domingo, 6 de dezembro de 2009

Cuidar do lixo

Já faz alguns anos que separo dejetos não orgânicos para reciclagem. Em meu prédio há uma caçamba só para eles, no térreo, recolhida pela Prefeitura uma vez por semana. Não é preciso separar o lixo entre vidro, metal e papel: basta colocar tudo o que é reciclável em uma sacola e despejar no contêiner. A separação é feita na cooperativa. Meu único trabalho, nesse caso, é limpar e secar os dejetos antes de colocá-los na sacola, e depois levá-los até a caçamba dos recicláveis.

Pois essa pequena tarefa, por vezes, me é muito penosa. Confesso que frequentemente a faço só pela metade: separo caixas de leite sem lavar, potes de iogurte ainda molhados, um vidro com restos de molho de tomate... Convenço-me de que ainda é melhor separá-los assim do que simplesmente jogar tudo no lixo comum, mas às vezes tenho medo de que a minha falta de disposição para fazer o serviço completo torne os restos de embalagem inutilizáveis para a reciclagem.
E foi pensando nesse pequeno dilema doméstico, e no quanto por vezes adio o momento de jogar algo fora justamente para não me haver com esse dilema, que me vi mais uma vez refletindo sobre os relacionamentos e nossa nada simples condição de humanos. Como é difícil cuidar do lixo! Como é difícil encontrar disposição para lidar com algo que já não nos concerne, mesmo quando esse mesmo algo já nos proporcionou momentos de prazer e de saciedade da fome.
Cuidar do lixo é um esforço que só se sustenta se conseguimos contextualizar esse nosso pequeno gesto na luta por um bem maior. O lixo que sai da sua casa, e que você tem preguiça ou nojo de manusear, nunca volta imediatamente para a sua mesa ou geladeira, mas quando cuidado adequadamente se torna lá na frente um novo objeto que atenderá as necessidades de outro consumidor.
Aos chatos de plantão, peço que não sejam muito severos ao julgar a minha analogia: não penso nos relacionamentos como uma forma de consumo, nem defendo que as pessoas tratam seus ex-companheiros como lixo. Pelo contrário: penso que a sustentabilidade é um valor que deve ser cultivado tanto com os bens de consumo quanto com as pessoas. Requer algum esforço cuidar de algo que já não é nosso e que pode, inclusive, ter se tornado incômodo em nossas vidas, mas com algumas medidas simples podemos ajudá-lo a reingressar no ciclo da vida, voltando mais adiante a pertencer a outro contexto, com outro alguém.
No caso das pessoas, esse cuidado significa reconhecer a importância que tiveram para nós, e aceitar e assumir que o término de um relacionamento raramente se dá por uma ou outra característica do outro que nos incomoda, pois somos mais do que a simples soma de nossas partes e quem nos ama o faz para além de pequenos defeitos ou traços incômodos. Cuidar é ter coragem de dizer ou de aceitar que simplesmente estar junto com o outro deixou de fazer sentido. É poder preservar o nosso olhar afetivo em relação a esse outro, desejar-lhe bem, assumi-lo como parte da nossa história, deixá-lo ir sem alimentar ambiguidades ou tomá-lo como um substituto fácil quando nossas outras histórias não dão certo.
Não por acaso, ao assistir ao filme Annie Hall na Mostra de Cinema Woody Allen, me emocionei profundamente com as cenas finais, em que o protagonista Alvy (o próprio Woody Allen) reencontra por acaso sua ex-namorada Annie (Diane Keaton), convida-a para um café e eles passam uma tarde agradável lembrando os velhos tempos. A voz em off de Alvy comenta, enquanto eles se despedem à distância na calçada: “No final daquela tarde me lembrei de como Annie era uma pessoa boa e me senti feliz simplesmente por tê-la conhecido e por ela ter feito parte da minha vida”.
Quando estamos em nossa pior forma ou alguém nos trata com o maior desprezo possível, costumamos dizer: “me senti um lixo!”, ou “ele/ela me tratou como lixo...”. Por aí se adivinha que nossa relação com aquilo que não nos serve mais é da ordem do mais profundo descaso.
Cuidar do lixo não é fácil, mas com algum esforço podemos superar nossas resistências e dar um destino mais digno às coisas que um dia nos proporcionaram prazer. Lá na frente, esse mesmo cuidado tomado por outras pessoas também nos proporcionará novas e boas experiências.

3 comentários:

Isadora Canto disse...

É muito bom te ler!
“No final daquela tarde me lembrei de como Annie era uma pessoa boa e me senti feliz simplesmente por tê-la conhecido e por ela ter feito parte da minha vida”.
Sua tarde chegou?

Isabella Kantek disse...

É bem isso, amiga. E o texto é uma jóia.

O Antonio adora me provocar dizendo que o meu dia favorito é domingo, quando tenho que separar os reciclaveis. Aqui nos states se produz muito lixo.

Bjos.

marluce disse...

Gostei muito de visitar o seu blog.Vc é divertida,fala c.espontaneidade,e o melhor q contribui com o maio ambiente.18.04.2011-Marluce.