segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Eu choro em casamento

Tive a sorte (e a esperteza) de estudar em um colégio que nunca subestimou a minha inteligência. No segundo ano do Ensino Médio, pude viver uma miniatura de experiência acadêmica e desenvolver uma pesquisa orientada que resultaria em uma pequena monografia. Foi assim que, aos 16 anos, conheci a Filosofia e Nietzsche (quem me imaginou com cara de CDF, aparelho fixo, calça de moletom “sansntropeito”, camisetão, zero senso estético e óculos de fundo de garrafa se enganou: eu nunca usei óculos).

Minha primeira ideia de desenvolvimento da pesquisa surgiu durante um episódio de Candid Camera, um programa norte-americano de “pegadinhas”. Uma câmera captava a reação de pessoas que entravam em um elevador no qual um ator havia se posicionado de costas para a porta. Eu nunca havia reparado nisso, mas é de praxe, ao entrar no elevador, virar-se de frente para a porta. Às vezes, com o elevador cheio, pode-se ficar de costas; mas nunca se faz isso ao ser a primeira pessoa a entrar. E qual era a reação de quem entrava no elevador e se deparava com aquela situação pouco familiar? Bastante variada: uns fingiam que nada estava acontecendo; outros fixavam o olhar no cidadão virado para os fundos do elevador durante toda a viagem; por fim, alguns se posicionavam como ele, também de costas para a porta. Foi o ponto de partida para que eu pensasse: por que agimos como agimos? O que é nosso de fato e o que é herdado? O quanto pensamos sobre nossas crenças e atitudes?

Assim nasceu a “Caminhada para o espírito livre”, um ensaio no qual, junto com Nietzsche, passei a tentar responder a essas perguntas, enquanto respondia a outras bem mais pessoais e importantes: quem sou eu? Eu sou assim porque quero ou porque nunca tentei ser de outra forma? Eu realmente acredito no que penso que acredito? Sou capaz de contrariar os valores da minha família? Até onde posso ir na minha rejeição às convenções sociais?

Apelidei aquela minha fase de “O diário de Biloca”: nada me convencia de que aquilo que eu estava escrevendo era mais do que o diário de uma adolescente em crise com a sua identidade. Nada a não ser o encorajamento do meu orientador, que a cada semana enchia minhas páginas hesitantes de comentários eufóricos sobre as minhas “cenas de filosofia explícita!” E, justiça seja feita, descobrir “quem eu era” naquele momento era um problema filosófico e tanto!

Graças à generosidade do meu orientador, o ensaio tomou corpo e forma e foi defendido diante de uma banca igualmente entusiasmada. Para uma adolescente com (desculpem o pleonasmo) problemas de autoestima, foi uma experiência e tanto. Mesmo depois de ter amargado três semestres na faculdade de Filosofia e feito uma necessária saída lateral pela direita, nunca mais deixei de pensar filosoficamente sobre a existência.

Graças ao desenvolvimento desse “desconfiômetro” de verdades inventadas e mesmo tendo vivido boas e bonitas histórias de amor, não foi muito difícil perceber que eu não deveria esperar sentada pelo Príncipe Encantado, que um dia viria me buscar em seu intrépido cavalo branco. Assim que comecei a ganhar o suficiente, fiz as malas e vim ver como era a vida para além de debaixo da asa dos meus pais. Casar na igreja, de branco, véu e grinalda? Difícil. Mais provável simplesmente juntar as escovas de dente com alguém, no máximo assinar um recibo no cartório.

Com mais alguns anos, mais análise, mais capacidade de observação e umas tantas porradas da vida, descobri também que o casamento, o modelo de relação que aprendi a desejar observando meus pais, não era necessariamente o único ou o melhor caminho para a realização pessoal. Descobri, aliás, que dividir a vida com alguém é tão ou mais difícil do que não dividi-la com ninguém. Que o amor acaba. Que, mesmo antes de o amor acabar, as pessoas frequentemente se machucam, muitas vezes de forma irreversível. Que ninguém é capaz de prever o dia de amanhã; que boas pessoas fazem coisas ruins. Que amar não é o suficiente para uma relação dar certo. Que quase nada é suficiente, aliás, para uma relação dar certo. Que é preciso rever o conceito de “dar certo”. Que a monogamia não é algo tão simples quanto parece. Que a obsessão por estar junto com alguém é, muitas vezes, apenas uma tentativa de evitar olhar para aquilo que nos faz sofrer.

Mais um tantinho de quebradas e sacadas e fui me dar conta até mesmo de que Oh! O Amor! é uma invenção social, fruto de uma conjuntura histórica específica, e que até mesmo em nossa sociedade contemporânea o seu valor é muito diferente a depender do grupo social, das aspirações, das lutas, dos desafios... (Foi chocante descobrir isso em uma entrevista da psicanalista Maria Rita Kehl, quando ela falava sobre a diferença entre as demandas romântico-amorosas tão frequentes em sua clínica particular e aquelas relatadas em seus atendimentos a alguns integrantes do MST.)

