sábado, 17 de outubro de 2009

Analfa

Acredite se quiser, em um tempo não muito distante bastava um cidadão saber escrever o próprio nome para ser considerado alfabetizado. O conceito de “analfabetismo funcional” mostra o quanto nosso entendimento sobre a complexa inserção social do sujeito em um meio letrado e grafocêntrico se alargou. Saber assinar um nome definitivamente não é sinônimo de saber ler e escrever, e mesmo quem domina um sistema alfabético ou é capaz de decodificar palavras e frases em um texto escrito não necessariamente sabe fazer um uso social, contextualizado, real e competente da leitura e da escrita.

Como profissional da área de letras e de educação, uma das minhas grandes preocupações recai justamente sobre a ampliação das possibilidades de letramento, ou seja, de inserção e participação efetiva dos cidadãos nas práticas sociais letradas. Confesso, no entanto, que como “mulher solteira” outra sombra paira sobre o meu quase inabalável otimismo e ocupa grande espaço na minha lista de perplexidades: o “analfabetismo emocional” da minha geração. Tome-se, por exemplo, um diálogo real, colhido recentemente em contexto de paquera entre dois jovens adultos, poucos minutos depois de terem se conhecido:

Ele: Hum... Adorei você... Onde você mora?
Ela: ... Mas já???
Ele: Já o quê, ué... Tô só perguntando onde você mora.
Ela: Hum, tá... Moro na Vila Madalena.
Ele: Posso te levar para casa?
Ela: Mas já???
Ele: É... Pra gente ficar juntinho, numa boa...
Ela: Olha... Não me leva a mal não... E desculpa pela generalização... Mas como vocês, homens, são apressados!
Ele: Ué, mas não é pressa, é vontade...
Ela: Ahn, sei...
Ele: E, depois, eu não posso pedir o seu telefone e combinar de te encontrar amanhã, né???
Ela: ...Não? Por que não???
Ele: Ah, primeiro que eu não ia nem saber onde te levar...
Ela: ... [imagina se não tivesse “me adorado”...]
Ele: ... Depois porque seria, sei lá, assumir um compromisso para o qual talvez eu ainda não esteja preparado. E então, vamos?


Líderes de movimentos sociais, representantes da sociedade civil e do governo, autoridades responsáveis pela elaboração de políticas públicas: como ensinaremos a esses jovens que se relacionar não é simplesmente trocar fluidos corporais, que sentir e demonstrar interesse genuíno não é desonra nem doença e que conhecer alguém para além da superfície, mesmo que apenas para fins recreativos, não arranca pedaço?

