sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Meu primeiro amor

Porque o amor é complexo, difícil de explicar e impossível de medir, e porque ele se apresenta sob as mais diversas formas, nas mais variadas circunstâncias, é comum que cada um de nós tenha mais de um “primeiro amor”: o primeiro amor da infância ou da adolescência, o primeiro amor não-correspondido, o primeiro amor que deu certo, o primeiro “grande amor”, o primeiro amor adulto... A história que conto aqui é sobre um desses primeiros amores. Se o chamo de “primeiro” é porque, além de ocupar a gavetinha mais antiga nas minhas memórias daquele sentimento que com a vida aprendi a chamar de “amor”, foi com ele que vivi pela primeira vez a delícia, o êxtase e o arrebatamento de ser correspondida. Aquele dia em que céu e terra se juntam e você percebe, nos olhos do menino da oitava série, que também é especial para ele.
Nossa história começa em um acampamento de férias. Da primeira vez, que eu me lembre, só tivemos uma conversa, rápida, sobre lagartixas. Eu o achei incrível: bonito, inteligente e espirituoso. Não que eu soubesse, aos onze anos de idade, o que era ser espirituoso... Mas achei demais que aquele menino de treze anos gastasse o seu precioso tempo comigo, explicando, diante da minha expressão de genuína admiração e asco, que era possível enxergar os órgãos internos da lagartixa se você a virasse de barriga para cima. (Conhecem a teoria da vocação precoce? Esse aí virou médico...)
Não houve mais nenhum contato naquela temporada. E, como naquele tempo a minha autoestima era bem mais baixa do que eu, o simples fato de uma outra garota também gostar dele me fez achar que eles ficariam juntos e não havia esperança para mim.
Um ano se passou e, mais uma vez, nos encontramos na temporada de janeiro. Dessa vez, algo diferente aconteceu... Primeiro, torci com todas as forças para cairmos na mesma equipe na “gincores”. Bingo! Lá estávamos nós, na equipe azul (“Azul ODD líquido” era o nome da nossa equipe, e o hino era uma paródia de “Quero ver / Você não chorar...”), fazendo cartazes, bolando fantasias e montando carros alegóricos (a proposta era um tanto carnavalesca, e um prato cheio para a minha criatividade-em-busca-de-meios-de-expressão). Depois, quando fiquei gripada, torci para ele ficar também (afinal, se eventualmente rolasse um beijo, eu não queria carregar o fardo de lhe ter transmitido um vírus!). Bingo de novo. Os astros estavam ao meu favor!
Tenho lembranças doces daquela semana, embora muito esmaecidas pelo tempo. O que restou, sobretudo, foi a sensação maravilhosa de que alguém me notara na multidão: andávamos de mãos dadas, ríamos, conversávamos, estávamos sempre juntos, para cima e para baixo. Para oficializar a união, só faltava mesmo o beijo acontecer. E lá estava o bailinho de sábado à noite, para garantir clima e ambiente perfeitos.
Clima e ambiente perfeitos, com um detalhe: o meu medo de beijar. Ah, sim, eu era BV! E que fique claro aqui que não falávamos de um “medinho bom”, do tipo frio na barriga que antecede algo que desejamos muito. Estava mais para pavor, paúra, fobia, pânico, horror. Sim, sim, eu preciso confessar: amarelei.
A música era “Don’t cry”, do Guns n’ Roses. A luz era baixa, a pista estava cheia e os amigos na torcida. Na minha barriga, misturados o prazer de um contato físico tão próximo e o horror da iminência do momento de trocarmos fluidos salivares. Assim que a música acabou, meu pobre primeiro amor, arriscando um assunto qualquer para quebrar o gelo, lançou: “Puxa, que horas será que são?...”.
Imbuída do mais genuíno pânico, balbuciei “Não sei! Vamos perguntar?” e dei no pé. Ele foi me achar quase meia hora depois, enfiada no alojamento feminino, grudada no meu ursinho de pelúcia que tinha ganhado o nome de “Pacato” em homenagem a ele (era esse o seu apelido no acampamento). Burlando a barreira das monitoras, ficou em pé ao lado do meu beliche, segurando minha mão e tentando me convencer a sair com ele do alojamento. Em vão... Algum tempo depois, uma das monitoras descobriu o intruso e o expulsou de lá. Eu, mais aliviada e frustrada do que nunca. Será que ainda tínhamos algum futuro?
No dia seguinte, ele mal falou comigo. Eu não podia culpá-lo... Nem eu mesma sabia explicar minha atitude! No ônibus de volta para São Paulo, incumbi uma amiga de pedir o telefone dele. Tenho até hoje o papel guardado, os números quase apagados escritos a lápis...
