domingo, 24 de maio de 2009

Sobre sonhos e saudades

Durmo. Durmo muito. Durmo até que não reste uma gota de consciência em mim. E no meu sonho te reencontro.

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No começo de 2007, meu pai perdeu aquele que durante boa parte da sua vida foi o seu melhor amigo. Oito anos de luta contra o câncer, tratamentos experimentais, tumores extirpados que reapareciam em outros lugares.

Foi um câncer muito bem vivido por ele. Pois, durante esse tempo, soube tirar o máximo proveito da consciência da sua finitude. Resolveu problemas, reaproximou-se das filhas, tornou-se uma pessoa simples, passou a conviver com os cachorros, deixou de lado uma grossa camada de verniz e polidez que ele havia sido obrigado a carregar durante toda a vida.

Assim, creio eu que ensinou muito para o meu pai, antes e depois do câncer. Eles eram primos e ouso acreditar que esse laço de sangue devolveu ao meu pai o significado da palavra “família”, em muitos momentos em que parecia difícil entender o que poderia ligar pessoas tão diferentes pelo simples fato de terem nascido com o mesmo sangue. Foi com ele que meu pai mais se identificou, a quem mais admirou, por quem mais se sentiu compreendido.

E então ele se foi. E lá estava o meu pai, nos seus minutos finais, amoroso, ouvindo-o falar sobre tudo e nada, suportando o vê-lo ir, acompanhando-o até o fim. Participou dos trabalhos fúnebres, trouxe consigo suas cinzas, guardou-as para devolvê-las à sua terra natal.

Durante meses meu pai falou sobre ele. Falou, falou, falou. Precisava falar. Precisava recordar, mantê-lo vivo nas memórias, não podia desligar-se dele, não podia deixar que ele fosse esquecido. Nós, ao seu lado, ouvíamos, segurávamos sua mão, afagávamos com o nosso olhar.

Por essa época tive um sonho. Eu, meu pai e minha mãe deitados lado a lado, ele no meio e eu e minha mãe em cada um dos seus lados, de mãos dadas. Estávamos em uma espécie de bosque onde as árvores caíam violentamente ao chão, como que golpeadas por um machado. Estávamos presos ao chão, com as costas grudadas no solo, e eu e minha mãe implorávamos para que o meu pai se levantasse, para que saíssemos de lá e nos protegêssemos das árvores. Mas ele dizia simplesmente “não há tempo, não há jeito, temos que ficar aqui”. E então uma árvore caiu sobre o meu pai, perfurando o seu peito com seus galhos.

Contei o sonho aos meus pais. Minha mãe, psicanalista, logo percebeu a simbologia de estarmos todos deitados, como cadáveres. Meu pai, lendo meu sonho por seus olhos, achou que eu temia a sua morte. Eu sabia que todas essas leituras eram corretas, mas no meu íntimo sabia também que havia algo para além das nossas mortes, para além da morte do meu pai.

***
Hoje revisito tristezas e saudades de coisas que não voltam mais. Tristezas e saudades que, quando meu pai perdeu seu melhor amigo, ainda eram muito vivas para mim. Tristezas e saudades que, mesmo menores, não foram embora e talvez nunca se vão.

Então penso no meu sonho no bosque e nas mãos dadas que nos uniam, na resignação do meu pai diante da árvore que cairia sobre o seu peito. E vejo o quanto aquele sonho me falava sobre o que ele viveu e vive, sobre o que eu vivi e vivo, sobre algo que diz respeito a todos nós: há dores que são só nossas e, por mais que nos cerquemos de pessoas que nos amam e nos querem bem, essas dores são só nossas e só nós mesmos podemos carregá-las.

3 comentários:

Amarilis disse...

Oi Amiga, muito comovente seu post. Me fez pensar que, às vezes, é preciso a gente soltar as mãos e caminhar. Sei que a gente não controla os sonhos, mas penso que eles às vezes nos escancaram aquilo que nos impede de seguir. A tristeza e a saudade precisam ser soltas no chão, deixadas pra tras, passar. Se tiver um tempo, passe no meu blog. Abri. Procure o post da cobra "Sonhos tão inocentes". O sonho que não era meu, me abriu uma porta. Acho que esse seu sonho vai abrir uma porta pra você também. Beijos com saudades. Dora.

Isabella Kantek disse...

Matador. Estou aqui com os olhos inundados. Coisa mais bonita você dividir conosco tanta sabedoria, tanta vida. Abraço apertado,
Riobalda.

neli araujo disse...

Cris querida,

Esta frase é muito sábia e verdadeira:

"essas dores são só nossas e só nós mesmos podemos carregá-las."

Mas, é muito melhor carregá-las de mãos dadeas com nossos queridos!

beijos, linda!

Me emcionou!

tia bó