quarta-feira, 9 de abril de 2008

Dia da marmota


Em um dia como outro qualquer, o seu celular toca e você treme à medida que aqueles dígitos vão se revelando horripilantemente familiares: “Estou ligando para lembrá-la da consulta com o Dr. Danilo na próxima sexta-feira”. Resignada, você anota o dia e a hora em um pedaço de papel. Parece que foi ontem! Foram os seis meses mais rápidos da sua vida.

Então começa a operação-desespero: tentar recuperar em quatro dias tudo-aquilo-que-você-está-cansada-de-saber-que-deveria-fazer-todos-os-dias-antes-de-dormir, mas na prática consegue fazer mais ou menos uma vez por mês e olhe lá. A estratégia consiste em empregar simultaneamente todas as técnicas de limpeza de dentes, gengivas e língua aprendidas ao longo de duas décadas de ida ao dentista: escovar uma vez sem pasta, com a escova seca e posicionada no sulco gengival, em um ângulo de 45º (“esquecer que está escovando”); repetir a operação com a escovinha bitufo; aplicar o fio dental “desenhando um ‘c’ para dentro da gengiva, polindo o dente”; escovar a língua; passar o limpador de língua; limpar as bochechas e gengiva com gaze; bochechar com água de ratânia (meu deus, alguém realmente faz isso TODAS AS NOITES?).

Na noite anterior à ida ao dentista, gastar o dobro do tempo para realizar o ritual e, se preciso, repetir algumas operações mais de uma vez. Dormir com a língua formigando de tanta escovação. Na manhã seguinte, leite puro, sem nescau, nada de pão (trauma desde o dia em que o dentista berrou: “o que é isso???? Tem pão no seu dente!!!”) e repetir todo o ritual feito antes de dormir. Não esquecer de levar um pacote de gaze no bolso para passá-la novamente pelas bochechas e gengivas UM MINUTO ANTES DE TOCAR A CAMPAINHA (é incrível a velocidade com que se forma a placa bacteriana).

É de praxe chegar pelo menos 10 minutos atrasada (nem precisa de Freud para explicar...) e, ainda no carro, receber a ligação da secretária confirmando a sua vinda, com o neurótico do seu dentista bufando a um metro da coitada. Na chegada, o dentista invariavelmente vai se queixar do seu atraso, perguntar se você “ainda está namorando aquele músico” e pedir que você escolha o DVD que quer assistir durante a raspagem. Não adianta explicar a ele que você não gosta de estímulos sensórios no período da manhã (nem de DVD, nem de instrumentos de tortura medievais): ele acabará escolhendo aquele DVD chatíssimo do Toquinho, que é a única coisa que passa pela cabeça das pessoas quando você diz que gosta de MPB.

Então chegará a hora da verdade e, após a aplicação do corante de placa, os resultados dos seus esforços serão ou não recompensados. É verdade que ao longo dos anos a técnica vai se aperfeiçoando e os gritos primais emitidos pelo dentista durante a sua pós-adolescência (“isso está parecendo a Guerra do Paraguai!”) poderão gradativamente ser substituídos por leves comentários de incentivo. Mas, inevitavelmente, a sentença final será sempre a mesma: “a escovação está boa, mas precisa melhorar o fio dental”. E na seqüência: “Alessandra, passa o fio dental para ela ver. Aproveita e pega uma gaze para a gente mostrar como remover a placa bacteriana da bochecha”. É inútil afirmar que você vem seguindo as mesmas orientações durante anos, até um minuto antes de entrar no consultório. Placa bacteriana funciona mais ou menos como pane no computador: na presença do técnico, o problema desaparece e você passa por otário. Só que com a placa é ao contrário: basta a presença de um dentista em um raio de cem quilômetros para ela brotar em questão de segundos, independentemente dos seus esforços para debelá-la.

Você vai ganhar uma escova Oral B e o dentista vai pedir para você segurar o espelho em forma de dente e vai te mostrar mais uma vez como proceder à escovação: “escovar uma vez sem pasta, com a escova seca e posicionada no sulco gengival, em um ângulo de 45º (‘esquecer que está escovando’); não é o dente que você escova, mas a gengiva! Repetir a operação com a escovinha bitufo – você tem escova bitufo?; aplicar o fio dental ‘desenhando um ‘c’ para dentro da gengiva, polindo o dente’; escovar a língua; passar o limpador de língua; limpar as bochechas e gengiva com gaze; já te falei para experimentar o bochecho com água de ratânia?”

Com sorte ele vai te liberar do retorno de uma semana e te deixar marcar a próxima consulta só para dali a seis meses (mas você ainda precisa ficar esperta para ter certeza de que ele não vai mandar a secretária marcar para dali a cinco). Que chegarão como se apenas um dia houvesse se passado desde a sua última visita. A assistente, mais delicada e menos repetitiva, vai finalizar o polimento e entregar que o dentista tem os mesmos problemas bucais que você, enquanto ele vai aguardar no escritório ao lado ouvindo um bom CD de jazz e procurando no Livro de Bruxaria para Dentistas uma foto bem horrenda de gengivas retraídas para te assustar.