Começamos uma época gostosa de telefonemas e cartas de amor. A primeira dizia: “beijos da garota que gosta muito de você”. A segunda: “beijos de quem te adora”. A terceira: “Te adoro muito!” Na quarta já nos amávamos e jurávamos amor eterno... O próximo passo, natural e inevitável, era nos encontrarmos de novo. Lá foi ele me visitar. À noite, fomos à festa de aniversário de uma amiga. Eu e “meu namorado”... Tudo lindo, tudo o que a então garota da oitava série podia querer, exceto por um detalhe: o tal beijo que ainda não havia acontecido. Quando a mãe dele veio buscá-lo, no fim da festa, eu o abracei e disse no seu ouvido: “Não tenta nada, pelo amor de Deus”... Como estava difícil sair da latência e me apropriar daquele corpo!
Uns dois meses depois, fomos viajar de férias, cada um com a sua respectiva família. Para o retorno, tínhamos a promessa de finalmente concretizar o nosso amor, o nosso namoro, o nosso primeiro beijo... Sim, está certo quem disser que eu amarelei de novo. Dessa vez, de um jeito que eu levei muitos anos para entender: transferi o meu horror, medo, pânico, fobia e asco do beijo para o seu mensageiro. Na volta da viagem, por telefone, terminei tudo. Ele, atônito. Eu, aliviada. E, dessa vez, nem um pouco frustrada.
(Pausa para agradecimento público à minha mãe que, notando que eu era uma adolescente “complicadinha”, logo me encaminhou para uma análise... Mãe, o que teria sido de mim sem essa sua intervenção precoce, hein?)
A inversão dos meus sentimentos se deu de forma tão surpreendente quanto eficaz, a ponto de, no meu aniversário do ano seguinte, ao saber que ele aparecera de surpresa no meu prédio, eu sequer tê-lo convidado a subir (não me orgulho disso, é claro, mas há certo jogo de cintura que a gente realmente só adquire no correr da vida...).
Passamos uns dois anos sem nos falar. E então, com o necessário distanciamento da situação – e ainda BV! –, pude perceber que eu perdera uma coisa preciosa e tive vontade de recuperá-la. Mas, como a fila anda, a essa altura meu primeiro amor já estava acompanhado há tempos.
Voltamos a nos falar com certa frequência, ele chegou a me visitar em casa e tivemos algumas conversas um tanto perturbadoras. Um dia, movido por um impulso, ele ligou para me comunicar que terminara com a namorada e que passaria para me pegar em casa no final da tarde. Pavor, pavor! Arrebatamento...
Uma adolescente "complicadinha" como eu não poderia ter encontrado um primeiro amor mais generoso. Pois com toda a paciência do mundo e sem se ofender ele suportou o meu ataque de riso histérico enquanto, aos poucos, vencia as minhas resistências para finalmente selar a nossa ligação com um beijo, com quase seis anos de atraso. E, com o seu humor peculiar, comentou: “viu? Não é nada complicado... Agora só falta você parar de rir!”.
Voltei para casa em estado de graça e não preguei o olho a noite toda (será que foi por isso que não passei na primeira fase da seleção da EAD no dia seguinte? Pelo menos no vestibular do domingo eu consegui a pontuação mínima para passar para a segunda fase...). Fui descobrir no dia seguinte que o beijo tão esperado não se repetiria. Afinal, nosso tempo passara. E, com o passar dos anos, descobrimos sem tristeza nem arrependimento que a nossa história seria escrita assim: Certa vez, um dia, em um tempo distante...
Felizmente, por termos cada um a sua parcela de culpa nos desencontros, soubemos nos perdoar e preservar um carinho desses que nunca se perde, mesmo que fiquemos anos sem nos falar. Aliás, em um desses recessos prolongados, o danado me deixou para trás na Bozocorrida da Vida Adulta, comendo fumaça... Chegou aos 30 anos casado, ajuizado e com dois filhos lindos! Como, aliás, eu sempre imaginei que aconteceria.
Em um dos nossos recentes cafés, gastamos alguns minutos tentando lembrar, com uma gostosa nostalgia, quando teria sido o momento exato em que nos “vimos” pela primeira vez. Comentei sobre o encontro no acampamento, sobre a conversa da lagartixa... Mas ele insistiu que não, que ele havia me visto antes que eu o notasse. E completou: “Foi na pracinha, no ponto de saída do ônibus para o acampamento. Lembro de ter te achado uma coisa de louco, e pensado: ‘essa menina é de outro mundo! De outro planeta’. Para mim, você estava em outro patamar...”.
Guardei essas palavras como uma joia no meu coração, assim como a mensagem que ele me enviou naquela noite, dizendo o quanto estar em minha companhia soava “familiar”, como se o tempo e o espaço fossem incapazes de produzir entre nós uma sensação de distanciamento. E que provavelmente ele poderia dizer isso de pouquíssimas pessoas ao longo da vida...
Meu primeiro amor foi assim: me olhou, me viu, achou que eu era de outro mundo e, mesmo com todas as curvas da vida, nunca mais foi embora de mim.

