voltava da escola coberta dos pés à cabeça com cola, areia e tinta guache, ela dizia: “Cris, você está limpérrima!!!” e eu revidava, ofendida: “não gosto que falem assim comigo!”. Minha adolescência chegou cedo... E dá-lhe jogo de cintura para lidar com o meu famoso “emburramento”, aquele que me fazia passar horas sem falar, sem interagir, sem reagir cada vez que eu me sentia contrariada. Ela morre de rir até hoje ao lembrar do rosto grave da professora de flauta, quando a chamou para conversar sobre esses meus “episódios”: “há alguma coisa errada com a Cristina...”.

Sempre se preocupou com a minha excessiva sensibilidade e me via no enredo mitológico da “Princesa e a Ervilha”, aquela que dormiu uma noite sobre vinte colchões, vinte lençóis, vinte cobertores, vinte travesseiros e ainda assim conseguiu sentir a pequena ervilha crua colocada pela rainha no estrado da cama (esse era um teste para detectar se a forasteira que batera no meio da madrugada no portão do castelo era mesmo uma “verdadeira princesa”). Quando criança eu era especialmente seletiva com relação a roupas (nada de babados, lacinhos, bolinhas, fitinhas, mangas bufantes, elásticos, detalhes “cheguei”) sapatos (não podiam apertar, nem ter lacinho, nem botão, nem fitinha e invariavelmente começavam a machucar o meu pé dois minutos depois que ela assinava o cheque na loja), comida (não gostava de salada, nem de legumes, nem de frutos do mar, nem de rabada, nem de língua, nem de fígado, nem de frutas, nem de bichinhos fofinhos) entre outros. Assim, ela criou em nossa fantasia a cadeia de lojas infantis “Para Meninas Enjoadas”, aquela que atenderia a todas as minhas intermináveis exigências e tornaria a vida dela um pouco menos complicada.

Vibrava junto comigo com as músicas do Balão Mágico. As suas preferidas são “É tão lindo” e “Tia Josefina”: adora cantar sobre os “bigodes de foca, nariz de tamanduá e orelhas de camelo” e sobre a tia que “dizem que é lelé da cuca, mas [..] é gente fina e companheira, bota a camisola e uma peruca, faz um baita chuca-chuca e toma mamadeira”. Aliás, em seu imaginário sempre habitaram os desenhos animados e as histórias em quadrinhos. Adora o desenho do Pica-pau barbeiro, deslizando perigosamente a lâmina sobre o rosto de Leôncio enquanto trina, esganiçado: “Fíííígaroooo!”. Quando me via em longas conversas no telefone sem-fio, dando voltas e voltas em torno do sofá, dizia que eu estava na “sala de preocupações do tio Patinhas”. Também morre de rir com o alter-ego de Luluzinha, a “Pobre menininha”. Despertador? Que nada. Quem me acordava de manhã eram as “pulgas sapateadoras”, que faziam hábeis coreografias no meu couro cabeludo até que eu conseguisse abrir os olhos e começar o dia. No auge da sua chocolatria, concebeu em sua imaginação um container caseiro que liberasse apenas um “chocolate Charge” por dia. Depois, capitulou: já podia se imaginar descontrolada, dando chutes de pijama na tal máquina às quatro da manhã.

Quando éramos crianças, ela abriu uma conta na Livraria Horizonte para comprarmos os livros que quiséssemos, a qualquer hora. É lógico que essa regalia não durou muito, pois o prejuízo foi grande. Mas ela continua sendo a minha maior fornecedora de livros. Quase sempre me esqueço de devolver e ela reclama: “os livros vão, mas nunca voltam...”, mas continua me emprestando. Não conheço ninguém que tenha uma sede de conhecimento maior do que ela. Lê jornal, revista, bula de remédio, qualquer coisa que cair na sua mão. Se interessa por física quântica, a história da Inglaterra, neurociência, Calvin e Haroldo, Doris Lessing, Guimarães Rosa, Amós Oz, García Márquez, literatura japonesa, israelense, americana, italiana, francesa, russa... Ao mesmo tempo, não tem o menor compromisso com a erudição. Escolhe muito bem o que merece ser absorvido e o que pode ser “deletado”. A soberba definitivamente não é um dos seus defeitos e o seu maravilhamento com relação à vida é inesgotável.

