sábado, 30 de maio de 2009

Salomão, uma história de amor

A primeira vez que vi Salomão, ele era uma coisa verde e amorfa na prateleira da loja de brinquedos. Dividida entre um piupiu e uma girafa, resolvi tirar a prova puxando pela pata aquele bicho cuja identidade eu não conseguia decifrar. Não sei se por vergonha ou por falta de jeito, Salomão se enroscou na bicharada e o zoológico inteiro veio abaixo. Hoje sei que ele não fez por mal, mas naquele instante o meu embaraço só me fez olhá-lo com mais desconfiança.

Devolvida a fauna à prateleira – obrigada, desculpe, Ah, o pinguim!, obrigada! – parei para examinar a espécime que se encontrava em minhas mãos. Corpanzil de pelúcia com uma fuça gigante, olhos maiores ainda, crina vermelha de trapos de pano, pernas longas e curvadas de aranha. Salomão não se encaixava em nenhuma das categorias animais do meu repertório. Havia nele algo de patético que chegou a me comover por alguns segundos, a ponto de eu esboçar alguns passos em direção ao caixa, mas logo mudei de ideia e resolvi colocá-lo de volta no lugar. Não sei se por desespero ou falta de jeito, Salomão se enroscou de novo na bicharada e nada o fazia entrar por completo na prateleira – ora era uma pata que ficava de fora, ora os olhos esbugalhados me encaravam, ora a bunda sobrava. Comecei a ficar aflita com a falta de colaboração daquele bicho. Respirei fundo e o empurrei com força, apenas para descobrir, com o coração aos saltos, que já era tarde. Eu não podia mais deixar Salomão para trás. Ele merecia ser de alguém que pudesse amá-lo, apesar de tudo.

***

A mãe trouxe Salomão para perto de Lia com cuidado – além de desajeitado, ele tinha quase o dobro do seu tamanho – e ela pareceu não se importar. Era um sinal positivo, a mãe explicou, e a adaptação deveria ser feita aos poucos. Lia aceitou que Salomão repousasse em seu colo durante alguns segundos. Todos comentavam, satisfeitos, que ela parecia ter gostado dele, embora a maior interessada não pudesse explicar se de fato o queria ou apenas o tolerava.

Foi então que, se aproximando lentamente, Theo tomou Salomão em seus braços e, com olhos redondos e brilhantes de que só as crianças de oito anos são capazes, fez seu apelo:

- Tia, que tal você trocar o jogo que me deu de presente por um bichinho menor para a Lia? E deixa esse aqui para mim...

Surpresa com a barganha, já que supunha que bichinhos de pelúcia fossem carta fora de baralho para pré-adolescentes de oito anos, perguntei se eu não poderia trocar o jogo por outro bicho igual ao Salomão, ficando cada um deles para um dos irmãos.

Mas Theo, que já conhecia Salomão antes mesmo dele existir, que já tinha até composto um rap em sua homenagem – rap que levou a mãe às lágrimas na reunião de pais da escola, com Lia ainda na barriga –, Theo sabia que não havia dois daquele. E explicou:

- Tia, a Lilica ainda é muito pequena. Deixa esse aqui comigo e troca o meu jogo por um bichinho menor para ela.

Eu e a mãe trocamos olhares significativos e optamos pela pedagogia do meio. Explicamos que Salomão poderia ser dos dois, assim como o jogo, se ele decidisse ficar com ele, ou um outro bicho, se ele assim preferisse.

Theo olhou nos olhos de Salomão e anunciou, solene:

- Este é o Salomão, gente.

Depois, passou a noite toda com seu cavalo de pano embaixo do braço. Na hora de ir embora, fiz uma última tentativa:

- E então, Theo, qual é a sua decisão em relação ao jogo?

E ele, com a convicção infantil que deixamos para trás em algum lugar:

- Pode levar, tia. Troca por um bichinho menor para a Lilica.

Olhei para a mãe, olhei para a Lia e, diante do seu consentimento silencioso, afinal cedi, na pretensão ridícula de que uma decisão de tal porte coubesse a mim.

- Tá bem, Theo. O Salomão é seu.

Enquanto eu lhe dava um abraço de despedida, Theo me contou, em segredo:

- Mas sabe, tia, não vou levar amanhã o Salomão na viagem que a gente vai fazer. É que lá tem muita gente, e eu tenho vergonha...

