Não é uma biografia sobre Sartre ou Beauvoir, a autora esclarece. Trata-se de um livro sobre a história de amor entre eles.
Se conheceram aos vinte e poucos anos, na época em que prestavam um exame de admissão ao cargo de professor de filosofia do Ensino Médio. Beauvoir flertava abertamente com Maheu, um amigo de Sartre que era bem casado e feliz. Foi Maheu quem deu a Beauvoir o apelido de “Castor” (porque “Beauvoir” se parece com “beaver”, a palavra inglesa que nomeia o roedor), apelido que Sartre e boa parte dos amigos usaram para se referir a ela durante toda a sua vida.
Sartre se interessou pela jovem Beauvoir, bela e extremamente inteligente, de fala rápida. Pediu a Maheu que marcasse um encontro entre os dois em um café. No dia marcado, Sartre sabia muito bem por que Beauvoir mandara a irmã em seu lugar para desculpar-se e dizer que ela não viria. Baixinho, zarolho e com a pele ruim, Sartre não causava uma boa primeira impressão nas mulheres. A consciência de Sartre sobre sua feiúra talvez tenha sido o primeiro passo em direção às suas concepções sobre o Existencialismo e a liberdade.
Superados os obstáculos iniciais, Sartre e Beauvoir logo viveram um encontro de almas e perceberam que se amariam durante toda a vida. Sartre, no entanto, tinha clareza de que jamais se casaria ou teria filhos. Dizia a Beauvoir que lhe daria o seu amor eterno e profundo, mas jamais poderia abrir mão de sua liberdade. Ele próprio estimulava que Beauvoir fizesse o mesmo.
Ao longo de suas vidas, Sartre e Beauvoir devotaram um amor um ao outro que consideravam “essencial”, enquanto experimentavam com outros parceiros amores “contingentes”. Para Sartre esse sempre foi o arranjo que melhor representava a ordem natural das coisas. Jamais demonstrava ciúme por Beauvoir e nunca a repreendeu por qualquer outro relacionamento.
Para Beauvoir, viver a liberdade pregada por Sartre não era tão fácil. Além de se consumir pelo ciúme, poucas vezes ela achava que as mulheres escolhidas por Sartre estavam à altura dele. De fato Sartre, um homem brilhante, costumeiramente se envolvia com mulheres frágeis ou pouco talentosas, que logo se tornavam dependentes financeiramente dele. Ele as sustentou até sua morte e chegou a adotar uma delas, que atualmente é detentora dos direitos autorais sobre toda a sua obra (e infelizmente não tem sido muito generosa para com o resto da humanidade).
Em poucas ocasiões Sartre e Beauvoir viveram sob o mesmo teto. Cada um deles viveu relacionamentos longos com outros parceiros. Beauvoir chegou a viver com um de seus homens por sete anos. Mas a condição para a sobrevivência desses relacionamentos paralelos era que os parceiros aceitassem que tanto Sartre quanto Beauvoir não eram um homem e uma mulher isentos de compromisso, livres e prontos para se entregar integralmente a uma relação. Eles tinham um ao outro e não abriam mão disso. É verdade que Beauvoir, mais do que Sartre, estava disposta a deixar tudo e todos, a qualquer momento, para estar com Sartre, e em algumas ocasiões isso lhe trouxe conseqüências amargas.
Foram parceiros sexuais durante os primeiros 15 anos dos 51 em que mantiveram o seu laço amoroso. Foram parceiros intelectuais durante os 51 anos de vida em comum. Fizeram da escrita o seu ofício. Era piada entre os amigos de Sartre e Beauvoir que “o Castor trabalhava como uma formiga”. Sartre também tinha uma urgência por escrever que jamais conseguia vencer. Durante toda a sua vida, escreveram durante seis a oito horas por dia. Sartre escreveu peças, romances, artigos e ensaios filosóficos. Beauvoir escrevia artigos, ensaios, romances e um volume significativo de obras autobiográficas.
