segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Balancete

Esse ano foi assim:

Primeiro eu tentei chegar um pouco mais perto de ser quem eu gostaria de ser.

Depois eu aproximei um pouco mais a idéia de quem eu gostaria de ser de quem eu realmente sou.

Então nós duas nos encontramos no meio do caminho e celebramos um final feliz.

Até 2008!

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Bonança

Porque a vida é infinita em possibilidades. E isso é bom.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Divã

- Depois que fui embora naquele dia fiquei muito mal e passei umas duas semanas bem difíceis... não sei o quanto foi resultado da nossa conversa ou não... de qualquer jeito fiquei tentando entender o que havia acontecido e uma das coisas que me chamou a atenção é que eu nem mesmo conseguia reproduzir o diálogo que havíamos tido. Vou te dizer então o que é que eu pensei durante esses dias e como foi que interpretei o que aconteceu. Acho que talvez eu tenha sido infeliz na maneira como expus aquilo que eu queria te dizer, e talvez isso também se deva ao fato de os nossos encontros serem mensais e haver muita coisa para se dizer em muito pouco tempo. De qualquer forma, três semanas atrás eu ainda não tinha tanta clareza sobre o que estava tentando dizer, e pensar sobre isso me fez sistematizar um pouco melhor os meus pensamentos e chegar a uma síntese. O que eu estava querendo dizer, e não sei se você entendeu, é que todas aquelas leituras e aqueles questionamentos sobre a terapia, a psicanálise, as questões existenciais com as quais o homem se debate etc. me fizeram pensar o que se pode, de fato, esperar de um processo terapêutico. Qual é o ponto de chegada? Em que momentos estamos? Parei para pensar que, quando finalizamos a primeira etapa da minha análise, cinco anos atrás, você foi muito enfática na sua opinião de que eu ia me beneficiar daquele término, que eu já havia desenvolvido uma série de recursos dos quais não havia ainda lançado mão porque no fundo não queria me separar de você. E agora estamos juntas novamente já há quase quatro anos, é claro que em uma situação diferente, que não poderíamos chamar de análise, já que temos nos visto uma vez a cada quinze dias, três semanas, um mês... e durante todo esse processo você nunca mais tocou no assunto sobre concluirmos o trabalho. Então me peguei pensando sobre qual (ou quem) é o parâmetro para se concluir se o processo terapêutico foi satisfatório ou chegou a um termo. E concluí que esse parâmetro é o próprio paciente! (ou cliente, ou analisando, não importa)... Foi então que me dei conta de que eu estou satisfeita com o resultado do nosso trabalho. Ou seja, eu gosto de ser quem eu sou. E quando disse que estava “de saco cheio desse papo de Sherazade” não quis de forma alguma desprezar o longo caminho que percorri junto com você e nem dizer que a partir de agora vou sentar no pudim e simplesmente seguir os meus impulsos naturais... Quis dizer apenas que talvez as minhas armas de sedução não sejam as mesmas da Sherazade e eu estou ok com isso, gosto de ser profunda, sensível, da entrega, de intimidade, de abertura. E se isso não for o suficiente para atrair um homem ou se isso afugentá-lo, paciência... Não quero mudar, estou reconciliada com a minha história, com quem eu sou. E mesmo naquele episódio recente que discutimos, era isso o que eu queria dizer quando falei a fatídica frase “acho que ele fez um pouco de propaganda enganosa”. Eu não estava deixando de reconhecer a minha enorme parcela de culpa no fracasso da história, mas achei que já havíamos discutido isso suficientemente na sessão anterior, e o que eu estava identificando da parte dele é que talvez não estivesse em contato direto com os seus sentimentos, que deu uma impressão errada daquilo que queria ou esperava da nossa relação, mas não me relacionei com isso sentindo raiva ou desprezo; pelo contrário, foi exatamente identificando uma limitação dele e aceitando que as pessoas têm limites. Ou seja, tem uma parte que me cabe nesse latifúndio e tem outra que está para além do meu controle, que não me diz respeito. Mas estou ok em relação a isso. Gostei da maneira como lidei com toda a situação. É verdade que a consciência dessa vez veio junto com a ação mas não foi suficiente para freá-la, mas acho que ela já está vindo muito mais rápido. Enfim. Acho que o sofrimento foi administrável, suportável... E pensando também sobre a idéia de felicidade, que tenho discutido bastante com duas amigas do tempo da escola, argumentei com uma delas que felicidade não é ausência de sofrimento, dor... Felicidade tem muito a ver com a questão da liberdade, ou seja, com a nossa percepção sobre o fato de que somos apenas o resultado das nossas ações. E acho que a terapia tem muito a ver com isso também, com trazer para o paciente a percepção sobre a sua responsabilidade para com a sua felicidade ou infelicidade, que é o resultado da maneira consciente e voluntária com a qual ele interage com os dados imprevisíveis e inevitáveis da realidade. E fico satisfeita ao perceber que hoje, mesmo passando por momentos de grande angústia e sofrimento – e talvez aparentemente de forma paradoxal também por isso – me considero uma pessoa feliz.

E ela concordou.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Sonhos de batata

Para meu amigo Marko Concá


Dia desses me lembrei que na quarta série trabalhamos com feijões. A idéia era montar um experimento científico – criar um procedimento, levantar hipóteses e buscar a sua comprovação ou refutação. A Simone G., por exemplo, plantou feijões na terra e no algodão e comparou o crescimento das duas plantinhas. Anos depois a Simone G. virou cientista.

Lembrei de tudo isso contemplando o vaso da minha finada violetinha. Ela está em glória já tem semanas e o vaso continua lá, vazio, seco, em cima da mesinha de centro, sabe-se lá se resultado de pura inércia ou cumprindo a sina de ser emblema de alguma coisa que às violetinhas não foi dado conhecer (mas que os humanos conhecem muito bem).

Enquanto olhava o vaso vazio e lembrava dos gordos pés de feijão obtidos pelo bem-sucedido experimento da Simone G. (e concluía que os feijões são a solução da lavoura para quem não nasceu vocacionado para a maternidade herbívora), me peguei tentando lembrar qual teria sido o meu experimento.

Lembrei. Decidi plantar o meu feijão dentro de uma batata. Não me perguntem por quê. Assim como na poesia, tem coisas na vida que prescindem de razão.

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O feijão germinou e cresceu viçoso dentro da batata. Era um orgulho só. Primeiro cortei a tampinha da batata, extraí o miolo, joguei o feijão dentro e tampei de novo. Depois que ele se fincou na base, criou raízes e espichou até começar a cutucar a hospedeira, espetei palitos de dente na borda do corte e lá fixei a tampa para que o feijão pudesse conhecer o mundo, mas ainda assim se sentir seguro no seu lar.

Tempos depois, quando o sonho do feijão se tornou grande demais para a batata, cortei as paredes em volta da base e o transportei, heróico, para a terra.

Ele não resistiu (nunca tive dedo verde). Resultado do experimento: sonhos de batata não vingam na terra.

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Lembrei de duas cebolas que há alguns meses estavam habitando a gaveta de legumes. Cada vez que abria a porta da geladeira, elas me olhavam de soslaio, como a denunciar o meu fracasso doméstico. Enquanto eu fechava a porta depressa, adiando o momento da confissão, as cebolas trocavam comentários maldosos com os ovos da prateleira (esses também abdicaram do seu promissor futuro de galinha “em prol de um destino que se revelou inútil!”).

Um dia marchei obstinada até a cozinha decidida a pôr fim àquilo tudo. Abri a geladeira e ataquei primeiro os ovos, que se renderam sem oferecer resistência (será que eu poderia doá-los para produção de vacinas? – pensamento ecológico em tempos de reciclagem).

Na seqüência abri a gaveta das cebolas e furei o saco plástico com o voyeurismo mórbido de quem procura a inexorável ação do tempo.

Lá descobri vida. Inúmeros feixes haviam brotado do topo de cada uma delas.

Com reverência, enchi um copo d’água e lá plantei a minha cebola de geladeira. Há que se celebrar a vida nas suas mais ínfimas manifestações.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Sísifo

Todo dia é assim. Eu vou dormir quando estão acordando, acordo quando estão almoçando, vou trabalhar quando voltam do almoço, trabalho quando estão jantando, janto quando vão dormir, vejo TV, escrevo, tomo banho e leio enquanto dormem.

Todo dia, antes de dormir, eu me prometo que no dia seguinte vai ser diferente. Vou acordar cedo, levar as cachorras para passear, voltar para a yoga, almoçar com a Helô, chegar no trabalho em horário civil, sair antes da novela, passar menos tempo na Internet, não ficar lendo até as cinco da manhã. E todo dia a mesma história se repete.

Houve um tempo em que eu tinha um namorado me esperando à noite. Uma mãe que me dava pito quando eu via TV de madrugada. Uma amiga que almoçava comigo todos os dias, religiosamente.Uma chefe que pegava no meu pé e me solicitava coisas de hora em hora.

Aí eu saí de casa, o namorado foi embora, a amiga engravidou e a chefe decidiu que eu dava conta do recado sozinha.

Me tornei prisioneira da minha própria liberdade.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Perto demais

O que havia para ser dito sobre Closer Contardo Calligaris já disse.

Revê-lo foi doloroso e revelador como um reencontro com um grande amor do passado.

domingo, 18 de novembro de 2007

Descartes

Ele tinha mesmo traços fortes como a amiga havia descrito. “Um turcão”. Alto, braços grossos, olhos grandes esverdeados, olheiras, barba mal-feita, cabelos crespos, orelhas grandes. Afável, mas olhava de um jeito levemente incômodo, embora lisonjeiro, e de quando em quando arriscava uma frase que podia tanto ser um flerte quanto um comentário ao acaso.

Ela, por motivo qualquer, estava às voltas com a sua necessidade de categorizar, classificar e pôr ordem no mundo. Foi parar no samba rindo de si e da sua incapacidade de poesia.

Lá pelas tantas ele a tirou para dançar. Tinha envergadura, braços firmes, condução certeira. Ela se sentia a mais leve das bailarinas do alto de seu metro e quase oitenta. O salão de baile era um estreito corredor, ladeado por mesinhas de metal, passagem para qualquer parte. O samba aconteceu assim, esbarrado, mas a graça do casal não escapava aos olhos do passante.

O sambista resolveu emendar na próxima música, homenagem involuntária àquela dança tão bem timbrada. Ela, saindo de crise de bronquite alérgica, respiração difícil mas foi até o fim, acompanhando o par no improviso, rosto bem encostado no dele pra facilitar a sincronia.

Fim do samba, ele deu o parecer:

- Você não é cartesiana. Você dança!

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Hoje

Onde estão as palavras que ontem jorravam de dentro de mim? Sento diante do computador e nada me ocorre. Não é que eu não tenha sobre o que escrever. Não é que eu tenha deixado de pensar um segundo sequer sobre tudo e qualquer coisa, eu, eu e o outro, eu e o mundo, o outro e os outros, o outro e o mundo e toda a análise combinatória possível. Pelo contrário, andei colhendo conselhos amigos em busca de uma condição um pouco menos existencial, porque essa pílula vermelha às vezes me esgota a ponto de ter de dormir doze horas seguidas pra enfrentar a vida (ou o pensar sobre ela).

A resposta é singela. Estou à margem. Vejo tudo de longe. Há tempos que nada me toca profundamente. É por isso que nada espero desse texto, pois que a minha condição de escrita é o arrebatamento, seja por uma idéia, uma pessoa, um sentimento, uma lembrança, uma dor.