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Meu primeiro amor

Porque o amor é complexo, difícil de explicar e impossível de medir, e porque ele se apresenta sob as mais diversas formas, nas mais variadas circunstâncias, é comum que cada um de nós tenha mais de um “primeiro amor”: o primeiro amor da infância ou da adolescência, o primeiro amor não-correspondido, o primeiro amor que deu certo, o primeiro “grande amor”, o primeiro amor adulto... A história que conto aqui é sobre um desses primeiros amores. Se o chamo de “primeiro” é porque, além de ocupar a gavetinha mais antiga nas minhas memórias daquele sentimento que com a vida aprendi a chamar de “amor”, foi com ele que vivi pela primeira vez a delícia, o êxtase e o arrebatamento de ser correspondida. Aquele dia em que céu e terra se juntam e você percebe, nos olhos do menino da oitava série, que também é especial para ele.
Nossa história começa em um acampamento de férias. Da primeira vez, que eu me lembre, só tivemos uma conversa, rápida, sobre lagartixas. Eu o achei incrível: bonito, inteligente e espirituoso. Não que eu soubesse, aos onze anos de idade, o que era ser espirituoso... Mas achei demais que aquele menino de treze anos gastasse o seu precioso tempo comigo, explicando, diante da minha expressão de genuína admiração e asco, que era possível enxergar os órgãos internos da lagartixa se você a virasse de barriga para cima. (Conhecem a teoria da vocação precoce? Esse aí virou médico...)
Não houve mais nenhum contato naquela temporada. E, como naquele tempo a minha autoestima era bem mais baixa do que eu, o simples fato de uma outra garota também gostar dele me fez achar que eles ficariam juntos e não havia esperança para mim.
Um ano se passou e, mais uma vez, nos encontramos na temporada de janeiro. Dessa vez, algo diferente aconteceu... Primeiro, torci com todas as forças para cairmos na mesma equipe na “gincores”. Bingo! Lá estávamos nós, na equipe azul (“Azul ODD líquido” era o nome da nossa equipe, e o hino era uma paródia de “Quero ver / Você não chorar...”), fazendo cartazes, bolando fantasias e montando carros alegóricos (a proposta era um tanto carnavalesca, e um prato cheio para a minha criatividade-em-busca-de-meios-de-expressão). Depois, quando fiquei gripada, torci para ele ficar também (afinal, se eventualmente rolasse um beijo, eu não queria carregar o fardo de lhe ter transmitido um vírus!). Bingo de novo. Os astros estavam ao meu favor!
Tenho lembranças doces daquela semana, embora muito esmaecidas pelo tempo. O que restou, sobretudo, foi a sensação maravilhosa de que alguém me notara na multidão: andávamos de mãos dadas, ríamos, conversávamos, estávamos sempre juntos, para cima e para baixo. Para oficializar a união, só faltava mesmo o beijo acontecer. E lá estava o bailinho de sábado à noite, para garantir clima e ambiente perfeitos.
Clima e ambiente perfeitos, com um detalhe: o meu medo de beijar. Ah, sim, eu era BV! E que fique claro aqui que não falávamos de um “medinho bom”, do tipo frio na barriga que antecede algo que desejamos muito. Estava mais para pavor, paúra, fobia, pânico, horror. Sim, sim, eu preciso confessar: amarelei.
A música era “Don’t cry”, do Guns n’ Roses. A luz era baixa, a pista estava cheia e os amigos na torcida. Na minha barriga, misturados o prazer de um contato físico tão próximo e o horror da iminência do momento de trocarmos fluidos salivares. Assim que a música acabou, meu pobre primeiro amor, arriscando um assunto qualquer para quebrar o gelo, lançou: “Puxa, que horas será que são?...”.
Imbuída do mais genuíno pânico, balbuciei “Não sei! Vamos perguntar?” e dei no pé. Ele foi me achar quase meia hora depois, enfiada no alojamento feminino, grudada no meu ursinho de pelúcia que tinha ganhado o nome de “Pacato” em homenagem a ele (era esse o seu apelido no acampamento). Burlando a barreira das monitoras, ficou em pé ao lado do meu beliche, segurando minha mão e tentando me convencer a sair com ele do alojamento. Em vão... Algum tempo depois, uma das monitoras descobriu o intruso e o expulsou de lá. Eu, mais aliviada e frustrada do que nunca. Será que ainda tínhamos algum futuro?
No dia seguinte, ele mal falou comigo. Eu não podia culpá-lo... Nem eu mesma sabia explicar minha atitude! No ônibus de volta para São Paulo, incumbi uma amiga de pedir o telefone dele. Tenho até hoje o papel guardado, os números quase apagados escritos a lápis...