Sartre e Beauvoir eram dotados de um enorme magnetismo. Eram admirados, lidos e venerados por pessoas ao redor de todo o mundo. Muitas das alunas de Beauvoir se tornaram suas amigas, depois amantes e, boa parte delas depois disso, amantes de Sartre também. Foi assim que Beauvoir acabou exonerada do seu cargo de professora; após a denúncia da mãe de uma de suas alunas. Todas essas pessoas com quem eles se envolviam e que, mesmo depois de findos os casos, continuavam em torno deles, dependendo financeira e emocionalmente dos dois, acabaram constituindo o que eles chamavam de “a família”.
Beauvoir, uma mulher inteligentíssima, articulada, esclarecida, cedo percebeu que a liberdade experimentada por Sartre jamais seria a mesma que ela vivia, por sua condição feminina. Abrir mão de se casar e ter filhos e viver esse relacionamento não oficial com Sartre causou grande desgosto à mãe de Beauvoir e fez com que ela não fosse considerada respeitável em muitos círculos sociais. Estimulada por Sartre a escrever sobre si mesma, sua vida, experiências e idéias, Beauvoir concebeu “O Segundo sexo”, até hoje uma de suas obras mais importantes e um grande ícone do feminismo.
Torturada por angústias permanentes que atribuía ao medo da morte, Beauvoir era dada a momentos de choro incontroláveis, que assustavam quem estivesse por perto por sua aparente fragilidade. Acostumou-se a fazer longas caminhadas para as quais dificilmente encontrava companhia. Sartre, em uma de suas cartas, chamou-a de “devoradora de quilômetros”. Essa era a maneira de Beauvoir de lidar com a sua sombra.
Alguns dos que se envolveram amorosamente ou sexualmente com Sartre e Beauvoir – particularmente as mulheres – consideravam sua forma de se relacionar doentia e destrutiva. Por vezes, Beauvoir e Sartre admitiram a si mesmos terem ido longe demais e causado danos permanentes a jovens a quem a liberdade à qual eles se dedicavam estava além do horizonte de possibilidades. Suas vidas não são impecáveis exemplos de moral e conduta; pelo contrário, refletem mais um exercício não acabado – mas profundamente vivido – de busca por essa tal liberdade, aquela que parece sempre um metro adiante de onde estamos, ou em nome da qual por vezes parecemos abrir mão daquilo que nos parece mais caro.
Tête-à-tête não é uma biografia sobre Beauvoir ou Sartre. É sem dúvida uma história de amor. Um amor humano, tortuoso, ora egoísta, ora equivocado, mas sempre vivo. Alguém já disse que é a maior história de amor do século XX. A autora deixa ao leitor o veredicto sobre a verdade ou não dessa afirmação.
De minha parte, dentre tantas coisas que me deslumbraram nesse livro, talvez a mais cara tenha sido a velha conhecida lembrança de que existem tantas formas de amar quantas são as pessoas que amam.
Se conheceram aos vinte e poucos anos, na época em que prestavam um exame de admissão ao cargo de professor de filosofia do Ensino Médio. Beauvoir flertava abertamente com Maheu, um amigo de Sartre que era bem casado e feliz. Foi Maheu quem deu a Beauvoir o apelido de “Castor” (porque “Beauvoir” se parece com “beaver”, a palavra inglesa que nomeia o roedor), apelido que Sartre e boa parte dos amigos usaram para se referir a ela durante toda a sua vida.
Sartre se interessou pela jovem Beauvoir, bela e extremamente inteligente, de fala rápida. Pediu a Maheu que marcasse um encontro entre os dois em um café. No dia marcado, Sartre sabia muito bem por que Beauvoir mandara a irmã em seu lugar para desculpar-se e dizer que ela não viria. Baixinho, zarolho e com a pele ruim, Sartre não causava uma boa primeira impressão nas mulheres. A consciência de Sartre sobre sua feiúra talvez tenha sido o primeiro passo em direção às suas concepções sobre o Existencialismo e a liberdade.
Superados os obstáculos iniciais, Sartre e Beauvoir logo viveram um encontro de almas e perceberam que se amariam durante toda a vida. Sartre, no entanto, tinha clareza de que jamais se casaria ou teria filhos. Dizia a Beauvoir que lhe daria o seu amor eterno e profundo, mas jamais poderia abrir mão de sua liberdade. Ele próprio estimulava que Beauvoir fizesse o mesmo.