É uma triste constatação, mas no meu atual cenário mental, tendo a achar que o vazio também precisa ser vivido. Há o vazio leve, gaiato, vira-lata. Há o vazio existencial, aterrorizante. E há o vazio lúcido, cético e analisado.

Pra esse não há remédio a não ser esperar que a vida se encarregue de trazer novos amores.

sábado, 10 de novembro de 2007

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Humana, demasiado humana

Ao fazer a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras, topo com uma foto de Gael García Bernal e um artigo sobre O Passado, livro de Alan Pauls que inspirou o filme do diretor Hector Babenco. É assim que leio jornal, para o desgosto de minha mãe: de segunda mão, randomicamente, às vezes com um ou dois meses de atraso, fazendo a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras.

Ainda sob o efeito do filme de Babenco, salvo a folha de jornal de um destino inglório, guardando-a para uma rápida leitura antes de sair do trabalho. Os outros livros resenhados não terão a mesma sorte.

O primeiro parágrafo da resenha, escrita por um homem de cujo nome não me recordo, mas que, salvo engano, é editor da revista Trip, começa dizendo que o homem que encontrar esse livro na cabeceira da cama de uma mulher deve sair correndo.

Coro. Afinal, que livro está lá, na cabeceira da minha cama, na linha sucessória para ser o meu amante nas próximas madrugadas insones? O próprio. Em minha defesa, eu poderia dizer que ele não se tornou propriamente o meu “livro de cabeceira”; a cabeceira é apenas um intervalo entre duas estantes.

O fato é que O Passado me intrigou. A meu ver, é um filme com tantos espaços abertos para inferências que tive vontade de ler o livro e tentar ligar mais alguns pontos. Sempre me interessei, também, pelas especificidades das diferentes linguagens artísticas e pela possibilidade de ouvir uma mesma história contada de jeitos diferentes. Daí a Mãe Sereia ofereceu o empréstimo do livro (não perdendo a oportunidade de resmungar sobre todos os outros que fiz reféns em minha casa) e aceitei a oferta.

O curioso é que, embora a protagonista feminina do filme/livro, Sofia, seja mesmo de arrepiar os cabelos, eu jamais tomaria isso como ponto de partida se fosse resenhar o livro ou o filme. E, para além do constrangimento de ter o tal livro na cabeceira da minha cama, como se o resenhista levantasse um dedo de dentro da folha de jornal e me apontasse – ahá! –, senti uma certa solidariedade feminina por Sofia.

É verdade que Sofia tem uma dessas peculiares obsessões amorosas por seu ex-marido que faz com que ela se materialize em todos os lugares, nos momentos menos esperados, de uma forma horripilante. Mas também é verdade que Rimini, o ex-marido/vítima, é um exemplo desses homens ambivalentes e incapazes de colocar limites claros ao desejo do outro (no caso, da outra). O tempo todo me perguntava o que, realmente, queria aquele homem. Não consegui encontrar uma resposta.

Depois que saí do cinema, parei para pensar em quantas frases o personagem de Rimini falou ao longo de todo o filme. Pouquíssimas. E, embora todos tenhamos direito ao silêncio, é um fato que, onde faltam palavras, sobra fantasia.

Um amigo me disse há pouco tempo: “quando alguém não quer estar comigo, isso para mim já é, em si, o fato e a justificativa. Mais de uma vez disse às minhas ex-namoradas, quando tentavam explicar o motivo pelo qual queriam terminar: poupe-se do trabalho e do sofrimento. É por isso que, ao terminar um relacionamento longo, também não senti necessidade de dizer à minha namorada os motivos exatos pelos quais eu queria terminar. Achei que seria cruel e desnecessário.”

Eu admirei o comentário do meu amigo e pensei: “quero ser assim quando crescer”. Mas logo depois constatei, ao vivo e em cores, o quanto as palavras podem ser libertadoras. Nem todos são assim e às vezes é preciso aceitar o limite do outro, que simplesmente não consegue pôr em palavras aquilo que sente, embora consiga demonstrar em ações – nem sempre tão inequívocas quanto as palavras, mas que também podemos aprender a ler, com o tempo e a maturidade.

Mas essa digressão está ficando um pouco mais longa do que eu pretendia. Quero falar sobre O Passado, Sofia, mulheres à beira de um ataque de nervos e o editor da Trip. Enquanto assistia ao filme (cujos detalhes vou dar aos futuros expectadores a oportunidade de conhecer pela tela do cinema), via aquela mulher cada vez mais decadente, descontrolada e desequilibrada e sentia um misto de horror e... empatia. Era como olhar para o meu próprio passado, embora ele nunca tenha existido com aquele grau de intensidade e obsessão, e entender que, talvez, a única coisa que me separe de Sofia sejam os meus oito anos de análise.

Me lembro imediatamente da reportagem lida há dois dias sobre mulheres do Japão que mataram as coleguinhas de escola de suas filhas por se sentirem desprezadas pelas mães das meninas, a cujo grupo de mães pertenciam. A despeito do crime hediondo, essas mães assassinas receberam milhares de cartas de outras mães com manifestações de solidariedade, mostrando o quanto essas mulheres se reconheceram na loucura tantas vezes por elas arquitetada, mas apenas consumada pelas outras.

Uma amiga dona de um coração bovino me confessa, ao comentar sobre a maneira velada e cínica como uma colega de trabalho a critica: “minha vontade era dar um tiro nela!”. Uma outra, falando sobre o longo e difícil processo de separação e a descoberta de que o ex iniciou um novo relacionamento, comenta: “agora entendo por que as pessoas matam por amor”.

Uma linha de sanidade separa as pessoas que devaneiam sobre ou verbalizam o terrível desejo primitivo de matar um rival ou amante e aquelas que efetivamente o fazem (só os autores de novela ainda não perceberam isso. Por isso, na tentativa tosca de criar suspense sobre um crime, começam a colocar na boca de milhares de personagens secundários frases como “minha vontade era matar aquela Thaís!”, como se isso indicasse a natureza criminosa de alguém). Uma linha ainda mais tênue separa as pessoas que, vivenciando um término de relação amorosa não desejado, conseguem se relacionar com a perda de uma forma saudável ou alimentam eternamente aquele amor não-correspondido, impedindo-se de viver novas histórias, novos encontros, presas a um relacionamento morto cujo corpo elas se recusam a enterrar.

O fato é que, procurando bem, todo mundo tem dentro de si um pouco de Sofia, de Rimini, de mãe assassina do Japão, de capitão Nascimento, de Fernandinho Beira-Mar. Esse é, aliás, o princípio da relação terapêutica, se bem entendi o que disse o Contardo Calligaris: a terapia tem alguma chance de sucesso se, pra começo de conversa, o terapeuta conseguir, ainda que em um grau mínimo, sentir empatia pelas queixas e dores vividas pelo paciente. Se, ao contrário, para o terapeuta o paciente não passar de um ser enfadonho, desprezível ou desinteressante, nada acontecerá. É melhor até encaminhar o caso.

Foi com essa inspiração que escreveu Terêncio: “sou humano, nada do que é humano me é estranho”. E o que me ocorre como um pensamento curioso, que deixo no fim dessa divagação quase como uma nota de pé de página, é quanto sofrimento decorre da incapacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro. Paradoxo da condição humana que, se conseguirmos reverter a nosso favor, pode ser a chave para relacionamentos interpessoais produtivos, saudáveis e satisfatórios.

quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Encontros e ex-encontros

Vinte e vários anos, um blog e nenhuma certeza. Uma ou duas quebradas da vida e aprendeu a não esperar mais pelo certo. Encontros que a vida proporciona, certos e errados.

Assim se conheceram. Força de expressão. Acharam-se. Ele a leu, diz curtiu o romantismo, já a conhecia há muito tempo? Intrigado, resolveu dar as caras.

Ela respondeu animada. Valei-me, Nossa Senhora da Interatividade. De brinde um presente musical e a dica de que ele prestava atenção.

Palavras escritas às duas da manhã, laptop apoiado em caixas de papelão. Pensamento ainda sem forma que começa a ocupar boa parte do dia.

Pergunta pouco, fala muito, descobre mais ainda. Tantas semelhanças com o ex que até se assusta. Mas não esquece a lição: viver o encontro...

Cento e quarenta páginas. Setenta per capita. Menos de um mês. Começa a assustar. Mas a conversa é boa...

Quer ser safa, mas tem coração de moça. É romântica, mas cabeça é de mulher. Não sabe se fica ou se vai, se vai ou se fica. Entra na toca, mas espalha farelos de pão (que os passarinhos não comeram) indicando o caminho do esconderijo.

Ele espera, espreita. Responde em código morse: sabe quem ela é, e ela também. Está tudo certo.

Daí pros esse-eme-esses um pulinho. Dois, três, quatro por dia. Loucura, baby, loucura. Quem é? Que cara tem? O último, lá pelos idos do século passado, não tinha um dos dentes da frente. Ela educada demais para fugir pela janela do banheiro. Achou-se vacinada. Qual!

Quando do desencontro, sem saber direito a cara de um, o focinho de outro (com dente? Sem dente?), ela decide passar da rede à vida. Vai no susto, pega desprevenido, ele em bicas, ela em frouxos de riso.

Só a música salva. Ela mezzo-mussarela, mezzo-calabresa: o descompasso era inevitável – mas, afinal, ele era ele!

Ele queria ouvi-la cantar ainda por um bom tempo...

Coração de moça e cabeça de mulher solteira andam cada um para um lado. Escolha é renúncia... O sim é maior que o não? Ele tão menino...

Reciprocidade assusta. Mais: a certeza do outro aumenta a dúvida do um. Ele vem com energia... Vem menino, manso, mas afirmativo. Escreve, torpedeia, convida, pergunta, conta, fica perto. Ela responde, retorna, não vai, vai, embarca, hesita, fica perto.

E o medo? Ele sabe dela. “Minha vida é um livro aberto”. Ela, não obstante, teme. Ele não veio de passagem. E ela é auto-declaradamente “definitivamente a mulher certa”, mas queria errar! Só não à custa dele.

Incertezas conduzem a desfechos precoces. Ao som de “Eduardo e Mônica”, um dia ela racha, ele diz vem, ela vai, uma coisa leva à outra, a outra leva a outra ainda e essa ainda leva a uma terceira, mas depois essa última não leva a lugar nenhum. E diante disso, ela segue recomendações médicas e sorri um sorriso amarelo.

O que fazer quando se chegou perto demais? O impostor só fala sobre o tempo – persona ou self.

Ela tenta ser bad, bold, wiser, hard, tough, stronger, cool, calm, mas não calça 36. Entre o que se deve ser ou o que se é, fica com a segunda opção, torcendo pela múltipla escolha. Suas entranhas numa bandeja.

Altruísmo ou inconsciência, ele tenta, desajeitado, mas não nasceu equipado para tal (Ah, o curioso hiato existente entre o discurso e a ação!).

Por fim, jorra: “não quero!”.

Primeiro o alívio (mulheres amam palavras!), depois a mansidão e, por fim, o vazio. Vida irônica. Disse uma sábia: “cada um de nós assume um risco ao entrar em relação com o outro. Cuide do seu que ele cuida do dele”.

Palavras não quebram ossos. Silêncio de lado a lado. Quantos equívocos...

Resta um blog. Ela tem internet discada, mas desconfia que nem uma banda larga teria dado conta de tantos desejos velados.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Meditação

Nos meses de dor a amiga dizia: “é como ver uma cidade pela janela de um carro. Agora você acabou de sair dela, mas aos poucos vai começar a vê-la cada vez mais longe... daqui a um tempo você vai vê-la longe, longe... até ela ser só um borrão, uma mancha colorida no horizonte”.