Dito isso, me deu um beijo, virou as costas e subiu as escadas carregando seu velho amigo pela mão.

domingo, 24 de maio de 2009

Sobre sonhos e saudades

Durmo. Durmo muito. Durmo até que não reste uma gota de consciência em mim. E no meu sonho te reencontro.

***

No começo de 2007, meu pai perdeu aquele que durante boa parte da sua vida foi o seu melhor amigo. Oito anos de luta contra o câncer, tratamentos experimentais, tumores extirpados que reapareciam em outros lugares.

Foi um câncer muito bem vivido por ele. Pois, durante esse tempo, soube tirar o máximo proveito da consciência da sua finitude. Resolveu problemas, reaproximou-se das filhas, tornou-se uma pessoa simples, passou a conviver com os cachorros, deixou de lado uma grossa camada de verniz e polidez que ele havia sido obrigado a carregar durante toda a vida.

Assim, creio eu que ensinou muito para o meu pai, antes e depois do câncer. Eles eram primos e ouso acreditar que esse laço de sangue devolveu ao meu pai o significado da palavra “família”, em muitos momentos em que parecia difícil entender o que poderia ligar pessoas tão diferentes pelo simples fato de terem nascido com o mesmo sangue. Foi com ele que meu pai mais se identificou, a quem mais admirou, por quem mais se sentiu compreendido.

E então ele se foi. E lá estava o meu pai, nos seus minutos finais, amoroso, ouvindo-o falar sobre tudo e nada, suportando o vê-lo ir, acompanhando-o até o fim. Participou dos trabalhos fúnebres, trouxe consigo suas cinzas, guardou-as para devolvê-las à sua terra natal.

Durante meses meu pai falou sobre ele. Falou, falou, falou. Precisava falar. Precisava recordar, mantê-lo vivo nas memórias, não podia desligar-se dele, não podia deixar que ele fosse esquecido. Nós, ao seu lado, ouvíamos, segurávamos sua mão, afagávamos com o nosso olhar.

Por essa época tive um sonho. Eu, meu pai e minha mãe deitados lado a lado, ele no meio e eu e minha mãe em cada um dos seus lados, de mãos dadas. Estávamos em uma espécie de bosque onde as árvores caíam violentamente ao chão, como que golpeadas por um machado. Estávamos presos ao chão, com as costas grudadas no solo, e eu e minha mãe implorávamos para que o meu pai se levantasse, para que saíssemos de lá e nos protegêssemos das árvores. Mas ele dizia simplesmente “não há tempo, não há jeito, temos que ficar aqui”. E então uma árvore caiu sobre o meu pai, perfurando o seu peito com seus galhos.

Contei o sonho aos meus pais. Minha mãe, psicanalista, logo percebeu a simbologia de estarmos todos deitados, como cadáveres. Meu pai, lendo meu sonho por seus olhos, achou que eu temia a sua morte. Eu sabia que todas essas leituras eram corretas, mas no meu íntimo sabia também que havia algo para além das nossas mortes, para além da morte do meu pai.

***
Hoje revisito tristezas e saudades de coisas que não voltam mais. Tristezas e saudades que, quando meu pai perdeu seu melhor amigo, ainda eram muito vivas para mim. Tristezas e saudades que, mesmo menores, não foram embora e talvez nunca se vão.

Então penso no meu sonho no bosque e nas mãos dadas que nos uniam, na resignação do meu pai diante da árvore que cairia sobre o seu peito. E vejo o quanto aquele sonho me falava sobre o que ele viveu e vive, sobre o que eu vivi e vivo, sobre algo que diz respeito a todos nós: há dores que são só nossas e, por mais que nos cerquemos de pessoas que nos amam e nos querem bem, essas dores são só nossas e só nós mesmos podemos carregá-las.

sábado, 23 de maio de 2009

A cura

O caso mais contundente de terapia breve de que já tive notícia foi-me relatado por uma amiga.

Depois de muito tempo de indecisão ela finalmente conseguiu vencer suas resistências iniciais e procurou um analista. Marcou hora, compareceu, achou-o agradável e confiável, expôs-lhe as suas queixas, emocionou-se a falar de sua relação com a mãe.

Ouviu-o com esperança, acreditando que tudo seria possível. Saiu de lá com a certeza de ter pela frente um processo longo e doloroso, mas significativo.

Na semana seguinte, aguardou a ligação do analista para confirmar o horário definitivo de suas sessões. A ligação não veio. Então, tomou a iniciativa de procurá-lo.

Pela secretária, descobriu que a sua análise havia chegado ao fim: o analista falecera.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

A festa

Na rua, sorriso.