Ao longo de suas vidas, Sartre e Beauvoir devotaram um amor um ao outro que consideravam “essencial”, enquanto experimentavam com outros parceiros amores “contingentes”. Para Sartre esse sempre foi o arranjo que melhor representava a ordem natural das coisas. Jamais demonstrava ciúme por Beauvoir e nunca a repreendeu por qualquer outro relacionamento.
Para Beauvoir, viver a liberdade pregada por Sartre não era tão fácil. Além de se consumir pelo ciúme, poucas vezes ela achava que as mulheres escolhidas por Sartre estavam à altura dele. De fato Sartre, um homem brilhante, costumeiramente se envolvia com mulheres frágeis ou pouco talentosas, que logo se tornavam dependentes financeiramente dele. Ele as sustentou até sua morte e chegou a adotar uma delas, que atualmente é detentora dos direitos autorais sobre toda a sua obra (e infelizmente não tem sido muito generosa para com o resto da humanidade).
Em poucas ocasiões Sartre e Beauvoir viveram sob o mesmo teto. Cada um deles viveu relacionamentos longos com outros parceiros. Beauvoir chegou a viver com um de seus homens por sete anos. Mas a condição para a sobrevivência desses relacionamentos paralelos era que os parceiros aceitassem que tanto Sartre quanto Beauvoir não eram um homem e uma mulher isentos de compromisso, livres e prontos para se entregar integralmente a uma relação. Eles tinham um ao outro e não abriam mão disso. É verdade que Beauvoir, mais do que Sartre, estava disposta a deixar tudo e todos, a qualquer momento, para estar com Sartre, e em algumas ocasiões isso lhe trouxe conseqüências amargas.
Foram parceiros sexuais durante os primeiros 15 anos dos 51 em que mantiveram o seu laço amoroso. Foram parceiros intelectuais durante os 51 anos de vida em comum. Fizeram da escrita o seu ofício. Era piada entre os amigos de Sartre e Beauvoir que “o Castor trabalhava como uma formiga”. Sartre também tinha uma urgência por escrever que jamais conseguia vencer. Durante toda a sua vida, escreveram durante seis a oito horas por dia. Sartre escreveu peças, romances, artigos e ensaios filosóficos. Beauvoir escrevia artigos, ensaios, romances e um volume significativo de obras autobiográficas.
Sartre e Beauvoir eram dotados de um enorme magnetismo. Eram admirados, lidos e venerados por pessoas ao redor de todo o mundo. Muitas das alunas de Beauvoir se tornaram suas amigas, depois amantes e, boa parte delas depois disso, amantes de Sartre também. Foi assim que Beauvoir acabou exonerada do seu cargo de professora; após a denúncia da mãe de uma de suas alunas. Todas essas pessoas com quem eles se envolviam e que, mesmo depois de findos os casos, continuavam em torno deles, dependendo financeira e emocionalmente dos dois, acabaram constituindo o que eles chamavam de “a família”.
Beauvoir, uma mulher inteligentíssima, articulada, esclarecida, cedo percebeu que a liberdade experimentada por Sartre jamais seria a mesma que ela vivia, por sua condição feminina. Abrir mão de se casar e ter filhos e viver esse relacionamento não oficial com Sartre causou grande desgosto à mãe de Beauvoir e fez com que ela não fosse considerada respeitável em muitos círculos sociais. Estimulada por Sartre a escrever sobre si mesma, sua vida, experiências e idéias, Beauvoir concebeu “O Segundo sexo”, até hoje uma de suas obras mais importantes e um grande ícone do feminismo.
Torturada por angústias permanentes que atribuía ao medo da morte, Beauvoir era dada a momentos de choro incontroláveis, que assustavam quem estivesse por perto por sua aparente fragilidade. Acostumou-se a fazer longas caminhadas para as quais dificilmente encontrava companhia. Sartre, em uma de suas cartas, chamou-a de “devoradora de quilômetros”. Essa era a maneira de Beauvoir de lidar com a sua sombra.