A analista dizia: “tem pelo menos um ano para começar a doer menos. Você vai ter que atravessar todos os aniversários – o seu, o dele, o de vocês –, o Natal, o Ano Novo... não se assuste se você ficar um pouco regredida nessas datas.”

Eu dizia: “é como um espiral. A minha recuperação vai fazendo voltas, passando por momentos de dor e momentos de tranqüilidade. Não é uma linha reta, é circular, mas cada volta para a dor é menos doída do que a anterior.”

Todas tínhamos razão. Já faz quase um ano e meio. Cada vez fica mais longe. Os primeiros aniversários ainda doeram. A cada etapa da recuperação, uma pequena recaída, mas levantando cada vez mais rápido.

E o seu aniversário veio de novo. E sabe do que mais? Eu só lembrei dele quase no fim da tarde, fazendo um ofício apressado. Ainda me bateu uma dúvida: 18 de outubro? Era 18 de outubro? Ah, é, era no mesmo dia que o meu, só que em outubro...

Eu passei a madrugada da véspera quase sem dormir, com uma enxaqueca horrível. Mas não me lembrei do seu aniversário. Ele chegou, passou e a vida continuou.

Tento me projetar para o futuro como uma pessoa evoluída, que vai conseguir te encontrar de novo e sorrir, perguntar sobre as suas coisas, contar das minhas sem ficar amarga, sem parecer irônica e nem sentir as pernas bambearem. Será que um dia vai dar pé?

Eu não sei. Faço esse exercício mental quase diário de te ver de longe, como a cidadezinha da janela do carro. Às vezes consigo, às vezes não. Hoje, por exemplo, me peguei entrando no seu site e clicando no botão para a minha música.

As suas músicas são quase como filhas para mim. Filhas postiças, que vieram junto com você e, depois da separação, eu deixei de visitar porque não são minhas, só posso vê-las de longe, do outro lado da rua. Mas vira e mexe me pego distraída, cantarolando uma delas. E a música que você fez pra mim é como a filha que um dia a gente quis ter juntos, aquela com quem você sonhava e que agora vai ser de outra mulher.

A minha música faz o meu coração dar nó. Vem uma saudade que quase não cabe dentro da minha casa. Como o amor que você um dia teve por mim, aquele que não cabia dentro de você.

E por que eu continuo fazendo isso, mesmo com você lá longe, mesmo doendo cada vez menos, mesmo tendo aprendido a viver sem você?

Talvez para confirmar para mim mesma, como numa oração: eu vivi. Eu amei. Minha vida não passou em branco.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Fiat lux

Após uma semana nas trevas, finalmente a linha telefônica da minha casa foi restabelecida. E, por incrível que pareça, na minha casa é assim: sem telefone, não tem Internet. E sem Internet, nada de Mulher Solteira.

Lamentavelmente – ironia das ironias! – agora que tenho telefone e tempo, me falta inspiração.

sábado, 13 de outubro de 2007

Comédias da vida privada

Mudança de apartamento, uma novela que nunca termina. Domingo, final de tarde, traslado das roupas do bloco B para o bloco A. A mãe sereia já havia dado uma boa ajuda no dia anterior, carregando cabides e mais cabides pendurados em cabos de rodo e vassoura, mas vejam bem, a mãe sereia já é uma sessentona. Não dá mais para abusar.

A operação de guerra acontece a apenas duas mãos: junta caixa, abre elevador, põe caixa, fecha elevador, desce, abre elevador, atravessa do bloco A pro bloco B, abre elevador, põe caixa, fecha elevador, sobe, abre elevador, abre porta, tira caixa, põe caixa, fecha elevador, fecha porta, abre armário, põe roupa na caixa, abre porta, abre elevador, põe caixa, fecha porta, fecha elevador, desce, abre elevador, tira caixa, atravessa do bloco B pro bloco A, abre elevador, põe caixa, fecha elevador, sobe, abre elevador, tira caixa, abre porta, põe caixa, solta porta do elevador, ufa, entra em casa. Tudo isso repetido quatro vezes, a ponto de, após algumas idas e vindas, não saber mais se está no bloco A ou no bloco B, se tem que apertar o 11º ou o 4º, se a caixa deveria estar cheia ou vazia.

Lá pelo fim da terceira viagem, após, portanto, a segunda repetição de toda a tramitação supracitada, fecho a porta para descansar por alguns segundos. Toca o interfone na casa nova. Ih, deve ser a síndica reclamando que eu estou fazendo mudança em pleno domingo à noite. A síndica é gente boníssima, mas é linha dura. Atendo com a minha melhor voz:

- Alooou???
- Alô, Dona Mulher Solteira? É o Clayton.
- Oooi, Clayton, tudo beem?
- Tudo, obrigado. Viu... o cachorro da senhora desceu...

Três segundos de pausa. Radar materno procura focinhos, chucas e patinhas em volta e conta: um focinho, uma chuca e quatro patinhas. Temos um fugitivo.

- Meu Deus! Mas onde ela está?
- Ah, ela tá no elevador...

Abro a porta do apartamento em clima de resgate. Chamo os dois elevadores ao mesmo tempo – dane-se a política de economia energética. O primeiro a chegar é o social, cheio de gente, abro a porta esbaforida, peço desculpas e fecho novamente.

No segundo elevador encontra-se a fugitiva, com uma expressão corpo-facial que eu definiria entre “onde estou? Quem sou eu? Qual o sentido da vida?” e “xi, acho que fiz merda”. Sorte dela que o ataque de riso foi tão grande que a bronca ficou para outro dia.

Minha mãe é uma sereia II

I.

- Bereca, você precisa ver as fotos da viagem. As igrejas de São Petesburgo parecem a casinha de João e Maria!

II.

- Sabem, na semana passada o Pimpão [sobrinho canino da Mulher Solteira] começou a lamber a minha blusa de lã e primeiro eu achei que tivesse derrubado alguma coisa doce nela. Mas depois me dei conta de que ele deve ter achado que eu era um bicho com um pelo bem macio...

Rosa dos ventos

Após longo e tenebroso inverno, finalmente começo a retomar o ritmo das caminhadas com as cachorras pelo bairro.

Feriadão, visita marcada pra Comadre (alô, Comadre!), calor de rachar, voltinha rápida no quarteirão só para deixar as periquitas respirarem um pouquinho de ar fresco (ou morno).

Na saída do prédio, Lola puxando a caravana, Mimi cheirando cada cantinho da calçada, um par de olhos azuis cintilantes, desses que te fazem se sentir lambida, baixa o vidro do carro para pedir informação:

- Olá... você sabe me dizer onde fica a Rua Tal?

Pane no sistema. A minha ausência de bússola interna é pública e notória. Já faz anos que parei de dar informação na rua, pelo bem da Humanidade. Mas esses olhos, meu Deus, que olhos são esses... Sem me dar muita conta do que estou fazendo, balbucio algumas frases desconexas:

- Olha, a Rua Tal... é pra lá. Lá pra trás. Você tem que voltar pra lá, pegar por exemplo a Rua X, onde acaba essa... e depois ir mais pra lá... Eu sei que é pra lá...

Os olhos agradecem, tento reconjuntar o corpo e a comitiva para prosseguir o passeio, rosto quente, mãos suadas. Mas os olhos azuis voltam à carga, dessa vez acompanhados de um sorriso de derreter neve:

- Eu consigo voltar por aqui?

E a boca responde, automaticamente:

- Consegue, consegue sim... é só dar a volta no quarteirão.

Não preciso de mais de um minuto para me dar conta de que não dá para voltar pelo caminho que indiquei. Duas ou três quadras para cima a rua fica contramão. Aliás, a Rua Tal era para o lado de lá mesmo? Gelo. Acho que indiquei a direção oposta.

Ainda bem que provavelmente nunca mais vou vê-lo, penso eu, envergonhada do meu desserviço.

É. Provavelmente nunca mais vou vê-lo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Todos dizem eu te amo

Varei a noite assistindo ao Woody Allen.

Faz mal trocar a noite pelo dia.

Mas às vezes a vida precisa tanto de um pouco de ficção.

De manhã me deitei ao lado de uma lembrança doce e triste e dormi aninhada na minha pequena solidão.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

A árvore da felicidade

Quando eu estava na segunda série, a tia Liginha se casou. A tia Liginha era a minha professora da segunda série. Como era de praxe naqueles tempos (será que hoje ainda é assim?), a auxiliar de classe organizou os alunos para decidirmos que presente de casamento daríamos à tia Liginha. Depois o presente seria rateado pelos pais dos pimpolhos e todos ficariam felizes.

Tenho lembranças borradas desse episódio, mas anos depois, pensando sobre isso, algumas das sensações voltaram vívidas. A auxiliar deve ter feito uma espécie de brain storming com a gente (fico me perguntando como elas conseguiam fazer a gente criar aquelas histórias coletivas, que elas iam escrevendo na lousa à medida que a classe ia chegando a um certo consenso. Que talento!) e chegamos a duas idéias: uma árvore da felicidade e um aquecedor elétrico.

Eu nunca tinha ouvido falar na tal da árvore da felicidade e muito menos vira uma na vida, mas soou como música aos meus ouvidos de “Laurinha” (“isso é tão romântico, professora Helena!”). Que presente poderia ser mais apropriado a um casal, por ocasião do seu enlace matrimonial, do que uma árvore, o símbolo da vida, do renascimento, da natureza, e ainda por cima da felicidade? (Se alguém duvida de que eu tivesse esse tipo de pensamento aos nove anos – embora provavelmente eles não fossem expressos nessas palavras –, posso mandar um exemplar do livro de mitos e lendas que escrevemos na quarta série; a minha se chamava “A lenda da árvore renascente”. Laurinha na veia!) Imediatamente me convenci de que o presente não poderia ser outro! E curiosamente cerca de metade da classe se posicionou da mesma forma.

A outra metade, como se pode imaginar, estava mais preocupada era com os pés gelados da tia Liginha naqueles dias frios de agosto, e achava que um aquecedor elétrico era um presente bem mais útil e prático de que uma planta que ia morrer em alguns meses largada em algum canto da casa. Aliás, a outra metade estava completamente convencida de que a árvore da felicidade seria um presente de grego.

Essa talvez tenha sido minha primeira experiência vivida sobre o embate entre o romantismo e o pragmatismo – e eu, como não podia deixar de ser, precocemente assumi a minha essência romântica. Sempre dou risada hoje em dia ao pensar sobre isso – um bando de crianças de oito anos tentando decidir entre a matéria e o espírito, entre o real e o simbólico, entre o utilitarismo e o fim-em-si-mesmo. Grandes lições aprendidas na segunda série!

Felizmente optamos pelo caminho do meio, contamos os vinténs dos nossos pais e decidimos que podíamos dar os dois presentes – assim a tia Liginha e o seu marido estariam quentinhos para apreciar a felicidade proporcionada pela sua árvore.

Pensando na minha finada violetinha e considerando que o meu chuveiro e a minha cama já me deixam suficientemente aquecida, me ocorreu: será que não está na hora de ter uma árvore da felicidade?

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Nota de falecimento

É com pesar que comunicamos o falecimento da violetinha da mesinha de centro. A despeito da mudança para um apartamento com sol direto, dos constantes ajustes na freqüência com que se molhava o seu pratinho (porque violetas não gostam de água que vem de cima), da poda sistemática das folhas, a violetinha, como a camélia, suspirou uma última vez e decidiu que não queria mais permanecer nesse mundo. Restou um vaso com terra e nada mais. Duas cachorras com franjas aprisionadas por um amor-em-tóquio velam o seu silêncio.