Entranhas, em casa.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Folhetim

De: Mulher Casada
Para: Mulher Solteira
Assunto: nhami

Mano, seguinte: falei de você pra um amigo e ele quer te conhecer. Gente fina. Gatinho. Boto fé.

De: Mulher Solteira
Para: Mulher Casada
Assunto: Re: nhami

Conta tudo. Quem é? O que você falou de mim pra ele?

De: Mulher Casada
Para: Mulher Solteira
Assunto: Re:Re: nhami

É um amigo de um trampo antigo. Perguntei se ele tava solteiro, ele disse que sim e quis saber se eu tinha uma namorada para apresentar pra ele. Falei que tinha uma amiga interessante, loira e de olhos claros. Nhami!

De: Mulher Solteira
Para: Mulher Casada
Assunto: Tic!

Isso me parece deveras auspicioso! Are, baba!!!

***

Mulher Casada: Mano, olha lá, hein... É o último amigo solteiro que eu tenho para te apresentar!
Mulher Solteira: Uia, que responsa! Tá, vou caprichar...
Mulher Casada: Eita, acho que o porteiro tá dormindo... Oi, boa noite, moço! Moço?
Porteiro: Hum...
Mulher Casada: Boa noite! A gente vai na casa do meu Amigo Solteiro.
Porteiro: Hum... Hum...
Mulher Casada: Então... A gente pode subir?
Porteiro: Hum...
Mulher Casada: Bom... É apartamento 42, né?
Porteiro: Hum... Hum...
Mulher Casada [fala para Mulher Solteira]: *Acho que eu sei o apartamento, vamos lá.* Obrigada, moço!
Porteiro: Hum... Hum...

***

Amigo Solteiro: Mulher Casada! Quanto tempo, que bom te ver!
Mulher Casada: Amigo Solteiro! Sua casa tá uma graça, mano!
Mulher Solteira: Hum...
Amigo Solteiro: Gostou? Fui eu que fiz tudo!
Mulher Casada: Sério? Que legal!
Mulher Solteira: Hum... A-ham...
Mulher Casada: Ah, sim! Amigo Solteiro, essa aqui é a minha amiga Mulher Solteira.
Mulher Solteira: Oiiiii, Amigo Solteiro, tudo bem? Prazeeeer!
Amigo Solteiro: Oi, prazer! Vamos sentar, gente!

[Patati. Patatá.]

Mulher Casada: Ô mano, você ficou com a fotógrafa do meu casamento, por acaso?
Mulher Solteira [“hello, eu tô aqui?”]:...
Amigo Solteiro: Eu não! Eu tava de olho é na sua amiga alemãzinha...
Mulher Solteira [ “viu? Ele gosta de mulher mignon!”]:...
Mulher Casada: Jura? Ué, a fotógrafa citou o seu nome... Aliás, o seu e o de outro amigo meu, hehehehehe...
Amigo Solteiro: Eu nem lembro da cara da fotógrafa! Não fiquei com ninguém no seu casamento...

[Papo vai. Papo vem.]

- Ring, ring! Ring, ring!

Amigo Solteiro: Opa, interfone! Chegou mais um.
Mulher Casada: Quem é?
Amigo Solteiro: Ah, você não conhece.
Mulher Casada [descrença]: ... Não vai me dizer que é uma peguete!
Amigo Solteiro: Hum... É uma namoradinha...
Mulher Solteira [???]:...
Mulher Casada [pânico]: Ô, mano! Não sabia que cê tava namorando!
Amigo Solteiro: Ah, pois é, nem eu!
Mulher Casada [sorriso amarelo]: Bom... Acho que vamos nessa!
Mulher Solteira [código azul]: Uhum!!!
Amigo Solteiro: Mas já??? Calma, pessoal, fica mais um pouco! Se vocês forem embora só porque ela chegou, ela vai achar estranho!
Mulher Solteira: Não se preocupa, a gente explica tudinho pra ela, viu? Até mais, muito prazer!

[vinheta de “fim da linha” do Picapau – melodia descendente a intervalos de meio tom]

– Nhéu-nhéu-nhéu-nhéu-nhéu...

***
Não percam, a qualquer momento em nossa programação, mais um emocionante episódio de nosso folhetim “Páginas da Vida de uma Mulher Solteira – Encalhada, Desiludida, Mas Cheia de Humor para Dar!”

sábado, 2 de maio de 2009

Panorâmica

Encontros, desencontros, reencontros.

E um coração vivendo de pequenas epifanias.