terça-feira, 14 de abril de 2009

Odisseia

“Seu pai é um turista em minha vida”, diz a Mãe Sereia, com aquele humor resignado que o tempo lhe fez conhecer.

Eu acrescentaria que meu pai é um guia turístico em nossas vidas. É um homem de pequenas, mas consistentes obsessões temporárias – inofensivas, diga-se de passagem –: olimpíadas, eleições presidenciais, minissérie sobre Maysa, novela das oito. Não contente em devotar noites e noites à tela da tevê, a cada breve parada no “mundo de cá” ele faz questão de nos guiar por entre as sendas da sua viagem particular. Pode ser de manhã cedo, após passar algum tempo meditando sobre os caminhos das índias: “Acho que o Bahuan fez muito mal em não convidar o menino para a inauguração do restaurante”; ou após a caminhada na esteira em companhia do seu Ipod – “a Maysa cantava com absoluta afinação, é incrível”; ou, ainda, durante um almoço, às vezes de forma até autoritária: “acho impressionante como vocês se mostram alienadas em relação à tragédia da Faixa de Gaza”. Não adianta dizer a ele que, enquanto se encontra alhures, a vida também acontece aqui, entre nós. Quem estiver por perto é intimado a embarcar nessas viagens – qualquer gesto em contrário provoca um profundo sentimento de ofensa no guia.

“Sua mãe é capaz de acreditar ferreamente na mais idiossincrática das teorias que ela mesma criou”, diz meu pai, com aquela certeza inflamada que o tempo nunca lhe tira.

Em geral, fico sabendo da última “parada do sucesso” do meu pai pela Mãe Sereia, sua fiel companheira de viagem há 39 anos. Enquanto meu pai sacia a sua fome de ficção e alteridade na frente da TV, minha mãe faz a sua tapeçaria. É lazer para os fins de semana no sítio – não pode trazer para São Paulo, porque senão perde a vontade de trabalhar, só quer tecer. Faz questão de exibir o desenho que começa a se definir no retângulo de pano – “não está maravilhoso?”. Subverte todas as cores da estampa original – “imagine se eu vou usar esse rosa pálido horroroso no meu tapete...”. No meio de um ponto, opa! Uma neta canina se aboleta no seu colo, sem cerimônia. Enquanto isso ela acena para a outra com uma bolinha de lã, rindo enquanto um focinho xereta se intromete em sua sacola de costura. Não adianta contar à Mãe Sereia uma história com começo, meio e fim, esperando que ela siga o seu fio narrativo: é uma editora nata e produz uma nova versão dos fatos em simultaneidade ao relato. Além disso, tem teorias para absolutamente tudo – de plantas a unha encravada (nisso concordo com meu pai).

Meu pai e minha mãe. Ulisses e Penélope. Tenho um pouco de cada um deles. Enquanto Ulisses viaja o mundo pela tela da TV, buscando o caminho de volta a si mesmo, Penélope, serena, tece os fios dos nossos afetos.

3 comentários:

MH disse...

que visão linda, Cris, adorei!

beijo

Regina Caruso disse...

Preciso dizer que estou chorando? Não né?
Histórias e visões de família sempre me emocionam, pois em cada uma tem a linda lição, de que mesmo dentro destas pequenas "loucuras" cotidianas, nos entretemos, crescemos e nos tornamos filhos que um dia serão observados por seus filhos...
beijo
Re

Isabella Kantek disse...

Amiga, como é que eu consegui ficar tanto tempo sem tem ler???
Amei. Bisous,