A violetinha deixa no mundo irmãs, mães e filhas que, no Dia das Mulheres, tiveram um destino mais promissor: foram morar em casas ou mesas de trabalho de gente que sabe como fazer as plantas viverem.

(Nessa casa as plantas não sobrevivem.)

(Pelo menos a capacidade de amar não morre nunca.)

domingo, 7 de outubro de 2007

Dor e delícia

Uma das coisas que a minha vida de solteira me mostrou é que eu sou macha pra caramba. Mesmo com o coração em frangalhos, consegui sustentar a minha independência financeira e emocional e administrar uma casa, um trabalho, um carro, uma faxineira, três estagiários, duas cachorras e, principalmente, a mim mesma.

Em um determinado momento do ano passado a minha mãe me jogou um canto de sereia (afinal, ela é uma sereia, não?) para que eu voltasse a morar na casa dela, mesmo que temporariamente. O convite não fez sentido para mim. Embora eu me sentisse um pouco sem chão e tudo aquilo que eu havia sonhado e desejado para o meu futuro tivesse deixado de existir de uma hora para a outra, assumi as minhas escolhas como sendo minhas e decidi que o caminho da independência era um caminho sem volta.

O mais importante, porém, é que para além de sobreviver e conseguir administrar as coisas, em pouco tempo eu consegui resgatar a minha alegria. Reencontrei o prazer de pensar e conversar sobre a vida e os relacionamentos; de escrever sobre isso; de ler um livro até de madrugada, sem vontade de parar; de ver um filme que me deixa leve, leve ou me conduz para os meus recantos mais sombrios; de sentir o meu corpo através da yôga, das caminhadas pelo bairro com as cachorras, da dança; de ouvir música, de cantar, de conversar sobre a música; de ajudar, prestigiar ou simplesmente estar na companhia dos amigos; de rir até a barriga doer e as lágrimas escorrerem; de me emocionar com a beleza que existe em cada pessoa. De estar viva, enfim.

E quanto mais eu resgatava essas alegrias, mais forte me sentia. Foi-se o tempo da melancolia, da fragilidade, da instabilidade. Veio o tempo do equilíbrio, da sabedoria, da maturidade. E então eu me deparei com esse grande paradoxo: o amor, o estar com o outro, o relacionamento amoroso, que me parece um dos encontros mais sublimes e necessários da vida, sempre despertou em mim o meu lado mais primitivo, regredido, infantil.

Pensando sobre isso, me dei conta de que um dos maiores aprendizados da minha vida até hoje foi esse aqui: as pessoas não existem para promover o nosso prazer ou aliviar o nosso sofrimento. Elas existem, simplesmente. E espera-se que possam, na maior parte do tempo, compartilhar conosco os nossos momentos de dor e alegria. Mas ser o responsável pela felicidade ou infelicidade de alguém é um fardo demasiado pesado para se carregar.

Eu sempre me perguntava, com curiosidade: como será que essa minha fase “mulher solteira” vai afetar os meus próximos relacionamentos?

Então alguém se aproximou. E gostou de mim. E quis saber mais e mais sobre a minha dor e a minha delícia. E me deixou entrar na sua vida. E por mais que tudo isso viesse acompanhado de uma grande dose de medo, dúvida e angústia, o meu coração começou a bater acelerado outra vez.

Infelizmente, junto com o frio na barriga e o suor nas mãos vieram, com toda a força, a fragilidade, a melancolia, a instabilidade. E a pergunta: Por que essa necessidade, ou, mais ainda, essa vontade de mostrar tudo isso para o outro? É quase como uma forma de dizer: “Olha, eu sou isso aqui. O pacote é esse. Vai encarar? Não é bolinho não, pensa bem...”. Aos olhos do outro aparece uma pessoa desmantelada, desmilingüida, esfacelada. E por mais que esse outro tenha continência, afeto, disponibilidade e queira encarar a empreitada, às vezes fica tudo muito, muito indigesto.

Conversando sobre isso com uma amiga (o que seria de nós sem os amigos?) veio a luz: “Mulher, você não precisa repetir esse padrão de fragilidade em todos os seus relacionamentos. Você é forte, não precisa disso”. É verdade, não preciso mesmo. E o mais estranho de tudo é pensar no quanto, no momento em que tudo aconteceu, isso era algo muito consciente para mim. Ainda assim, não consegui fazer diferente. (Auto-sabotagem?)

Eu tinha muita curiosidade em relação ao meu futuro e ele chegou. E eu rateei. Mas já estou aqui apertando uns parafusinhos de novo. Se a gente não aprender com a experiência, não sai do lugar.

Eu sinto que perdi uma coisa muito preciosa e me sinto triste por isso. Não sei o quanto eu fui responsável pelo que aconteceu, porque, afinal, para além das nossas ações, desejos e buscas, há o eterno parecer do imponderável – aquele deus que decide, aleatoriamente, lá de cima, a quem ele vai conceder o privilégio do encontro. Mas não posso me eximir da minha responsabilidade – para comigo mesma. Não posso me deixar desmantelar – por mim mesma. Ficou a lição. Na hora em que tudo começar a derreter como uma geléia e der aquela vontade de sentar no pudim, tem que vir de dentro o comando: “Mulher! Put yourself together!”.

Já dizia o meu amigo Riobaldo: “viver é muito perigoso”. Mas também é danado de bom, não é? Então vamos em frente que atrás vem gente. E sem perder a ternura jamais...

sábado, 6 de outubro de 2007

Máxima do dia

Todos nós merecemos ser profundamente amados – eu, você, todos nós. Perdidamente, desvairadamente, indubitavelmente amados.

Um meio-amor que se pretende amor inteiro não deixa de ser uma forma de morte em vida.

Quem somos nós?

Outro dia eu disse a alguém que, quando saí da casa dos meus pais, decidi morar sozinha, sem dividir apartamento com ninguém, porque queria saber quem eu era “longe de todo mundo”. Mas será que eu sou “eu mesma” longe de todo mundo? Ou será que, pelo contrário, eu só “sou” na e pela relação com o outro?

É claro que morar sozinha ajudou a confirmar algumas das minhas suspeitas fundamentais: eu sou mesmo uma bagunceira de marca maior – e não tenho pudor de criar fungos dentro da pia da cozinha –, sou péssima de planejamento doméstico – quando acaba o papel higiênico, apelo para o guardanapo, quando acaba o guardanapo, vou de papel toalha, quando acaba o papel toalha... enfim –, adoro dormir tarde, odeio acordar cedo, gosto de banho quente, cama quente e leite frio. Mas nada disso me diz, de fato, quem eu sou.

Há um texto belíssimo de Benveniste, chamado “Da subjetividade na linguagem”, em que ele demonstra que a linguagem só pode existir porque o sujeito se enuncia como “eu”, e ele só pode fazer isso quando e porque enuncia o “tu”. Ou seja, a linguagem já nasce do humano em relação.

Também já disseram que nenhum homem é uma ilha, e em todos os campos do conhecimento humano existem exemplos abundantes de que o homem é, por definição, um ser social.

Como, afinal, entender-se, perceber-se, emocionar-se, existir, sem a presença do outro? Sem um espelho?

Muitas vezes, quando nos apaixonamos, nos encantamos de fato por aquilo que vemos de nós mesmos através dos olhos do outro. O olhar apaixonado é um olhar que põe em relevo todos os predicados do objeto de desejo, que acolhe os seus defeitos, que minimiza as suas fraquezas. E pelos olhos desse outro nos apaixonamos por nós mesmos.

O problema é que as pessoas vêm e vão. Nem sempre, nem todas, não o tempo todo, nem sempre porque querem, mas muitas vezes quando a gente menos espera. E se a gente constrói a nossa imagem, a nossa beleza, a nossa delícia através do olhar do outro, quando ele vai embora, o que resta?

Quem sou eu sem o olhar do outro? Como não me esfacelar sem essa presença? O que resta de meu, de essencial, de perene, de necessário e não contingente? Talvez a dor de uma perda ou separação seja tão grande porque temporariamente a gente se perca da gente mesmo quando o outro se vai. Frases como “eu não existo sem você” e “minha vida não faz sentido” demonstram cruamente a dor de não se saber um “eu” sem o “tu” que foi embora.

Trata-se, então, de encontrar um centro de estabilidade em meio à instabilidade daqueles que vêm e que partem de nossas vidas todos os dias. Não é à toa que os gregos, lá atrás, já buscavam explicar o princípio que rege todo o universo. Seria o movimento? Ou, pelo contrário, o imobilismo? Ou, na verdade, o incrível e misterioso mecanismo que garante que as coisas mudem o tempo todo e, ainda assim, permaneçam?

Essa talvez seja uma pergunta para uma vida. Para muitas vidas, aliás, já que depois de Heráclito e Parmênides ainda gastamos uns bons séculos tentando decifrá-la.

Dentro de mim, no entanto, cada dia fica mais fácil gostar de quem eu sou, mesmo que “o que eu sou” seja, a cada dia, uma coisa diferente e, ao mesmo tempo, uma mesma coisa. As pessoas vêm, as pessoas vão, eu fico. Eu caio, mas levanto. Eu me entrego, mas me recolho e me acolho de novo.

Talvez aquela frase de que eu sempre gostei tanto – “o que é seu está guardado” – tenha sempre querido dizer o óbvio: o que é meu está guardado aqui, comigo, não é de mais ninguém, por mais que eu precise sempre dos outros para continuar sendo “eu”.

E, não importa o que aconteça, a minha grande lição eu nunca esqueço: existe algo dentro de mim que nunca vai se quebrar.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Lição de casa

Quem espera sempre alcança.

Quem sabe faz a hora.

A pressa é inimiga da perfeição.

Quem fica parado é poste.

Quem tudo quer, nada ganha.

Quem não chora não mama.

O apressado come cru.

Quem não arrisca não petista.

Devagar se vai ao longe.

Bobeou, dançou.

De grão em grão, a galinha enche o papo.

Foi pra Portugal, perdeu o lugar.

Roma não se fez em um dia.

Um olho no gato, outro no peixe.

Panela olhada não levanta fervura.


Alô, pessoal, dá pra decidir???


Faxina

Tem cabimento ficar tanto tempo sem escrever? De jeito nenhum.

Afinal, o Mulher Solteira é uma das poucas coisas do mundo que é minha, só minha e nada mais que minha... e uma boa dose de auto-erotismo não faz mal a ninguém.

Ademais, escrever é uma boa maneira de tentar se manter sã. Tentar, é claro, já que, com o perdão do trocadilho, as tentações à loucura também abundam.

Vamos então pôr as cadeiras de pernas pra cima, passar uma vassourinha básica, espanar as teias de aranha e arregaçar as mangas.

Ao trabalho!

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Rondó da Mulher Solteira

“O amor acaba”, do Paulo Mendes Campos, me fez lembrar de uma outra crônica sua que conheci quando tinha 20 anos. Na minha opinião, é uma das coisas mais bonitas que um homem já escreveu sobre a mulher. O momento não poderia ser mais oportuno para dividir essa preciosidade com vocês:
Rondó de Mulher Só

Estou só, quer dizer, tenho ódio ao amor que terei pelo desconhecido que está a caminho, um homem cujo rosto e cuja voz desconheço.

Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doação infinita de corpo e alma.
O homem é apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conteúdo de amor. Não é por isso que o homem me atemoriza, quando aqui estou outra vez, só, em meu quarto: o que me arrepia de temor é este amor invisível e brutal como um príncipe.