Finalizada a tortura, você passará ao escritório e ouvirá a mesma ladainha dos últimos dez anos: “como você é minha cliente desde criança, vou te fazer um preço especial. O valor do tratamento é cinqüenta e sete milhões, duzentos e vinte e quatro mil setecentos e oito reais, mas vou te cobrar só duzentos”.

E com um suspiro adolescente, de quem nunca superou aquela paixão platônica que os seus olhos azuis não deixam esquecer, ele fatalmente vai completar: “e não esqueça de contar para a sua mãe”.

8 comentários:

neli araujo disse...

Cris querida,
Achei ótima tua mensagem, super didática! nem precisa falar de que dentista estamos falando, não é mesmo?
Parecia que eu estava lá...e olha que nem sou paciente dele, rsrsrs

"a lição já sabemos de cor, só nos resta aprender..."

Carolina de Castro disse...

Sinceramente,
eu vou no dentista amanha..
E estou rindo demais.
Dentistas são todos iguais, só muda a cor da escova de dente!!
=P
Adorei o blog!!
Bjos

MH disse...

hehehe

acho que preciso mudar de dentista. A minha nunca mandou escovar a gengiva, nem limpar a bochecha com gaze, e hoje foi a primeira vez que ouvi falar de água de ratânia. Aliás, nominho horrível...

mas talvez ela nunca me fale dessas coisas porque, como todo mundo, minha escovação é ótima, mas se eu passar fio dental 3 vezes por mês é muito. Ela sabe que não tem chance de eu seguir o resto das instruções...

Dedinhos Nervosos disse...

Eu já tive dentistas de todos os tipos. O que mais gostava era o Dr. Fulano de Tal que tinha lindos e grandes olhos azuis. Pena que mudou do ES. Eu sempre ficava com os olhos abertos enquanto era atendida. E eu só tinha uns 12 anos. hahaha

Renatinha disse...

hahahah odeio dentistas...
Tive um, que colocou meu aparelho, que cantava sempre: "Se esta rua, esta rua foose minha...." e apertava aquele arame assassino....
Meu dentista agora coloca uma cadeira de massagem para vc relaxar, mas quem consegue relaxar naquela cadeira sabendo que tem um dentista louco em cima de vc? quem? quem?
até daqui a 6 meses ou 1 semana? será a próxima tortura?
rsrsrs
beijos
Re

Anônimo disse...

Hahaha, sensacional!!! Adivinha se eu não liguei hoje lá prá marcar meu dia de tortura??? A diferença é que agora eu vou no "Júnior", muito mais bonito, agradável e acessível se é que vc me entende ;o) (aliás esse é só um dos vários médicos que vou visitar na próxima semana prá cumprir os deveres do ano.....) - Beijocas, Ma.

Polly Barros disse...

huahuahuahauhua
Em qual região do país vc mora mesmo?!? Será q o seu dentista pega um avião e vem bater aqui no Nordeste?!? huahuahua
Brincadeira... O meu é menos pé-no-saco, não tem esse negócio de escova bitufo e água de ratânia não... huahuahua

Eu amei a forma como vc escreveu, ri bulhões!!!!
:)

Mulher Solteira disse...

Tia,

deu pra visualizar? Hahahahaha... aquele sim é um verdadeiro personagem... Toda pinta de cientista maluco!

Carolina,
não me diga que você jogou no google "manual da escovação de dentes" e veio parar aqui! Hahahaha!! Também correndo atrás do prejuízo?
Juro que pensei que não existisse outro dentista como o meu... mas que figuras, hein?

MH,
talvez você escove as gengivas instintivamente... a gaze é um jeito de remover a placa bacteriana e a água de ratânia é pra ajudar a previnir a gengivite. Cada um com seu fardo: eu não tenho cáries há dez anos, mas minhas gengivas são ultra sensíveis!

Dedinhos,
se ao menos o meu dentista tivesse olhos que valessem a pena... não há absolutamente nada que me faça desejar voltar àquele consultório!

Rê,
exato: você acha que eu vou conseguir curtir o Ray Connif enquanto o dentista introduz aquele terrível instrumento de tortura na minha boca e raspa o meu dente??? Sem noção... mas eu confesso que gostei da idéia da cadeira de relaxamento. E os ortodontistas também são um capítulo a parte!

Má,
sem dúvida o Júnior é bem mais agradável... mas não posso dar as costas ao pai depois de anos de descontos e privilégios. Mas acho que o Júnior será o meu herdeiro natural quando o pepe pai se aposentar!

Polly,
sou de Sumpaulo! E o meu dentista era bem capaz de ir até o Nordeste sim... ele viaja mais do que o Lula!
Façamos justiça de que ele só pega no meu pé pelo bem dos meus dentes...