sábado, 27 de setembro de 2008

Cegueira

Foi já na primeira mirada que notou algo de diferente. Coisas que os olhos percebem antes do resto de nós.

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Sempre a se perguntar por que a falta de assimetria lhe causava repulsa. A imagem da menina com braços diminutos, dedos onde deveriam estar os cotovelos, por anos nas suas retinas, impermeável às suas vergonhas cristãs.

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Tudo lhe era alheio enquanto fitava aqueles olhos, irmãos, mas tão diferentes. Um era altivo, certeiro. O outro, baixo, retraído. Tentava concentrar-se nas palavras, mas o que ouvia eram os olhos.

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Com o tempo, acostumou-se. Não a ponto do não-notar. Passou o fascínio-repulsa das cobras, ficou a vigilância farol.

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Perguntaram-lhe como era. Não soube informar. Tudo o que sabia dela era aquilo: o divórcio dos olhos. Um olho sempre nela; o outro, no nada.

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A arrefecência dos dias. Aceitou-os. Os dois: o certo e o errado.

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Não teria sido menor o seu espanto, no dia em que finalmente percebeu. O horror. Estivera a tomar como bom o olho errado. O olho certo era o outro. O seu, morto.

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Quantas outras vezes na vida não o seria também.

4 comentários:

Amarilis disse...

Arrepiante esse post. E toma se adaptar às revelações que transformam a realidade.

Paga-se um preço, minha bela, ao se desfazer do fascínio-repulsa das cobras e aceitar o certo e o errado. Mais fácil seria passar batido, mas quem disse que a gente consegue?

Beijão.

Renatinha disse...

Profundo...
E lindo!
beijo
Re

Anônimo disse...

Maninha...
que coisa linda...
eu amei esse post.
Tava inspiradíssima...
e eu quero te ver, que tou com saudades.
beijos, Mana

Bia Singer disse...

Adorei, Manelson! Beijao e saudade