Quando se fala em mulher livre, estremeço. Livre como o bêbado que repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia.
A uma mulher não se pergunta: que farás agora da tua liberdade? A nossa interrogação é uma só e muito mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai remoendo a cor e o sentido das coisas como um ácido? É terrível o horror de amar sem amor como as feras enjauladas.
É quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Somos todas selvagens: são inúteis as fantasias que vestimos para o grande baile. Selvagem era a romana que ficava em casa e tecia; selvagens eram as mulheres do harém, as mais depravadas e as mais pudicas; selvagem, furiosamente selvagem, foi a mulher na sombra da Idade Média, na sua mordaça de castidade; mesmo as santas - e Santa Teresa de Ávila foi a mais feminina de todas - fizeram da pureza e do amor divino um ato de ferocidade, como a pantera que salta inocente sobre a gazela. E selvagem sou eu sob a aparência sadia do biquíni, olhando a mecânica erótica de olhos abertos, instruída e elucidada. Pois não é na voluntariedade do sexo que está a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrolável como loucura. O sexo é simples: é a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor é complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada.
Aqui estou, só no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O resto em torno é incompreensível. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, está a caminho. Estou colocada nesse caminho como uma armadilha infalível. Só que a presa não é ele - o homem que se aproxima - mas sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a vítima das minhas armadilhas. Sou sempre eu mesma que me aprisiono quando me faço a mulher que espera um homem, o homem. Caímos sempre em nossas armadilhas. Até as prostitutas falham nos seus propósitos, incapazes de impedir que o comércio se deixe corromper pelo amor. Quantas mulheres traçaram seus esquemas com fria e bela isenção e acabaram penando de amor pelo velhote que esperavam depenar. Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm. O pior agora é que o vaso está a caminho e não sei se é taça de cristal, cântaro clássico, xícara singela, canecão de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum tempo serei derramada no chão. Os vasos têm muitas formas e andam todos eles à procura de uma bebida lendária.
Li num autor (um pouco menos idiota do que os outros, quando falam sobre nós) que o drama da mulher é ter de adaptar-se às teorias que os homens criam sobre ela. Certo. Quando a mulher neurótica por todos os poros acaba no divã do analista, aconteceu simplesmente o seguinte: ela se perdeu e não soube como ser diante do homem; a figura que deveria ter assumido se fez imprecisa.
Para esse escritor, desde que existem homens no mundo, há inúmeras teorias masculinas sobre a mulher ideal. Certo. A matrona foi inventada de acordo com as idéias de propriedade dos romanos. Como a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita, muito docilmente a mulher de César passou a comportar-se acima de qualquer suspeita. Os Dantes queriam Beatrizes castas e intocáveis, e as Beatrizes castas e intocáveis surgiram em horda. A Renascença descobriu a mulher culta, e as renascentistas moderninhas meteram a cara nos irrespiráveis alfarrábios. O romancista do século passado inventou a mulherzinha infantil, e a mulherzinha infantil veio logo pipilando.
Os tipos vão sendo criados indefinidamente. Médicos produzem enfermeiras eficientes e incisivas como instrumentos. Homens de negócios produzem secretárias capazes e discretas. As prostitutas correspondem ao padrão secreto de muitos homens. Assim somos. Indiquem-nos o modelo, que o seguiremos à risca. Querem uma esposa amantíssima - seremos a esposa amantíssima. Se a moda é mulher sexy, por que não serei a mulher sexy? Cada uma de nós pode satisfazer qualquer especificação do mercado masculino.
Seremos umas bobocas? Não. Os homens são uns bobocas. O homem é que insiste em ver em cada uma de nós - não a mulher, a mulher em estado puro ou selvagem, um ser humano do sexo feminino - o diabo, a vagabunda, a lasciva, o anjo, a companheira, a simpática, a inteligente, o busto, o sexo, a perna, a esportista... Por que exige de nós todos os papéis, menos o papel de mulher? Por que não descobre, depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina?
(O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 63-65).

A liberdade é azul

Almoço com a vizinha (que além de vizinha também é amiga, colega de trabalho e namorada do amigo do ex):

Mulher: Fui ao Berlin na terça-feira. Bem legal.
Vizinha: É mesmo? Bacana...
Mulher: Pois é, eu conhecia o baixista, tocou com o ex.
Vizinha: Sei...
Mulher: Na saída dei um ‘oi’ e ele perguntou: E o R.? Respondi ‘ah, já não estamos juntos há um ano e meio...’ Ele falou ‘é mesmo? Pra mim ficou muito marcado vocês dois juntos’ e eu ‘é natural... foram quatro anos de namoro’.
Vizinha: Uhum.
Mulher (rindo): E depois ainda acrescentei: ‘mas ele tá com outra menina... é uma história meio triste...’. Coitado, o baixista ficou meio sem graça...
Vizinha: Bom, depois de um ano e meio é mais do que natural que ele esteja com outra menina, né? O que não era muito natural era ele estar com outra menina depois de um mês.
Mulher: Nem usando aliança de compromisso.
Vizinha: Nem morando junto.

Pausa. Almoço parado no meio do caminho entre a boca e o estômago. Coração acelerado. Procurar rosto blasé nº 12.

Mulher: ... É você quem está me contando que eles estão morando juntos, é isso?
Vizinha: .. Eu? Não! Ué... Você já sabia, né? Faz tempo!
Mulher: Não, não sabia.
Vizinha (com ar de pouco caso): Ih, já faz muito tempo...
Mulher: Sei... que coisa...
Vizinha: Bom... não que isso deva fazer alguma diferença na sua vida, né?
Mulher: Pois é... Mas que coisa...

Ouvi um barulho vindo aqui de dentro mim que a princípio não soube identificar. Seria alguma coisa se quebrando? Lembrei de Paulo Mendes Campos:

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 21)

Entendi o barulho. Não era o meu coração se quebrando. Era um grilhão.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Aviso aos navegantes

Querido leitor, querida leitora:

Este blog não morreu. Está hibernando, por assim dizer.

Como leitora de blog, sempre me senti indignada quando os meus blogueiros preferidos me faltavam. Como assim, minha gente??? E o compromisso para com o público cativo?

Mas nada como um dia após o outro para a gente confirmar e reafirmar que a vida – essa danada – é mesmo um alazão desembestado. Não falta inspiração, falta tempo. Nem sempre tempo real: às vezes é o tempo interno que falta. Nessas horas só nos resta tentar agarrar um guidão imaginário e esperar para ver aonde é que a gente vai parar.

Muito obrigada àqueles que têm acompanhado o Mulher Solteira desde o começo. Tem sido uma viagem escrever para vocês... Mas, retomando o meu post inaugural, não pode ser uma obrigação. A vida tem prevalência sobre a escrita. Pelo menos é nisso que acredito.

Os leitores em abstinência podem ficar em boa companhia com os links à esquerda.

Até breve!

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

Alice no país dos espelhos

Um amigo me perguntou: “Você gosta de conhecer a intimidade das pessoas?” E, citando “Quem somos nós”, completou: "até onde você está disposta a descer na toca do coelho?"

Então eu me lembrei que sou do tipo que veste touca e óculos de natação antes de mergulhar na toca do coelho, e senti necessidade de me voltar para dentro e ouvir um pouco o meu silêncio.

Porque a intimidade das pessoas é o meu oásis e a minha intimidade tem janelas abertas de par em par, mas descer rápido demais e fundo demais nessa toca dá uma ressaca desgraçada, eu bem sei. E eu estou em um momento tão importante “Eu, eu mesma e Irene” que fiquei com medo de me perder de mim mesma.

Como eu disse para esse mesmo amigo, tenho muita curiosidade em relação ao meu futuro, mas não estou com pressa nenhuma de que ele chegue.
Para alguém que está de fora pode soar contraditório. Mas aqui dentro, eu garanto, faz todo o sentido.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Olho mágico

Ele não é jovem nem velho. Nem alto nem baixo. Não sei se é gay ou apenas solitário, mas nunca o vi em companhia de ninguém a não ser Pepo.

Pepo é o seu “pudão”: branco, desengonçado, velhinho e cego. Ele se chama Ulisses. Ulisses salvou Pepo de uma morte prematura, pois ninguém queria aquele filhote de poodle grande e mal-ajambrado. Na época a mãe de Ulisses estava doente e o médico recomendou um cão para lhe fazer companhia.

Mas isso já foi há muito tempo. Agora são apenas Ulisses e Pepo. Tenho notícias de uma irmã mais velha com quem ele vive uma relação de amor e ódio. E só. Mais ninguém.

Ele é aposentado e passa quase o dia todo dentro de casa, exceto pelos dois passeios diários religiosos para Pepo satisfazer as suas necessidades, um de manhã e outro à noite. Faça chuva, sol, vento ou calor inclemente, lá estão Ulisses e Pepo pelas ruas do bairro.

Não me lembro exatamente quando o conheci, mas sei que foi pouco depois de termos comprado a Mimi. Ele me ensinou a conversar com os cachorros e explicar com todo o carinho por que eles precisam ficar sozinhos quando a gente sai de casa. Um pouco depois o namoro acabou e a Mimi veio morar comigo, então começamos a nos encontrar nos passeios dos cachorros. Na seqüência comprei a Lola e o nosso timinho ficou completo.

Numa das primeiras vezes em que nos encontramos, eu chegando em casa e ele subindo pelo elevador, conversamos por mais de 40 minutos sentados no chão do hall. O apartamento dele ficava de frente para o meu. Não tínhamos tanto em comum, mas eu me compadecia da solidão que pressentia no seu rosto e me deixava ouvir os seus comentários levemente conspiratórios sobre os vizinhos, a síndica, os funcionários do prédio. Eu também estava solitária, afinal. Uma pequena solidão a dois.

Quando comentei que mudaria de apartamento ele não gostou. Eu sentia no seu subtexto sutis argumentos para não mudar. Ele me pedia para “ficar de olho”, para ver se os proprietários dos apartamentos que eu estava visitando não estavam inadimplentes, pegava o boleto do condomínio na mão para consultar a lista dos credores. Aos poucos foi se acostumando com a idéia.

Eu também sabia que sentiria falta dele e, principalmente, os cachorros sentiriam muita falta uns dos outros. A Mimi, a Lola e o Pepo se tornaram grandes amigos. Diria até que as duas se tornaram a razão de viver do nosso amigo pudão. Ulisses dizia, constrangido, que Pepo passava o dia com o focinho grudado na porta de casa, chorando por causa delas. Era só Ulisses sair ou chegar de um passeio com o Pepo que as cachorras vinham me avisar. Não sossegavam enquanto eu não abria a porta para a festinha canina no hall social.

A Lola, particularmente, a “embaixatriz das relações públicas”, conquistou rapidamente o Ulisses e o Pepo, a ponto de ter passe livre para entrar na casa deles e, descaradamente, comer toda a ração do coitadinho. A ponto, aliás, de Ulisses destrancar a porta que havia acabado de fechar para que a Lola pudesse “pegar uma bolota”. Tratamento vip.

Tempos atrás, Pepo ficou doente. Ulisses perdeu o chão. Não dormia, passava a noite checando a respiração do seu companheiro. Pepo não comia, já não conseguia ficar em pé direito nas patas traseiras. Temi pelo futuro de Ulisses sem Pepo. Mas milagrosamente o nosso amigo pudão se recuperou e continua se sustentando, embora vacilante, nas suas patas desengonçadas.