11 comentários:

neli araujo disse...

Cris querida,

Como é bom te ler, linda!

Me trouxe boas lembranças dos meus primeiros amores, e muitos bons sentimentos!

Fiquei em estado de graça!

beijos, linda!

tia Bó

Ana disse...

Ai que lindo esse post... emocionante.
Que bom que ele continuou na sua vida, isso é tao raro de acontecer com os primeiros amores...
Beijo.

Renatinha disse...

Cris,
Que delícia de história!
Me vez viver todo o seu primeiro amor como se fosse meu...
Posso?
Amizades e histórias assim não tem preço, é bom guardá-las com carinho mesmo.
beijos
Re

Isadora Canto disse...

Puxa, estou em lágrimas. Como vc é linda! Ele tbm acha. Que rítimo de vida delicioso, quanto respeito de vc à vc!
Lindo, lindo!

Mulher Casada disse...

Nossa, que bons tempos de Carroção? Quem não teve algum amor nesses dias de gincores (engraçado, só lembro da música do meu time de pequeninas quando por uma vez fui uma sub-monitora: "nós somos bonequinas do Sítio do Carroção...").

Quem nunca foi, não sabe o que perdeu, Carroção, Barnabé, foram tantos, né?

Beijos,

Mulher Casada

Nine disse...

Êta, Mulher Solteira!

Que história mais linda de um primeiro amor. E mais linda ainda foi a maneira como ela se eternizou dentro de vocês dois. Uma lembrança doce e digna para essa mulher que sempre esteve em outro patamar! :p

Asa Ritmada disse...

Ai "fada-madrinha" (incorporei, rs...),
esse eu ainda não tinha lido (estava esperando o momento certo, pq ele é graaaaande).
Que lindo. Estou aqui emocionada...
Amanhã já estou de volta.
Beijocas

Dani disse...

Que liiiiiindoooo!!! Adorei a história.
Raridade nos dias de hoje!
Também tive um primeiro amor que continua na minha vida, mas não da forma como começou.
E acho isso bom. Não sei perder as pessoas.

Bjs.

Bobby disse...

"Da primeira vez, que eu me lembre, só tivemos uma conversa, rápida, sobre lagartixas." Ge-ni-al.
Ai, Cris, que delícia de amor!
E como vc escreve bonito!
Que bom que vc me visita, muitíssimo prazer.
Beijo,
Ro

Marianna Cataldi disse...

Cris, não sei se você sabe, mas eu descobri isso ontem e estou em cólicas pensando nisso! Bernhard Schlink lançou livro novo no Brasil, se chama "A volta para casa" e, pelo que eu li, tem a mesma temática de "O leitor", sobre a culpa que os alemães sentem pelo nazismo... E muito parecida também com a própria vida de Schlink. Ah! :)

X disse...

Ai que lindo.. me deu até vontade de chorar...