Começamos uma época gostosa de telefonemas e cartas de amor. A primeira dizia: “beijos da garota que gosta muito de você”. A segunda: “beijos de quem te adora”. A terceira: “Te adoro muito!” Na quarta já nos amávamos e jurávamos amor eterno... O próximo passo, natural e inevitável, era nos encontrarmos de novo. Lá foi ele me visitar. À noite, fomos à festa de aniversário de uma amiga. Eu e “meu namorado”... Tudo lindo, tudo o que a então garota da oitava série podia querer, exceto por um detalhe: o tal beijo que ainda não havia acontecido. Quando a mãe dele veio buscá-lo, no fim da festa, eu o abracei e disse no seu ouvido: “Não tenta nada, pelo amor de Deus”... Como estava difícil sair da latência e me apropriar daquele corpo!
Uns dois meses depois, fomos viajar de férias, cada um com a sua respectiva família. Para o retorno, tínhamos a promessa de finalmente concretizar o nosso amor, o nosso namoro, o nosso primeiro beijo... Sim, está certo quem disser que eu amarelei de novo. Dessa vez, de um jeito que eu levei muitos anos para entender: transferi o meu horror, medo, pânico, fobia e asco do beijo para o seu mensageiro. Na volta da viagem, por telefone, terminei tudo. Ele, atônito. Eu, aliviada. E, dessa vez, nem um pouco frustrada.
(Pausa para agradecimento público à minha mãe que, notando que eu era uma adolescente “complicadinha”, logo me encaminhou para uma análise... Mãe, o que teria sido de mim sem essa sua intervenção precoce, hein?)
A inversão dos meus sentimentos se deu de forma tão surpreendente quanto eficaz, a ponto de, no meu aniversário do ano seguinte, ao saber que ele aparecera de surpresa no meu prédio, eu sequer tê-lo convidado a subir (não me orgulho disso, é claro, mas há certo jogo de cintura que a gente realmente só adquire no correr da vida...).
Passamos uns dois anos sem nos falar. E então, com o necessário distanciamento da situação – e ainda BV! –, pude perceber que eu perdera uma coisa preciosa e tive vontade de recuperá-la. Mas, como a fila anda, a essa altura meu primeiro amor já estava acompanhado há tempos.
Voltamos a nos falar com certa frequência, ele chegou a me visitar em casa e tivemos algumas conversas um tanto perturbadoras. Um dia, movido por um impulso, ele ligou para me comunicar que terminara com a namorada e que passaria para me pegar em casa no final da tarde. Pavor, pavor! Arrebatamento...
Uma adolescente "complicadinha" como eu não poderia ter encontrado um primeiro amor mais generoso. Pois com toda a paciência do mundo e sem se ofender ele suportou o meu ataque de riso histérico enquanto, aos poucos, vencia as minhas resistências para finalmente selar a nossa ligação com um beijo, com quase seis anos de atraso. E, com o seu humor peculiar, comentou: “viu? Não é nada complicado... Agora só falta você parar de rir!”.
Voltei para casa em estado de graça e não preguei o olho a noite toda (será que foi por isso que não passei na primeira fase da seleção da EAD no dia seguinte? Pelo menos no vestibular do domingo eu consegui a pontuação mínima para passar para a segunda fase...). Fui descobrir no dia seguinte que o beijo tão esperado não se repetiria. Afinal, nosso tempo passara. E, com o passar dos anos, descobrimos sem tristeza nem arrependimento que a nossa história seria escrita assim: Certa vez, um dia, em um tempo distante...
Felizmente, por termos cada um a sua parcela de culpa nos desencontros, soubemos nos perdoar e preservar um carinho desses que nunca se perde, mesmo que fiquemos anos sem nos falar. Aliás, em um desses recessos prolongados, o danado me deixou para trás na Bozocorrida da Vida Adulta, comendo fumaça... Chegou aos 30 anos casado, ajuizado e com dois filhos lindos! Como, aliás, eu sempre imaginei que aconteceria.
Em um dos nossos recentes cafés, gastamos alguns minutos tentando lembrar, com uma gostosa nostalgia, quando teria sido o momento exato em que nos “vimos” pela primeira vez. Comentei sobre o encontro no acampamento, sobre a conversa da lagartixa... Mas ele insistiu que não, que ele havia me visto antes que eu o notasse. E completou: “Foi na pracinha, no ponto de saída do ônibus para o acampamento. Lembro de ter te achado uma coisa de louco, e pensado: ‘essa menina é de outro mundo! De outro planeta’. Para mim, você estava em outro patamar...”.
Guardei essas palavras como uma joia no meu coração, assim como a mensagem que ele me enviou naquela noite, dizendo o quanto estar em minha companhia soava “familiar”, como se o tempo e o espaço fossem incapazes de produzir entre nós uma sensação de distanciamento. E que provavelmente ele poderia dizer isso de pouquíssimas pessoas ao longo da vida...
Meu primeiro amor foi assim: me olhou, me viu, achou que eu era de outro mundo e, mesmo com todas as curvas da vida, nunca mais foi embora de mim.