Ontem me despedi de Ulisses e vim para a casa nova, cheia de vizinhos ao redor e de cachorros muito menos simpáticos do que o nosso querido Pepo. Os latidos das cachorras me deixaram acordada a noite toda e quase me levaram à loucura. Desconfio que elas sentem falta de Pepo e de Ulisses. Eu também sinto falta deles.

Desconfio, porém, que quem mais sente saudade, de coisas e pessoas que ele talvez nem tenha chegado a conhecer, é Ulisses. No apartamento ao lado do seu, nunca morou ninguém. Não se sabe por que, o dono não vende, não aluga e não ocupa o apartamento. No que ficava ao lado do meu, a família de irmãos do Nordeste se mudou há poucas semanas. Com a minha saída, só restaram Ulisses e Pepo no décimo primeiro andar do bloco B.

Ulisses e Pepo e a sua solidão de um andar inteiro.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Beijo bom

No post “Mim Jane, you Tarzan”, fiz menção a um certo personagem que cruzou os caminhos da minha vida em uma festa à fantasia e acabou por ganhar a carinhosa alcunha de “Espada de São Jorge”.

Pensando novamente sobre aquela noite e recordando os acontecimentos para contá-los aqui, me peguei pensando nessa curiosa questão que diz respeito à química entre duas pessoas, manifesta em um ato mais concreto e pontual: o beijo.

É mesmo muito esquisita essa coisa de dizer: “Fulano beija muito bem”, “o beijo de Sicrano é péssimo”. Tendo mais a achar que, se a gente não gosta do beijo de alguém, é simplesmente porque não rolou a “tar” química, sem que haja um jeito certo ou errado de beijar. Até porque, penso com os meus botões, uma criatura como o São Jorge provavelmente já teve namoradas, já viveu alguns relacionamentos... não é possível que todas as mulheres reagissem ao beijo dele da mesma maneira que eu. Bem, se isso aconteceu, lamento muito por ele, mas acho mais provável que a máxima “toda panela tem a sua tampa” também se aplique a caso.

Por outro lado, pensando nas minhas experiências com a ala masculina em termos longitudinais (sem piadinhas de duplo sentido, por favor), consigo identificar claramente alguns caras cujos beijos não só não encaixaram no meu jeito de beijar logo de cara, como ainda me fizeram perguntar que inferências corporais essas pessoas tinham feito para achar que aquele jeito de beijar seria um jeito legal.

Um deles vocês já conhecem, é o Espada de São Jorge. Basicamente o problema desse cara é que ele não mexia a língua. Invadia o espaço, não me deixava me movimentar e ficava lá, imóvel, inerte. Gente, como se evolui para algum lugar com um beijo assim? O corpo todo não deveria acompanhar o movimento das línguas, os recuos, as investidas, as alternâncias de beijos longos e lentos e curtos e ousados? Tudo bem que não se beija com o cérebro, mas para mim parece óbvio que um beijo como esse não tem futuro nenhum, em todos os sentidos.

Uma outra modalidade de beijo que me causava aflição tremenda é aquele que vou chamar de “Helicóptero”. Ao contrário do Espada, o problema do Helicóptero, como o próprio nome diz, é o excesso de movimento. E mais: ainda como o próprio nome diz, nesta modalidade a língua descreve repetitivos movimentos helicoidais, ou seja, gira freneticamente (em sentido horário ou anti-horário) em torno do próprio eixo. Enquanto isso você lá, alucinada, tentando encontrar espaço para a sua própria língua. Mais uma vez eu me pergunto: como se evolui para algum lugar com esse tipo de beijo? Porque o ato se torna tão mecânico que é quase como se o rapaz estivesse seguindo uma cartilha sobre “O beijo de língua em 10 lições” (e a lição é apenas uma: gire, gire, gire...)

Por fim, o terceiro tipo de beijo que para mim nunca colou é aquele que passarei a chamar de beijo “Oco”. Esse, embora menos incômodo do que os outros dois, é ainda mais absurdo: onde já se viu um beijo de língua SEM língua? A pessoa simplesmente abre a boca pra trocar fluidos, ar, germes? Mais uma vez, nada acontece.

Então, ainda não querendo afirmar categoricamente que existe beijo “certo” e beijo “errado”, mas desconfiando que existem beijos melhores do que outros, tenho vontade de mandar um recado para um possível leitor que venha a cair de pára-quedas nesse blog e se identifique com uma dessas modalidades de beijo que eu descrevi. Amigo: vamos melhorar isso aí?

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Os piores do mundo

Já que a vida anda prevalecendo sobre a escrita (como afinal, me parece, deve ser), aproveito para requentar mais um texto, escrito em outubro de 2006, quando o Mulher Solteira ainda era um espiritinho vagando pelas terras dos bebês não-concebidos. Originalmente chamado de "cantadas que não deram certo", ele é uma seleção de alguns momentos pouco memoráveis das minhas andanças pelo mundo dos solteiros.

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Os piores do mundo ou Cantadas que não deram certo

As cantadas a seguir mostram, na experiência desta humilde blogueira, que as duas áreas de conhecimento mais mobilizadas pelos homens sem noção ao arquitetar uma cantada são a genética e a geografia:


- Oi, posso te conhecer?
- Oi, pode...
- Como cê chama?
- Mulher Solteira.
- Prazer, Mulher, Luciano. (dois beijos na bochecha)
- Prazer, Luciano. [sujeito a confirmação]
- Você é daqui mesmo?
- Como assim, daqui de São Paulo?
- Ahan.
- Sou.
- Sééério??? (ar de incrédulo)
- Sério... por quê???
- Com esses olhos???
- É... (ar de incrédula)
- Jura???
- Por que, paulista não pode ter olho claro?
- Ah, é mais raro, né... geralmente é o pessoal do Sul que tem olho claro.


- Nossa, cê é alta, né?
- É, sou...
- Onde cê mora?
- Como assim, onde aqui em São Paulo?
- É...
- (Ai, Jesus) Moro no Bairro Tal.
- Ah, tá...
(Falta de assunto total e irrestrita. Desconfio que o rapaz tá esperando a mesma pergunta.)
- (Ai, Jesus em dobro) E você?
- Ah, eu moro aqui pertinho, no Butantã...
- Ah tá, legal...


- Oi, você é daqui mesmo?
- Sou...
- Sério? Pensei que você fosse de Campinas.
- ??? É? Por quê?
- Você não tem sotaque de paulista.
-...


- Seus olhos são maravilhosos.
- Obrigada.
- É raro encontrar olhos assim...
- Imagina, no Brasil tem de tudo.
- Não é assim não, olha o meu olho... é castanho. Não é tão fácil encontrar olhos claros, especialmente em mulheres.
- É??? Nossa... nunca reparei. (procurar cara de mulher burra nº 27)
- Mas você tem razão, no Brasil tem até negro de olhos verdes.
- É verdade.
- Sério, na Bahia eu já vi... é muito estranho, o cara negão com o olho super verde.
- Ahan.
- ... mas eu não sou racista, viu?

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Minha mãe é uma sereia

I

- Mãe, você não sabe qual é a última da Mimi... Deu para fuçar na minha gaveta de meia-calça!
- Que danada!
- E o pior: ela aprendeu a abrir a gaveta SOZINHA! Eu não posso me distrair um minuto que quando vou ver já tem meia-calça espalhada pela casa inteira...
- SOZINHA? Ela é muito esperta mesmo...
- Pois é...
- ... Ai, filha... vamos montar uma gaveta com meia-calça velha para ela brincar?

II

- Pois é, mãe, a veterinária recomendou homeopatia para tentar tratar o problema de coprofagia da Mimi...
- É mesmo? Bom, tomara que ajude...
- O duro vai ser fazer a danada da bicha tomar as bolinhas.
- ... Tive uma idéia: por que você não amassa as bolinhas no chão com uma colher e depois coloca um guardanapo por cima para ela ficar curiosa?

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Breves

Segredinho I

Minha voz foi elogiada por um ex-Balão Mágico

Segredinho II

Descobri que meu amigo Gastón é um canarinho

Irvin Yalom

Será que descobri o que quero ser quando crescer?

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

O Relatório ATT

Este texto foi escrito em abril de 2007 e os clarins já anunciavam o término da minha fase “gandaia”. Sei que não se deve começar o jantar pela sobremesa, mas como não tive vontade de terminar o texto após os últimos acontecimentos da história, vale dizer que o homem em questão estranhamente (ou sabiamente) recusou o pacote perfeito que ofereci a ele – sexo com amizade e sem compromisso – e com isso deixei de querer os caras errados e voltei a procurar o cara certo.

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A Lua, o conhaque e o diabo
Nossa história começou de um jeito improvável. Porque você era definitivamente o cara errado e eu sempre tive um fraco pelos homens que pareciam certos – mesmo quando eles eram claramente errados.

Não bastasse o fato de ser o cara errado, era o cara errado da minha melhor amiga. Aquela cujos namorados, rolos e ex-rolos sempre serão samambaias para mim, até que ela diga o contrário.

A minha melhor amiga entrou numa fase generosa. Começou a dividir os ex-rolos com as amigas. Mas quando eu te vi pela primeira vez você ainda fazia o coração dela doer, e eu só conseguia olhar para você e pensar “que raios ela vê nele”, porque ela é foda, e não era para sofrer tanto por um cara todo errado como você. E daí quando a gente se viu de novo, a minha melhor amiga, que é foda, já tinha te adotado como amigo.

Poucas pessoas seriam generosas a esse ponto, mas ela foi e ninguém que a conhece se espantou com isso. E te adotando como amigo ela passou a tolerar todos os seus defeitos, acolher a sua dor e delícia, te pôr no colo e te ninar. E quando eu te vi de novo, vi o menino assustado, desprotegido, sozinho que ela estava vendo também. E eu fiz questão de te acolher também, porque eu sempre tive um fraco pelos seres desprotegidos (velhinhos, empregadas domésticas, cachorros sem dono, crianças abandonadas). E quis ser simpática e quis me interessar por você e quis mostrar que eu também vivia a minha pequena solidão, embora ela já não me assustasse tanto.

Mais tarde a noite nos abraçou e eu fui dançar sem quase lembrar que você estava lá. Mas a amiga, meio-bêbada-meio-sóbria, veio contar no meu ouvido que você tinha gostado de mim. E eu meio que desacreditei daquilo. A amiga gosta de formar casais. Os caras errados não se interessam por mim, porque eu sou definitivamente a mulher certa. Mas até isso eu estou aprendendo a desaprender, aprendendo a ser errada também e me divertindo com os meus erros e os dos outros.

Então eu resolvi te olhar de novo e melhor. E vi o seu interesse. Você é mais baixo do que eu, mas me pôs sentada e mais tarde me disse que não se incomoda com essas bobagens e só nessa frase você quase já me ganhou. Falamos da vida, da minha e da sua, e eu gostei de quem eu era perto de você. Falei com naturalidade das minhas descobertas recentes e vi que você me admirou, e isso me fez bem. A amiga me contou que você fala quatro línguas, você fez literatura em Londres, você é culto e inteligente, mas como sempre não foi isso que me pegou. O que me pegou foi a sua sensibilidade, levemente cafajeste, levemente disfarçada de humor barato, mas uma sólida e palpável sensibilidade. Eu ainda me lembrei que você era errado e, além de errado, era o menino desprotegido, e achei que talvez fosse uma péssima idéia abrir espaço para a minha curiosidade. Mas a própria amiga incentivou e você garantiu que daquele mato não saía mais coelho. Tive medo de te afastar da minha amiga, pelo seu possível futuro medo de mim. Mas o beijo que você me deu no rosto me desmontou. E eu te beijei e gostei.