Sendo assim, queimemos nossos vestidos de noiva, certo? Alto lá. Tudo isso aí é verdade, uma verdade bem verdadeira, mas não é toda a verdade. Eu não estaria sendo honesta se não dissesse que, a despeito de tudo isso... Bem: eu choro em casamento.

Choro mesmo! De soluçar, de sacudir e de soltar meleca. Taí minha irmã que não me deixa mentir: lá estava ela respirando fundo para não borrar a maquiagem no dia do seu casamento e eu completamente desmilinguida, com o nariz escorrendo e o bocão aberto no altar. Taí a minha Amiga Fanta, outra testemunha ocular: também passou toda a cerimônia do seu casamento linda e radiante enquanto a madrinha despenteada se desfazia em baba e lágrimas. Taí minha prima Feca que não só é testemunha como tem uma prova concreta da minha confissão: uma foto com uma meleca bem comprida saindo do meu nariz durante o cumprimento dois noivos e padrinhos. (Amigas que ainda não casaram, já sabem: se não quiserem uma madrinha babando, uivando e soltando meleca ao seu lado no altar, não me deem essa honra.) Não há nada, nada que possa frear a minha emoção diante de duas pessoas que decidem assumir publicamente o seu amor, ritualizar a sua união e dividir a sua alegria com as pessoas que fazem parte da sua vida.

E, já que estamos aqui abrindo nossos corações, devo dizer também que não consigo passar em frente a uma loja de vestidos de noiva sem escolher o meu preferido. Não consigo deixar de usar os meus rudimentares conhecimentos de genética para imaginar como seriam os meus filhos com cada homem por quem eu me apaixono. Aliás, combinar mentalmente o meu nome com o sobrenome do gajo que me dá trela é tão automático quanto piscar os olhos. (A diferença entre uma louca neurótica e eu é que disfarço bem e não conto nada disso para os mocinhos que me interessam – portanto, se algum mocinho que me interessa estiver lendo esse post, solicito a gentileza de se retirar do recinto e/ou ignorar essas revelações, pela atenção obrigada.)

Minhas amigas-mães sabem que eu tenho um fraco por bebês. Não dá para estar perto de um sem ficar com cãibra nos lábios, falar em voz de tatibitate e afundar o nariz nas dobrinhas da criatura. Se forem os filhos das minhas amigas queridas, então, o risco de sequestro é iminente.

Então, é isso: apesar de toda a pós-modernidade, da pose de descolada, do desprendimento, da lucidez, do ceticismo, da malemolência, do suingue, do gingado, da malandragem, eu sou nada mais nada menos que mais um coração romântico em busca da outra metade da laranja, que esteja disposta a ter comigo um monte de laranjinhas. Seu Nietzsche: que ingenuidade a nossa achar que seríamos capazes de separar o que é “nosso” do que é “dos outros”! O outro está em nós, nós somos o outro e ele nos é.

A vantagem de se acreditar na filosofia da metade da laranja é que facilmente se deduz um argumento lógico sobre o fato de a outra metade da laranja também acreditar em metades da laranja. E, para expandir mais um pouco a metáfora hortifrutífera, felizmente sou capaz de desafiar a matemática moderna e acreditar que cada metade da laranja pode ter muitas metades! E de torcer para que, em algum lugar desse mundo, uma dessas metades cruze o meu caminho, me dê a mão e enfrente comigo a jornada de transformar esse Oh! Amor romântico herdado, idealizado, construído, fantasiado e supervalorizado em um amor real, possível e verdadeiro.

(Em sumo: se a vida lhe der uma laranja, faça dela uma laranjada!)

7 comentários:

Amarilis disse...

Oi queridíssima. Ri demais e também me emocionei de chorar com tudo isso que você escreveu. Muito lindo... Adorei!

Sarah disse...

ah
eu tb sou assim, ja ligo sobrenome ao meu, signo, hahauhau automatico d mulher ne?
beijos

Isabela Raposeiras disse...

Cris, você já pensou em ser roteirista? Vejo você escrevendo aqueles seriados bem descolados...
Beijos, Isabela (irmã da Dora)

Ana disse...

Pois é, no final somos todas romanticas (umas mais, outras menos, mas somos...)

Nine disse...

Ah, Mulher solteira! Me perdi, me encontrei, me joguei no seu texto, como sempre. :p Que venha o amor real para todas essas laranjas fracionadas!!! Beijos.

Dias de Setembro disse...

Passando pela Amarilis, cheguei, topei com Adélia Prado aí encima e já gostei de cara....Depois que li o texto, então, babei, sem chorar. Fosse minha amiga,fosse me casar já seria minha madrinha, afinal, casamento com uma amiga se debulhando em lágrimas é tão dramático e lindo que chego a visualizar a imagem. Perfeito!
Beijo, Tita

Renata Victal disse...

Lendo seu blog percebo que vc não precisa de uma metade de laranja pelo simples motivo de vc ser inteira. Você não é uma mulher de metades. Vc tem sonhos completos, ricos, cheios de desejos. Você sabe o que quer e como fazer para conseguir tudo. O que vc deseja, de fato, é uma pessoa que some, que multiplique. E isso é viável. Só quem é pela metade precisa de um complemento. Acho mesmo que este não é o seu caso. Boa sorte no caminho, no encontro, na soma.