Essa é minha Mãe Sereia, minha referência e porto seguro. Foi o seu olhar amoroso, atento, respeitoso, generoso e compreensivo que primeiro me fez quem sou. Esse amor tão grande e ao mesmo tempo tão singelo que ela conseguiu resumir em uma canção de ninar feita para mim há tantos anos:

“Meu amor, meu amor
Eu gosto tanto de você
Eu vou ficar no seu pertinho
Meu amor, meu amor”

sábado, 10 de maio de 2008

O bom selvagem

Onde foi parar a paixão? Aquela dos olhos brilhantes, da boca seca e do coração acelerado? Será que ficou para trás, enterrada no passado junto com os nossos 18 anos?

Queria saber quando foi que nos tornamos todos tão comedidos, medrosos, arredios, secos, distantes, impenetráveis, indiferentes.

Será que as desilusões da vida nos embotaram? Será que perdemos a capacidade de simplesmente nos encantar com o outro? Será que perdemos a coragem de nos expor, de nos entregar?

Hoje todos os movimentos parecem meticulosamente calculados. Não há mais espontaneidade. Há sempre o cuidado para não assustar o outro, para não demonstrar demais. Ninguém se permite colocar em uma situação de vulnerabilidade.

Antigamente, a paixão nos dominava. Perdíamos a fome, o sono, não conseguíamos nos concentrar na escola, no trabalho. Éramos tomados de corpo inteiro, doentes, febris, como se fosse um caso de vida ou morte.

Dizíamos que a paixão era cega. A excitação crescia de forma mística, guiada pelas nossas fantasias. Entregávamo-nos às sensações: o leve arrepiar da pele ao toque, o frio-calor de bocas, línguas e salivas, o leve suor nas axilas, o rubor nas faces. Cheiro, gosto, toque, sussurro no pé do ouvido, olhos famintos.

Hoje andamos muito bem aparelhados com nossas lupas, buscando no outro as mais insignificantes imperfeições, cotejando-o com o nosso script, analisando os prós e os contras, apalpando e pondo de lado como uma fruta madura demais. Adiando eternamente o momento da verdadeira entrega, deixando-nos esmagar pelo tédio, pela falta de humor, pelo cinismo, pela monotonia.

Quando é que nos tornamos assim inatingíveis? Quando foi que penetrar a intimidade de alguém se tornou esse processo kafkaniano, repleto de pré-requisitos, guichês, carimbos, segundas-vias?

Pra onde foi o “tempo da delicadeza”? Sucumbiu ao “lirismo comedido, funcionário-público”? Onde estão as nossas “cartas de amor ridículas”?

Se isso é ser civilizado, saudável, bem-ajustado, sensato e ponderado, quero mais é voltar a ser selvagem.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Sobre a traição

Há muito tempo tenho vontade de escrever alguma coisa a respeito da traição, mas minha volta à vida solteira provocou de tal forma um processo de suspensão de todas as minhas verdades que passei a achar que certas perguntas não merecem ser respondidas hipoteticamente. Há questões que só podem ser inteiramente avaliadas e ponderadas quando vividas. Então, falar sobre traição, em última instância, implica estar em uma relação.

Mas Manélson me mandou um e-mail que eu considerei tão desaforado (o desaforo não foi de Manélson, é claro, ela só estava partilhando o tal manifesto com as amigas) que achei que estava na hora de colocar a minha voz no mundo sobre o assunto. Meus pais sempre acharam que eu devia ter feito Direito (mais uma pulga atrás da minha orelha vocacional). Ô vontade de argumentar que não acaba nunca... Enfim, senti vontade de organizar alguns pensamentos dispersos sobre o tema e achei que o texto oferecia vários ganchos para isso.

O tal texto é supostamente assinado pelo Arnaldo Jabor, mas nem vou levar isso em consideração, primeiro porque a quantidade de textos que circula pela internet e cuja autoria declarada é absolutamente fajuta é espantosa; segundo porque não pretendo fazer dessa reflexão um ataque pessoal ao autor (suposto ou real) desse texto, até porque tenho certeza de que ele representa a opinião de muitos homens e mulheres sobre o assunto.

Pra começo de conversa, é bom dizer que o texto se propõe a “ajudar as mulheres a entenderem os homens e, enfim, pararem de tentar nos mudar com métodos ineficazes” (parece que já li isso em algum lugar...).

Esse poderia ser mesmo um serviço de utilidade pública, já que os homens reais que queremos entender dificilmente se dispõem a esclarecer as nossas eternas – e mais do que justificadas – dúvidas. Além disso, dizer que tentamos mudá-los com métodos ineficazes leva a entender que há métodos eficazes para tentar modificá-los. Seria um começo bem promissor.