E beijei mais. E te levei pra casa. E passei a noite com você. E gostei. E no dia seguinte descobri que você tinha gostado também. E me senti ótima. Mesmo você não tendo pedido o meu telefone, me senti ótima e achei que a nossa história ainda estava só começando. Você pediu o meu telefone para a minha amiga, mas não me ligou. E quando você ligou, eu não atendi porque estava ocupada e o telefone estava desligado. E até imaginei que pudesse ser você, número novo, celular, quinta-feira, pensei em perguntar para a amiga mas preferi esperar e viver a espera em silêncio.

Pouco tempo depois você ligou de novo, e dessa vez eu não ouvi a campainha mas ouvi o recado caindo na caixa postal, e quando liguei para o centro de mensagens eu já sabia que ia ouvir a sua voz. E você me deixou um recado banal, vago. E eu não te liguei de volta. Porque eu sabia que você era errado. Porque eu achei que era assim que se agia com homens errados, porque eles gostam de ser temidos e respeitados e eu quis respeitar as regras sobre homens errados. Também porque eu tive dúvidas sobre o meu interesse por você. Afinal, eu não sou de gostar de homens errados. Os homens errados me deixam entediada com os seus medos. Eu gosto de intensidade, de profundidade, de ir até o fundo das coisas e só depois tentar descobrir se dá pé. E não dá pra fazer isso com um homem assumidamente errado, auto-declaradamente errado. Então eu não te liguei. Mas achei que eu podia te ligar depois, porque eu queria. Não sabia muito bem ainda o que eu queria, mas eu queria alguma coisa.

Só que o meu silêncio mexeu com os seus brios. E quando eu te liguei depois de levar um puxão de orelha da minha amiga, você resolveu me tratar mal. Não um tratar mal escancarado; aquele tratar mal velado, que parece que tem boas intenções mas se aproveita disso para passar o recibo de cafajeste na primeira oportunidade e causar ainda mais efeito. Eu achei que você queria se vingar de mim. Você alegou cansaço. Eu não acreditei e te apaguei. Apaguei confiando que eu não devia deixar perto de mim nenhuma armadilha que me levasse de novo para perto de você. Um tempo depois você quis me procurar. Ou me fez acreditar que queria. Você demorou para aparecer e só alimentou a minha certeza de que você era errado, errado, errado. Mas aí você apareceu. Apareceu errado, cara-de-pau, cafajeste... mas alguma coisa acendeu dentro de mim. Eu quis pagar pra ver.

Fui te ver. E vi um terceiro, que não era o errado, nem o desprotegido. Você deixou escapar que tinha pensado em mim naquele dia. Não com essas palavras, não explicitamente. Mas inequivocamente você quis me dizer que pensou em mim. E eu me senti lisonjeada, e espantada ao mesmo tempo. E gostei. E te beijei de novo. E me deixei levar de novo e foi bom, muito bom. Fiquei dolorida até, mas a dor me lembrava do prazer e me fazia sentir de novo aquela pessoa que eu sinto prazer em ser quando estou com você. Porque você me chama de mocinha racional e fica espantado com o meu beijo de mulher passional. Duas-em-uma.

Você viajou e eu fiquei e fui construindo você dentro de mim. E cada janela que subia no msn fazia o meu coração bater mais forte. Mas quando você entrou e me chamou para conversar, nada do que eu havia imaginado foi dito. Você veio dizer que achava que a gente devia ser amigos. E eu aceitei, mas alguma coisa esfriou e depois secou dentro de mim. Logo em seguida percebi que você só estava com medo. E esse medo me intriga, me fascina, me puxa para perto de você. E me faz me lançar cada vez mais, pois quanto mais medo você tem, mais eu fico corajosa. Querendo brincar com fogo. Você quis me fazer acreditar que só queria ser meu amigo, mas o seu desejo te traiu.

Então eu tive que esperar para saber o que eu era sua. E tive que te encontrar no meio de muitas tentações. E te perguntei se você estava com medo, mas vi que não. E isso me deixou excitada. E você brincou com a minha saia. E trançou a sua perna na minha. E eu te chamei para vir mais perto e você veio e me beijou perto da orelha, daquele jeito. E eu quis sentir o seu cheiro e o seu gosto de perto antes de beijar a sua boca, e o cheiro do cigarro e da cerveja mal disfarçado pelo seu chiclete me inebriou, mesmo eu não gostando de cigarro e nem de cerveja.

E você me levou de novo. E de novo foi bom, mas dessa vez melhor, ainda melhor que da primeira, que da segunda. O seu cheiro, o seu gosto, a sua pele macia, os seus braços, todo o resto. Meus sentidos todos alertas. As luzes acesas, diferente do que eu estou acostumada. Você me olhando e eu te olhando, e te achando lindo e te desejando. E me achando linda e desejável. E você tendo prazer e eu adorando te dar prazer.

Depois de tudo você ronca alto e eu não consigo dormir. Então você não precisa ter medo de que eu vá passar a noite na sua casa, porque eu não consigo dormir com você roncando e me levanto e me visto, e vou para casa, mas antes eu te conto que você ronca muito alto e você ri com cara de menino.

E no dia seguinte eu te procuro e quase me mostro nua e você responde lacônico que a gente precisa tomar jeito. E agora nesse pé eu tento entender quem você é, quem eu sou com e sem você, quem nós poderemos ser. Tento entender o seu medo e o meu medo. Penso que eu quero me jogar, porque eu estou aqui para isso. Eu sei que eu posso porque aprendi a ser leve, mas não deixei de ser intensa. Leveza com profundidade é tudo, é o meu mote, o meu mantra. E a sua intensidade me fascina, mas a nossa leveza também me seduz. E o cheiro da cerveja e do cigarro ainda parecem estar nas minhas narinas, enquanto penso em você e escrevo, insone, às quatro e oito da manhã.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Cuma?

Surdo em bingo é apelido. Deve ser isso o que se chama de o tal "maravilhoso mistério da vida" (ou é "milagre da vida"? Pesquei).

domingo, 19 de agosto de 2007

Mensagens ao mar



Oi!
Superei. Como vai você?

*****

Oi!
Não superei, mas vou indo!

*****

Oi!
Como vão as coisas aí na China?

*****

Oi!
Você é mesmo quem eu pensei que fosse?

*****

Oi!
Que bom que te reencontrei! Obrigada por tudo o que você foi pra mim.

*****

Oi!
Ainda tenho algum motivo para acreditar que as coisas não são o que parecem?

*****

Oi!
Que bom que você chegou. Você faz idéia de que estou te esperando há uma vida?

sábado, 18 de agosto de 2007

Pequeno dicionário amoroso

Eu fiquei devendo aos navegantes alguns esclarecimentos a respeito de novas modalidades de relacionamento da mulher pós-moderna e bem resolvida, entre elas o PA e o ATT. (Lembrem-se: esse texto foi escrito ANTES da minha ida ao Jô Soares!)

Pois bem. A primeira vez que ouvi falar em PA foi da boca de uma amiga decididamente bem-resolvida, que viveu intensamente as suas andanças de mulher solteira e uns anos atrás resolveu amarrar o seu burrinho à sombra de uma árvore frondosa (em outras palavras: casou).

Foi dessa figura que ouvi também, pela primeira vez, a respeito da “pica mágica”. Mas essa eu vou deixar para outro post (Xerazade, Xerazade...).

O fato é que PA nada mais é do que a abreviação de “Pinto Amigo” (já vi em outro blog o correlato “Pau Amigo” e também soube do “Fucking Friend”, mas já falei aqui sobre os meus pudores em nomear as partes íntimas e “pinto” me parece mais, digamos, amigável). Trata-se daquele sujeito com quem a mulher tem um relacionamento cordial e que se propõe a atendê-la em momentos de seca.

Imagino eu que os homens já estejam carecas de usufruir dessa modalidade de relacionamento (o Cafajeste certa vez se referiu à versão feminina do PA como “Mulher Remédio”). A novidade aqui é que também a mulher assume que se trata de um relacionamento fundamentalmente baseado em sexo, sem compromisso, sem cobranças e sem expectativas com relação ao futuro.

Acho interessante que à palavra “Pinto” seja acrescido o adjetivo “Amigo”, porque isso mostra que, além da presteza do dono do próprio em atender aos chamados em momentos de necessidade, também pode (e, para mim, deve) haver carinho e companheirismo nesse tipo de relação. A questão é que de fato não se tem substrato suficiente para uma verdadeira amizade, nem para um “algo mais” (ou até se tem, mas por algum motivo não há interesse em deixar que se desenvolva).

Algum tempo depois, conversando com outra amiga e narrando algumas aventuras com um PA que eu havia descolado, fui apresentada a uma outra denominação para o fenômeno: ATT. Falamos aqui da modalidade de relacionamento “Amigos Também Transam”. Imagino que possa se aplicar aos casos de pessoas que mantém uma relação de amizade e, eventualmente, conseguem transar sem que isso afete o relacionamento e nem este se torne alguma outra coisa. Imagino que nem todo mundo consiga administrar uma relação assim. Eu, como tenho pouca experiência em ter amigos homens justamente pela dificuldade em separar amizade genuína de tesão ou interesse, nunca vivi essa experiência.

Mas quando arranjei o meu segundo PA e, lá pelas tantas, ele ficou com medo que eu estivesse me envolvendo e veio com aquele papo de que queria ser meu amigo, eu, para não perder a boquinha, abri o jogo e disse a ele que eu estava totalmente a fim de um relacionamento casual. E embora para mim ele fosse um PA, resolvi me referir à nossa “condição” como ATT porque isso me pareceu mais digno. De fato, tínhamos uma amiga em comum e por isso a situação exigia um pouco mais de cerimônia do que a minha situação com o outro PA, com quem tive o relacionamento mais livre de toda a minha vida.

O meu primeiro PA realmente rompeu paradigmas – sem piadinhas de duplo sentido, por favor. O primeiro PA a gente nunca esquece. Eu estava no ápice da minha fase “gandaia”, soltinha, curtindo sair para ir a lugares em que conhecia pouca gente e fazer novas amizades, se é que vocês me entendem. Também havia tomado há pouco tempo a minha decisão de ano-novo de beber um pouquinho de vez em quando (deixo essa para outro post também). Assim, quando me vi na festa de 30 anos open-bar do namorado de uma amiga, praticamente sem conhecer ninguém, começou a tocar uma música boa na pista e pensei: “é pra lá que eu vou!”. Lá pelas tantas fiz um pit-stop no bar e pedi uma caipirinha de vodka. Tomei relativamente rápido e não senti efeito nenhum, então resolvi repetir a dose. Do meio pro fim da segunda caipirinha já fiquei le-gal... e saquei que tinha um cara me olhando na pista. E continuei dançado com cara de “Serena & Natural” com o meu melhor sorriso (bêbado). Lá pelas tantas o cara chegou junto e, depois de três frases trocadas, começaram a cantar “Parabéns a Você” para o aniversariante em plena pista. Nem vi o bolo. Em dois minutos estávamos nos beijando e virando polvo (dessa vez não posso reclamar, minha mão também ficou boba, boba).

O detalhe pitoresco dessa ficada é que nessa festa praticamente todo mundo se conhecia e todos os casais formados namoravam há anos. Ou seja, a cena picante na pista de dança atraiu a atenção dos convidados e algum engraçadinho teve a brilhante idéia de imortalizá-la. A foto está aqui, guardadinha no meu laptop (depois de meses de insistência até a amiga liberá-la – menos por pudor ou provocação e mais por falta de tempo para baixar as fotos da festa no computador). Não deixa de ser uma boa recordação daqueles tempos...

