quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Pontes

Há coisa de um ou dois anos, uma amiga passou a me emprestar livros. Graças a ela conheci Somerset Maugham, desvendei a história de amor de Sartre e Beauvoir, descobri como ser legal com Nick Hornby, me esbaldei com mais um best-seller de Marian Keyes, entre outros.

Na sétima série a emprestadora de livros foi a minha melhor amiga, mas hoje nos vemos de forma bastante esporádica – a cada dois ou três meses, se muito. Já chegamos a ficar mais de quatro anos sem nos falar. Mas, desde que retomamos o contato, a cada vez que marcamos um novo encontro, ela invariavelmente anuncia: estou com um livro para te emprestar.

Sinto uma coceira boa quando ela me diz isso. Além do prazer certo da leitura, há algo de lisonjeiro em saber que alguém pensou em você ao ler um livro. Não?

Enquanto me entrego à viagem da leitura propriamente dita, um pensamento me acompanha ao longo das páginas e capítulos: qual terá sido o momento exato em que ela pensou “tenho certeza de que a Cris vai adorar ler isso!”? No fundo, como os meus pré-requisitos de leitura são mínimos e o meu gosto é muito eclético, pode ser que ela não tenha pensado em absolutamente nada, a não ser na grande probabilidade de uma apreciadora de livros se interessar por um livro que ela considerou bom. Mas prefiro namorar a outra hipótese. A de que há algo de muito particular, de muito especial em cada livro que faz com que ela pense em mim, e só em mim, e que isso torne o momento de empréstimo do livro algo também único e especial.

Mais inspiradora do que a minha fantasia sobre a decisão dela de partilhar a leitura comigo, no entanto, são as minhas elucubrações a respeito das páginas que ela deixa marcadas em cada livro. Quando li o primeiro, Servidão humana, de Somerset Maugham, demorei algumas páginas para perceber que as pontinhas não estavam dobradas ao acaso. Ao comentar sobre isso com minha amiga, tive de confessar também que desavisadamente eu desmarcara quase todas... Mas me comprometi a recuperá-las, uma a uma.

E foi assim, buscando restos de vincos em pontas de páginas de um livro, que descobri esse novo prazer. O prazer de, ao deparar com uma página marcada, garimpar o trecho – parágrafo, frase, palavra exata – que a houvesse inspirado. É um prazer um tanto vouyerístico. Chega a ser quase pornográfico penetrar assim na intimidade de alguém – embora, se ela não desmarcou as pontinhas antes de me emprestar o livro, tecnicamente eu não esteja fazendo nada de errado. Posso até pensar que seja um jogo que ela me propõe: deixa pistas para que eu descubra o que a toca, move, inspira, choca, seduz, liberta. E, eventualmente, sinta o mesmo.

Em meio às páginas dobradas de Nick Hornby, gasto alguns minutos relendo várias vezes um mesmo parágrafo. É um desses momentos soco-no-estômago, que revelam com crueza uma faceta nada glamourosa da vida, mas nem por isso menos merecedora de uma homenagem literária.

“Subitamente, sinto-me sem esperanças, como sempre nos sentimos quando escolhemos uma entre duas alternativas. Tenho vontade de voltar àquele outro momento, dez segundos atrás, em que eu não sabia o que fazer. Pois o negócio é o seguinte: para uma pessoa metida numa encrenca como a minha, o casamento vira uma faca cravada na barriga, e a pessoa sabe que a encrenca será grande seja qual for a decisão. Ninguém pergunta a uma pessoa com uma faca cravada na barriga o que a deixaria feliz; sua felicidade não está mais em questão. É sua sobrevivência que interessa: a pessoa arranca a faca e sangra até morrer, ou deixa-a cravada na esperança de dar sorte e a faca estar na verdade estancando o sangramento?”

Fecho o livro por alguns minutos, meditando com reverência sobre essas palavras. Algo me diz que acabo de fazer uma descoberta importante. E de fato fiz.

Descobri que pouco importa, na verdade, se localizei ou não o trecho certo. Importa a ponte que uma pontinha dobrada na página de um livro construiu entre ela e mim. Importa a ponte que eu construí para dentro de mim mesma. Sem pontes como essas, no fim das contas, só o que se faz é sobreviver estancando o sangramento com uma faca cravada na barriga.

7 comentários:

Nana disse...

Aqui, entre os meus amigos, a emprestadora de livros sou eu. E te digo: sempre que empresto um livro pra alguém (a não ser que a pessoa tenha vindo pessoalmente escolhê-los), é porque me lembrei dela em algum momento enquanto lia o dito. E, falando no Nick Hornby, você já leu "Uma longa queda"? É muito bom!
Beijo

Anônimo disse...

Nossa! que lindo o que vc escreveu! até chorei! hehehe.
Se vc ainda nao tiver lido "Cem anos de solidão" (que aliás é demais!) eu te empresto. O livro está com as pontinhas dobradas mas tb tive o trabalho de grifar os parágrafos preferidos. Ai vc não terá o trabalho de tentar adivinhar qual deles me tocou mais..hehehe:)
Aliás eu tenho mais 2 livros para vc!Espero que vc ainda nao tenha visto no cinema "O leitor" e "Apenas um sonho" ambos com a Kate Winslet. Li os dois e gostei muito, gostei mais do primeiro mas vale a pena ler os dois!

um grande beijo e espero nos encontrarmos em breve!

carmen disse...

Lindo texto, que nos fala sobre as pontes que o autor construiu para nós vislumbrarmos a sua alma, a sua história... e que está sendo construida entre vocês... a ponte da amizade!!!

bjs

Anônimo disse...

Nossa!! Adorei o que vc escreveu para a nossa amiga... também fiquei com os olhos cheios de lágrimas... afinal a "dobradora de pontinhas de páginas" é muito querida, e a "desvendadora de dobras de pontinhas de páginas" também. Me orgulho muito desta amizade e de seus textos tão lindos. beijos da fla

Amarilis disse...

Tudo o que eu queria era uma ponte, pra chegar perto das pessoas queridas, e dar um abraço de verdade. Espero que você tenha acordado ótima hoje, depois da virada da década! ;-) Beijos.

Eduardo Trindade disse...

Que coisa linda, ó prezada bailarina do precipício... Existe "brincadeira" mais emocionante que construir pontes assim? A ponte se constrói aos poucos dos dois lados do rio, e quando as duas metades se encontram são os corações que se tocam. Deixaste-me sem mais palavras... Muitíssimo obrigado!

Marianna Cataldi disse...

Cris, já eu tenho um sistema diferente de fazer um diário de memórias dos livros que leio. Não marco nem escrevo nem dobro nem faça nada disso porque acho um absurdo! hahaha
Eu comprei um caderno só pra isso. E tem várias anotações minhas com trechos dos livros e todas as minhas anotações sobre os livros vão para o blog. É que eu leio muito rápido e se deixar passar, eu vou guardando as coisas só pra mim e eu acho que quando a gente divide experiências com outras pessoas, seja de que forma for, faz com que a gente aprenda muito sobre nós e sobre o outro, divida cargas e conhecimentos e ainda crie cumplicidade. Quando eu empresto livros, eu digo sempre "meus comentários estão no blog!". E aí, se a pessoa estiver propícia a entender o meu ponto de vista, vai lá e olha.
Queria dizer também que adorei a sua visita e o seu comentário. Mia Couto é especialíssimo e já entrou pro rol dos escritores do meu coração, juntamente com Somerset Maugham e, especialmente, Bernhard Schlink.
Acho que você deveria ler "O outro", também de Schlink. É muito especial.
Vou ler o restante do seu blog agora. Um beijo.