Infelizmente, na seqüência, e, sem fazer uso de meias-palavras, o autor desce o porrete: “não existe homem fiel” e “isso se aplica a 99,9% dos homens baianos e brasileiros”. Em seguida, diz que “a traição do homem é hormonal, efêmera. [...] Não é como a da mulher. Mulher tem que admirar para trair; ter algum envolvimento”.

Péra lá, minha gente. Se a situação realmente fosse essa, eu perderia completamente a minha fé no sexo oposto. Não vamos tapar o Sol com a peneira: todos nós estamos sujeitos a trair e a ser traídos em algum momento da vida (e vocês estão ouvindo isso da boca de alguém que nunca traiu e, verdade seja dita, nunca teve vontade de trair). Daí a defender que essa afirmação hipotética, condicional é uma verdade absoluta, há uma enorme distância. Também pode ser que a traição tenha se tornado algo banal, generalizado. Mas não concordo em torná-la um atributo essencialmente masculino e nem em aplicá-lo indiscriminadamente a todo esse contingente populacional.

Outra coisa que não pode ser afirmada de modo algum é que a traição masculina é “hormonal, efêmera” e a da mulher requer “admiração e envolvimento”. Eu não disponho de tantos recursos estatísticos para afirmar a porcentagem de homens e mulheres que se encaixam em cada categoria, mas me parece óbvio que um homem pode primeiro admirar e depois trair e se envolver e uma mulher pode ceder a uma tentação carnal, efêmera sem qualquer envolvimento. Isso, para mim, é um machismo às avessas. Os homens ainda não estão convencidos de que as mulheres também sentem desejo sexual por outros homens e podem, sim, trair sem um bom motivo que não seja o puro tesão. Não é orgulho para ninguém, mas também não dá pra fingir que não aconteça.

A próxima afirmação que merece destaque é que “a traição tem seu lado positivo. Até digo, é um mal necessário. O cara que fica [...] sem trair é infeliz no casamento, seu desempenho sexual diminui [...], ele fica mal da cabeça. Entenda de uma vez por todas: homens e mulheres são diferentes. Se quiser alguém que pense como você, vire lésbica [...] ou case com um viado enrustido que precisa de uma mulher para se enquadrar no modelo social”.

Me parece óbvio que o autor do texto quis usar o humor para defender o seu ponto de vista, mas confesso que não me diverti nem um pouco com esse parágrafo. Mais uma vez, é verdade que há casais que conseguem viver bem em um esquema de relacionamento aberto e se beneficiar do fato de terem experiências sexuais com outros parceiros. É verdade, também, que outros casais que não têm esse tipo de pacto já conseguiram superar uma dolorosa experiência de traição e usá-la em favor do relacionamento, tornando-o mais autêntico, assumindo-se como pessoas imperfeitas, abrindo-se para a imprevisibilidade da vida. É verdade, ainda, que há casais em que um trai sistematicamente e o outro é traído e, uma vez que a traição não é descoberta, isso não afeta o casamento. Todas essas afirmações são verdadeiras. Daí a afirmar que o homem que não trai é infeliz no casamento e seu desempenho sexual diminui é o fim da picada... É tentar usar os fins (infundados) para justificar os meios (torpes). Se o homem é infeliz no casamento ou não se sente satisfeito com a sua parceira sexual tem mais é que se separar. E “entendam de uma vez por todas”: ninguém “vira lésbica”. E ninguém é lésbica porque quer ter ao seu lado “alguém que pense como você”. Supor que não exista traição em relacionamentos lésbicos e que todos os motivos de tensão existentes em uma relação hétero sejam automaticamente eliminados em um relacionamento homo é de uma ignorância atroz. E nunca ouvi uma sugestão mais estapafúrdia do que casar com um “viado enrustido”. Toda a minha argumentação vai na direção da liberdade (não na sua acepção mais óbvia ou comum, como tento demonstrar mais adiante), por isso viver um casamento de fachada e não assumir a sua sexualidade é, definitivamente, um conselho de alguém que não preza essa fundamental dimensão da existência humana. (Mas lembrem-se: isso não é um ataque pessoal ao talvez-pseudo-Jabor!)

Mais adiante, nosso amigo filosofa: “Todo ser humano busca a felicidade, a realização. A mulher se realiza satisfazendo o desejo maternal, com a segurança de ter uma família estruturada e saudável, com um bom homem ao lado que a proteja e lhe dê carinho. [...] A realização pessoal dele vem de diversas formas: pode vir com o sentimento de paternidade, com uma família estruturada, etc. mas nunca vai vir se não puder acesso a outras fêmeas [...].”