Bom, quando o rapaz perguntou se eu queria ir com ele ao banheiro me dei conta de que a coisa já estava bem para lá de Marraquesh. Mas, devido ao meu teor etílico (finalmente entendi por que as pessoas bebem) e considerando que aquela era uma festa fechada e o rapaz tinha alguma procedência (há!), me baixou um pensamento “whattahell” e um espírito “born to be wild”. Com a sanidade que ainda me restava, perguntei se ele estava “prevenido” e acabamos indo para o carro e de lá (mãe, por favor, se você estiver lendo este blog vá buscar um copo d’água) para um motel. Daí pra frente as lembranças são uma seqüência de flashes pra lá de cinematográficos. Como eu disse um pouco antes, mas não com todas as palavras, foi o sexo mais livre que já fiz na vida.

No dia seguinte, descobrimos que o meu carro havia ficado preso no estacionamento da balada e o mocinho gentilmente me levou para casa (detalhe: eu ia receber 30 pessoas em casa naquela noite para comemorar meu aniversário, e ainda não havia comprado absolutamente nada. Agradeço à querida Lilão que me emprestou o seu possante para fazer as compras, evitando que aquele evento fosse um absoluto fiasco).

Foi só nessa viagem que conseguimos efetivamente conversar sobre alguma coisa, e o papo foi bem bacana. Na porta do prédio ele pediu meu telefone e eu dei por desencargo de consciência – que homem, em sã consciência, ia querer ligar depois de uma noite dessas?

Ligou. Sugeriu de a gente se ver, mas não quis marcar nada concreto, então duvidei que ele voltasse a ligar. Mas ligou de novo, e dessa vez me convidou para tomar uma “cerveja” (“cerveja” e “café”, nas minhas conversas, são metáforas para uma boa conversa com um(a) amigo(a) ou pretê), convite ao qual aceitei prontamente.

O gatinho fez bonito: se ofereceu para me buscar em casa, abriu a porta do carro, pagou a conta. Não faço questão dessas coisas, mas naquele contexto, depois do jeito selvagem que as coisas tinham começado, um pouco de delicadeza não faria mal a ninguém.

Conversamos mais um tanto, bebi mais um pouquinho. Achei tudo muito divertido. Falamos abertamente sobre o que havia acontecido, sobre o nosso passado amoroso, nos beijamos e a coisa começou a esquentar outra vez. O resto já se pode deduzir.

Num outro fim de semana, tomei a iniciativa e mandei um torpedo convidando-o para fazer alguma coisa. Ele respondeu prontamente, dizendo que me ligava mais tarde. Acabamos combinando de nos ver no domingo. Ele ligou no exato horário combinado. Disse que estava com um DVD emprestado, perguntou se eu tinha o aparelho na minha casa e sugeriu de vir me encontrar. É claro que saquei o golpe, mas não havia por que ter pudores àquela altura do campeonato. Topei, ele veio e tudo foi muito bom, mais uma vez.

Mais alguns dias se passaram e o PA ligou de novo. Comecei a acreditar em Papai Noel e em Coelhinho da Páscoa. Estava tão orgulhosa de mim mesma por estar sustentando uma relação casual por mais de um encontro! Na hora não pude atender, então retornei à noite, conversamos e combinamos de nos ver no fim de semana. Ele já havia dito que não poderia na sexta (estávamos em uma quinta), mas achou que no sábado ou no domingo ia rolar.

No sábado, então, já que eu não tinha nada a perder e queria saber o que fazer da vida, liguei e deixei um recado pedindo pra ele me ligar de volta, para saber se íamos mesmo nos encontrar ou não.

O retorno do rapaz só veio por torpedo na segunda-feira. “Esse fim de semana não deu. Mas posso passar na sua casa amanhã à noite. Que tal?”.

Foi aí que a minha pós-modernidade começou a ruir. Pera lá, amigo... a gente é adulto, maior de idade, vacinado, eu sei o que você quer, você sabe o que eu quero... pero sín perder la ternura, jamás! Sexo-delivery não é comigo. Não é porque não estou a fim de compromisso ou não tenho expectativas em relação a um PA que vou deixar de me interessar, preocupar, respeitar e ter carinho pelo rapaz (especialmente depois de algum tempo). E nem que vou deixar de querer ir ao cinema, bater-papo, sair, ouvir música etc. Então não é assim que se faz... tem que levar pra passear, fazer carinho, seduzir...

Só de briozinho não respondi ao tal torpedo e confesso, fiquei ainda mais orgulhosa de mim mesma. Eu digo que o primeiro PA rompeu paradigmas! Pela primeira vez o meu amor próprio foi maior do que a minha curiosidade ou vontade de alimentar uma historinha, só para ter uma vida menos ordinária. É claro que, dias depois, mandei um torpedo ou um e-mail como se nada tivesse acontecido... e o rapaz acabou ligando de novo, batemos mais um papo e combinamos outra tentativa de encontro pro final de semana.

No fatídico domingo ele me liga (estava saindo do plantão no trabalho) dizendo que está meio cansado e sugerindo de “passar na minha casa”. Ah, não... digo que eu estou a fim de sair, ele titubeia, diz que vai me ligar de novo. Liga, avisa que vai para casa tomar um banho e dar uma descansada para ver se agüenta sair. E nunca mais liga de novo.

E eu? Fiquei na minha. Foi a primeira vez que senti que alguns tipos de relação têm prazo de validade. Tudo o que aconteceu foi ótimo, mas nenhum de nós estava disposto a fazer mais nenhum esforço para que esse caso tivesse uma continuidade. Ele estava com uma viagem marcada para a Ilha de Malta (seja lá o que for que as pessoas vão fazer na Ilha de Malta). Eu, confesso, já estava mais interessada no meu segundo PA / ATT...

Mas essa, meus amigos, é uma outra história, para um outro pôr-do-sol.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Poliana sou eu

Nesses dias de grandes pequenos acontecimentos que me fazem saborear a vida com avidez, contando a uma amiga que o rapaz – aquele – de quem eu estava gostando disse que podíamos ser amigos, mas que não achei isso necessariamente ruim (pois para alguns isso pode ser um ponto de partida, e não de chegada), ela logo soltou: “Poliana!”

Contei para minha prima que tinha acertado a minha mudança para outro apartamento aqui no prédio e, quando ela comentou sobre a trabalheira e respondi que eu estava animada com a perspectiva de pintar uma parede da sala e pendurar vários quadrinhos, ela lembrou: “que bom que você é Poliana (versão brasileira) que nem eu!”

Nunca me vi como uma pessoa essencialmente otimista. Na verdade, sempre me achei bastante realista (pessimista certamente não sou). Mas de fato sou alguém que tem fé e esperança nas pessoas, no amor, na felicidade, enfim, no humano.

Poliana foi um ícone da literatura juvenil dos tempos da minha mãe e tias que respingou até a minha infância e adolescência e até hoje é uma referência para as mulheres de vinte a noventa anos. Li não só o livro “Poliana” como também o “Poliana Moça” (várias vezes, como de praxe), uma continuação do primeiro, coisas de um tempo em que as trilogias ainda não tinham virado moda.

Se a memória não me falha (é raro, mas acontece), Poliana era uma menina pobre, talvez órfã de mãe (depois, para a tragédia tomar proporções bíblicas, também fica órfã de pai e vai viver com algum parente diabólico – enredo certeiro de boa parte dos livros que li na infância), criada pelo pai com altas e maciças doses de otimismo. O pai ensina a Poliana o “Jogo do Contente” (seria a pré-História do limão e da limonada?), segundo o qual, para cada coisa ruim que nos acontece, há pelo menos uma coisa boa que a neutraliza ou mesmo supera.

Pois bem. Hoje era o deadline para devolver minhas muletas. Uma das minhas sacrossantas amigas (alô, Carol!) as havia alugado para mim dois dias depois do meu pequeno acidente doméstico. E foi um tal de “quebrou o pé”, “não quebrou o pé”, “ande mais”, “ande menos”, “pode ser A, B, C, todas as acima ou nenhuma das anteriores” até finalmente chegar ao diagnóstico final – uma simples mas importante fissura no osso calcanho do pé, cuja consolidação leva de seis a oito semanas e, enquanto isso, andar pouco, subir e descer pouca escada e dirigir à vontade, mas com cautela – que as muletas acabaram ficando apoiadas na parede do quarto, just in case, até eu ter certeza de que não precisaria mais delas.

E, mesmo se não tivesse sido assim, provavelmente eu teria deixado para devolver as muletas no último dia possível. Procrastinar – procristinar – é um dos primeiros verbetes do meu dicionário (por que fazer hoje algo se você pode deixar para amanhã?). No entanto, neste caso, era imprescindível respeitar o prazo, já que as conseqüências inevitáveis se voltariam contra a caução do cartão de crédito da minha sacrossanta amiga, que nada tem a ver com a maneira como lido com o tempo ou as obrigações.

Como Deus é clown (copyright by Marcio Ballas, 2007) ou Murphy impera (a depender da convicção religiosa de cada um), de última hora apareceu um compromisso irrecusável que acabou espremendo meu dia no trabalho entre a devolução das muletas e o curso noturno in company bissexto das quartas-feiras, que quando está quase morrendo ressuscita e calhou de reiniciar justo hoje. Além de procrastinar (e a procrastinação contribui pra isso), sempre faço questão de preencher o dia com mais compromissos do que eu deveria poder dar conta – mas dou conta de todos, com alguns efeitos colaterais. Por isso aceitei o convite para almoçar com a minha queridíssima comadre (alô, Helô!) e o meu lindo-amado-idolatrado-salve-salve afilhado Gabo (alô, Gabo!) no nosso Di Nóca. Mas, pra variar, dormi tarde, não acordei tão cedo quanto deveria, atrasei 15 minutos pra sair de casa e desconsiderei os 15 minutos de praxe para imprevistos, trânsitos infernais e afins.

A comadre já estava a postos, com um par de bochechas cercado de bebê por todos os lados me esperando para pôr os assuntos em dia, e eu lá, presa no engarrafamento da Oscar Freire. Olhei para as muletas e pensei: “ninguém merece! Onde já se viu perder tanto tempo na vida para devolver muletas...”. Mas logo em seguida me censurei pensando na sorte de ter sacrossantas amigas que me alugam muletas (alô, Carol!), fazem supermercado (alô, Sá!), acompanham até o hospital (alô, Má!), levam pra fazer exame (alô, Carol!), compram bota ortopédica (alô, Má!), compram almoço (alô, Carol e Sá!), dão carona (alô Carol, Sá, Lé, Má, Rafa, Fê, outra Fê!), emprestam dinheiro (et alli)... e, sobretudo, na sorte de não ter tido de usar muletas por mais do que cinco dias. Francamente! Muletas só são divertidas quando não precisamos delas.

Foi então que o céu se abriu, os anjos cantaram e um facho luminoso se estendeu desde o infinito até o topo da minha cabeça e percebi: Eu sou a Poliana!

Logo no início do livro, Poliana e seu pai encomendam uma boneca através de um serviço de compras pelo correio (devia ser o Submarino daquela época) e, depois de meses de espera e ansiedade, quando a caixa chega, Poliana descobre, desapontada, que o pessoal da logística (só podia ser) se enganou e enviou no lugar da boneca um par de muletas. É nesta ocasião que o sábio pai de Poliana forja a filosofia do “Jogo do Contente”, lembrando à menina que ela deve se rejubilar (santa ética protestante) pelo fato de não necessitar das muletas...

É, meus amigos. É como se diz por aí: A vida imita a arte, a arte imita a vida...