Alguns dos que se envolveram amorosamente ou sexualmente com Sartre e Beauvoir – particularmente as mulheres – consideravam sua forma de se relacionar doentia e destrutiva. Por vezes, Beauvoir e Sartre admitiram a si mesmos terem ido longe demais e causado danos permanentes a jovens a quem a liberdade à qual eles se dedicavam estava além do horizonte de possibilidades. Suas vidas não são impecáveis exemplos de moral e conduta; pelo contrário, refletem mais um exercício não acabado – mas profundamente vivido – de busca por essa tal liberdade, aquela que parece sempre um metro adiante de onde estamos, ou em nome da qual por vezes parecemos abrir mão daquilo que nos parece mais caro.
Tête-à-tête não é uma biografia sobre Beauvoir ou Sartre. É sem dúvida uma história de amor. Um amor humano, tortuoso, ora egoísta, ora equivocado, mas sempre vivo. Alguém já disse que é a maior história de amor do século XX. A autora deixa ao leitor o veredicto sobre a verdade ou não dessa afirmação.
De minha parte, dentre tantas coisas que me deslumbraram nesse livro, talvez a mais cara tenha sido a velha conhecida lembrança de que existem tantas formas de amar quantas são as pessoas que amam.
11 comentários:
ela era uma mulher encantadora mesmo. vi umas imagens dos dois em um documentário. a relação dos dois não foi fácil... mas qual é? beijo.
"existem tantas formas de amar quantas são as pessoas que amam"
APRENDI E ME LIBERTEI.
Adorei também esta sua última frase, MS!
E existem sim várias formas de se amar. Basta encontrar a sua...
Eu tô procurando ainda! hehe.
Beijos
vivi
Apareça lá no meu blog qdo puder:
http://pelocaminho.blog.terra.com.br/
Adorei esse pequeno review sobre a obra e também uma certa visão desse amor tão próprio dos dois que ninguém mais conseguia entender completamente e talvez um dos mistérios que permeiam suas vidas...
Parabéns e sem falar que a frase final é uma somatória de tudo que impressiona pela simplicidade
Parabéns!
CARACA, mulher!
Amei a leitura, pouco conhecia sobre os dois...
O final ficou matador, de um jeito que só você sabe fazer!
Mais uma rica indicação de leitura.
Beijos, querida.
"De minha parte, dentre tantas coisas que me deslumbraram nesse livro, talvez a mais cara tenha sido a velha conhecida lembrança de que existem tantas formas de amar quantas são as pessoas que amam."
!!!
e não vou ler esse post, pq tenho esse livro me esperando pra lê-lo!
depois, conversaremos sobre isso!
beijos.
E que todas as formas de amar sejam bem vindas sempre....
bjs
Re
Tiago,
eu não sabia absolutamente nada sobre a Beauvoir antes de ler esse livro, mas também me encantei.
E concordo com você sobre as complicações inerentes ao ato de se relacionar... :)
Cristal,
essa é pra passar a vida inteira aprendendo, não?
Oi Vivi!
Fui visitar o seu blog e tentei deixar um recado, mas me senti a mais tapada das criaturas porque não consegui vencer a barreira da confirmação eletrônica! Mas enfim, fique sabendo que estive lá!
Edu,
que bom que você gostou! Realmente se trata de uma relação de amor muito peculiar, mas na minha humilde opinião, não há dúvida de que é uma história de amor memorável!
Ai, amiga... você é suspeita demais pra falar... Mas anota sim a indicação, você vai gostar. Beijo estalado!
Drika,
é justo! ;)
Rê,
desde que façam mais bem do que mal... acho eu!
poucas vezes ela achava que as mulheres escolhidas por Sartre estavam à altura dele. De fato Sartre, um homem brilhante, costumeiramente se envolvia com mulheres frágeis ou pouco talentosas, que logo se tornavam dependentes financeiramente dele.
Desde que o mundo é mundo...
Gostei do relato, conhecia pouco da história deles.
Claudia, hehehehehehe! Não tinha pensado nisso... :)))
Eu também sabia pouco sobre eles, embora já gostasse muito do Sartre. E achei a leitura deliciosa! Recomendo!
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