Pra não soar repetitiva, retomo meus principais contra-argumentos: concordo que todo ser humano busca a felicidade, discordo de que a realização da mulher se limite à satisfação do desejo maternal, segurança, família e um bom homem. Mulher sente desejo sexual tanto quanto homem. E homem, tanto quanto mulher, também pode precisar dos itens anteriores para se realizar. Quanto a ter “acesso a outras fêmeas”, uma das principais chatices da vida adulta é constatar o fato de que escolhas implicam renúncias. Todo homem tem direito a ter acesso a quantas fêmeas quiser; basta não se comprometer com apenas uma. E o mesmo vale para as mulheres.

Vejam qual é a imagem de homem perfeito contemporâneo traçada pelo meu interlocutor: “Os homens perfeitos de hoje são aqueles bem desenvolvidos profissionalmente que traem esporadicamente (uma vez a cada dois meses, por exemplo), mas que respeitam a mulher [...].”

Se trair a cada dois meses é um exemplo de como se respeita uma mulher, quero esse homem perfeito longe de mim.

Há ainda outra máxima a respeito dos homens que as mulheres precisam conhecer: “90% dos homens não querem nada sério. Os 10% restantes estão momentaneamente cansados da vida de balada ou estão ficando com má fama por não estarem casados ou enamorados; por isso procuram casamento.”

É verdade que, para quem vive uma vida de mulher solteira, tem sido muito difícil encontrar um homem que queira levar um relacionamento a sério. Por outro lado, tenho a felicidade de contar com vários amigos que, embora obviamente não deixem de desejar sexualmente outras mulheres, vivem relações estáveis e apaixonadas com mulheres maravilhosas e definitivamente não querem abrir mão dessa vida. Se realmente há homens que procuram casamento por estarem com má fama, meu conselho para eles: não caiam nessa. Prefiro continuar sozinha e ver todas as minhas outras amigas solteiras ficarem para titia do que mal-acompanhadas. Vade-retro!

Por último, cabe lembrar a verdade ululante que nosso amigo fez questão de enfatizar em seu discurso: “O homem é capaz de te trair e de te amar ao mesmo tempo.”. Verdade inconteste. Assim como é possível amar duas mulheres (ou dois homens) ao mesmo tempo. Assim como é possível não amar sua mulher e traí-la com uma mulher que você ama, ou não amar ninguém, nem mesmo a você mesmo. O que está em jogo, para mim, não é o quanto ser fiel ou infiel é sinal de amor ou desamor, e sim o quanto a traição está ou não no campo das escolhas – e o que ela implica.

Embora não fosse a minha intenção comentar um por um cada um dos trechos do manifesto em favor da traição masculina, acabei sentindo necessidade de fazê-lo antes de partir para o que eu realmente gostaria de falar sobre traição. Vocês hão de concordar que esse e-mail dá um bom pano pra manga, paletó, colete e terno completo.

Tenho vontade de falar, primeiro, sobre uma impressão geral sobre esse tipo de argumentação. O que me impressiona é o determinismo que esse texto revela. Dizer que os homens “são assim” e que as mulheres “são assado” me parece uma generalização caricatural que ignora aquilo que é tão próprio da natureza humana: a singularidade. Aqui tenho que fazer um mea culpa: eu mesma vivo chamando a atenção para as famosas diferenças entre homens e mulheres, achando graça dessa querela insolúvel que se trava entre os de Marte e as de Vênus. E acho, mesmo, que via de regra homens e mulheres são diferentes. Acho, também, que essas diferenças dão conta de boa parte da graça da vida e dos relacionamentos. São o veneno e o remédio. Mas jamais aceitaria que me impingissem determinado comportamento sob a categórica afirmação: “ela é mulher, toda mulher é assim”. E o mesmo diria a respeito de qualquer homem.

Para além da singularidade humana, essa linha argumentativa parece ignorar uma das mais caras e inevitáveis dimensões da existência humana: a liberdade. Sem ter medo de soar repetitiva, cito Sartre, sempre ele: “o ser humano está condenado a ser livre”. Que ninguém atribua suas escolhas a determinadas características e condições pré-determinadas (por exemplo, hormônios!). Sartre também disse que cada um de nós nada mais é do que o resultado de nossas ações. Então, ninguém trai ninguém porque “é homem”, e sim porque escolheu trair.

Além disso, em seu artigo “O existencialismo é um humanismo?”, Sartre nos mostra que nenhum homem é livre se toda a humanidade também não o for, pondo por terra a definição mais tosca de liberdade que diz que “a de um acaba onde começa a do outro”. Isso não é liberdade, é demarcação de território. Liberdade é a infinita capacidade – e necessidade – de escolha que cada um de nós deve fazer a cada segundo da vida e a assunção das conseqüências que cada escolha implica. Corro o risco de simplificar demais um dos pilares mais significativos da obra de Sartre e do pensamento ocidental do século XX. Prefiro ficar por aqui e recomendar a leitura do artigo a quem desejar se aprofundar no assunto.

Vamos falar português claro: ser traído é uma merda. Ninguém deseja isso para si. Só isso já dá uma boa dica sobre se trair é ou não é legal. Ainda assim, as pessoas traem, e pelas mais diversas razões. Foi só quando ouvi da boca de uma senhora dos seus cinqüenta anos, casada, inteligente, coerente, articulada, que “é praticamente impossível pensar que alguém que viva um relacionamento estável e de longa duração não vá trair o parceiro em algum momento da vida” que a minha ficha caiu. A carne é fraca, às vezes o corpo pensa mais rápido do que a cabeça ou o princípio do prazer fala mais alto do que o da realidade. Às vezes é mais fácil acreditar que “é preferível trair minha mulher do que deixá-la”. Aliás, certamente há mulheres que pensam assim. E homens. E alguns deles (homens e mulheres) provavelmente têm razão: trairão esporadicamente (não uma vez a cada dois meses!) para suportar os momentos de crise do casamento e com isso conseguirão, em alguma medida, preservar a relação e seguir adiante.

Ainda assim, por mais que a traição – e o perdão – façam parte da vida, pra mim o que faz toda a diferença é a distância entre admitir a sua possibilidade (“todos nós estamos sujeitos a trair e ser traídos”) e afirmar a sua inexorabilidade (“todo homem é infiel”). Somos, sim, falíveis. Mas, assim como todo homem busca a felicidade, busca também a auto-superação. Que ninguém embarque em uma relação sem a convicção de que fará tudo o que está ao seu alcance para fazer deste um encontro verdadeiro, autêntico, honesto, digno, respeitoso.

E quando a vontade de trair se tornar insuportável, acho que isso deve ser tomado como um sinal de alerta e um bom pretexto para rever a relação. Às vezes o amor acaba. E só isso já é suficientemente doloroso, para quem não ama mais e para quem deixou de ser amado. Não há por que melar uma história de amor que deu certo (dar certo não é sinônimo de ser eterno) com um fim desrespeitoso por pura falta de coragem de partir ou deixar o outro ir.

Para concluir (sem nenhuma pretensão de ter esgotado o assunto), quero deixar registrado que nem tudo o que escreveu o tal defensor da traição masculina precisa ser descartado. Selecionei dois trechos do manifesto que me parecem cheios de sabedoria, e os deixo aqui como um convite à reflexão:

“O segredo é dar espaço para o homem viajar nos seus desejos (na maioria das vezes, quando ele não está sufocado pela mulher ele nem chega a trair, fica só nas paqueras, troca de olhares).”

O segredo é dar espaço para homens e mulheres vivenciarem os seus desejos. Casamento não é sinônimo de morte cerebral. Todos nós temos pensamentos íntimos, desejos secretos, fantasias que merecem ser preservadas e cultivadas no recanto da nossa privacidade. Isso sim, me parece algo fundamental para garantir a felicidade de um casal. E é também uma boa dica para os ciumentos patológicos que sufocam os seus parceiros com cobranças de uma irreal exclusividade de pensamentos e ignoram a necessidade que todo ser humano tem de, como bem disse o nosso amigo, “viajar”. Em pensamentos.

É bom lembrar que “desejo” é um conceito tão amplo e complexo quanto a “liberdade” (estou me lembrando da minha professora substituta de psicanálise perguntando para uma classe atônita: “vocês já viram desejo?” – como se perguntasse “posso considerar matéria dada?”). Por ora vale lembrar aquela famosa frasezinha que encerra uma boa dose de sabedoria: o desejo nasce da falta. Como ninguém nasceu grudado, cada um tem mais é que exercitar as suas atividades, ir atrás dos seus interesses, sair de vez em quando com os seus próprios amigos ou sozinho mesmo, viajar sozinho – por que não? – e continuar existindo como um indivíduo inteiro. Fácil falar, difícil fazer, algumas mulheres vão falar. Mas sem dúvida é algo vital não só para a saúde do relacionamento, mas para a saúde mental de qualquer pessoa.

“O que você procura pode ser impossível de achar, então, procure algo que você pode achar e seja feliz ao invés de passar a vida inteira procurando algo indefectível que você nunca vai encontrar.”

Concordo em gênero, número e grau. Como eu costumo dizer: viva os encontros que a vida lhe oferece, independente de eles parecerem certos ou errados.

I rest my case.