quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A cor do meu sorriso


Percebo que não estou tão bem quando decido sair à rua de pijama. O medo de topar com o fantasma do bairro na minha pior forma física não supera a preguiça de mudar de roupa. Essa, afinal, é a grande vantagem da moda casual: a mesma calça serve para dormir, fazer ioga e comprar lâmpadas.

Estaciono o carro bem próximo à Heitor Penteado. Eu poderia ter feito isso muitas vezes antes, usando a Ponte Orca e o trem para chegar mais rápido ao trabalho. Agora, são águas passadas. Nosso novo destino é a Lapa de Baixo, a Barra Funda ou a Água Branca, a depender do gosto do freguês. Enquanto isso, o limbo: uma semana de férias forçadas que começa a agoniar quem se acostumou a fazer do trabalho o seu porto seguro.

As direções não são tão exatas. Decido começar pela esquerda. O posto de gasolina é uma das referências. Caminho alguns metros para baixo, mas nem sinal da loja de lustres naquele trecho. Decido voltar e perguntar no posto.

O fim de tarde é frio, úmido e escuro. A sensação é de ter me perdido em algum lugar do tempo e do espaço, habitando uma vida que já não é minha. No posto, mandam-me seguir em frente. Bem, é o que venho tentando fazer, penso eu.

Mais alguns passos adiante, temo que a indicação esteja errada. Decido confirmar com o jornaleiro. Sim, Lustres Primavera, algumas casas adiante. Meu ânimo começa a melhorar. Por fim, encontro o que buscava. Compro todas as lâmpadas de que preciso, volto confiante para o carro e ainda tenho alguns minutos antes que a loja de molduras se feche.

Mas não será tão fácil encontrá-la agora. Sei que passei muitas vezes em frente a ela, mas nunca a vi de verdade. Talvez até haja mais de uma, não sei. Essas ruas não são minhas, afinal. Já são seis horas e é inútil prosseguir a busca por hoje. Tento celebrar a pequena tarefa cumprida.

Percebo que não estou tão mal quando trocar a lâmpada queimada melhora definitivamente o meu humor. Que seja assim. Hoje, uma lâmpada queimada; amanhã, quem sabe?

Mas é preciso esclarecer: não se trata de uma lâmpada qualquer. É a lâmpada de um lustre azul. Um lustre azul que permaneceu apagado durante muitos e muitos meses. E como pode o mundo não se tornar melhor quando nele volta a brilhar um sorriso azul?

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Dilemas, aspirinas e urubus

Na Era dos psicotrópicos, qualquer estado de alma que se afaste minimamente do (falso) paradigma de felicidade apregoado pela mídia passa a ser encarado como um mal a ser combatido. O sofrimento humano vira “transtorno”, “desordem”, fruto de desequilíbrio químico, localizado na anatomia humana e dotado de mil especificidades objetivamente descritas no DSM, dando a (falsa) impressão de que, uma vez identificado e nomeado, pode ser vencido. Diagnóstico, prescrição, tratamento e cura: fim do sofrimento. Mas a vida não é assim...
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Viver é perigoso. Dor e delícia andam juntos. Só quem sabe o que pode perder é capaz de dar valor ao que ganha. Não há vida sem morte, som sem silêncio, luz sem escuridão. Ser humano é isso: eterna corda bamba, travessia entre paradoxos, frágil equilíbrio que se perde e se recupera todos os dias.
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Há dias, porém, em que se alguém me oferecesse uma aspirina para a alma, eu aceitaria sem hesitar.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Travessias

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão.” (ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 21.)
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Trago sempre Riobaldo no meu coração. Assim, fica mais fácil aceitar quando as pessoas desafinam.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Viver sem ela

Penso eu que todo exibido tem um pouco de enxerido. Pelo menos, a máxima vale para mim: a Mulher Solteira que aqui vos fala também tem curiosidade de saber quem se encontra aí, do outro lado da tela, lendo suas abobrinhas filosóficas.



De tempos em tempos, usando meus parcos conhecimentos digitais, recorro às fartas ferramentas da pós-modernidade para descobrir pegadas no meu altar. E, em uma dessas espiadelas, encontrei entre os visitantes o nome de um blog que lembrava um filme lindo e atordoante que eu acabara de ver: Viver sem mim (o filme se chamava Minha vida sem mim).


A referência era à música do Ultraje a rigor e praticamente um hino à redescoberta de si. Entrei naquele espaço sem pedir licença. O canto era fresquinho, mas já dava para sentir no ar o cheiro da inteligência, da agudeza de espírito, da sensibilidade daquela mulher. E a dona do pedaço ainda dizia não poder mais viver sem o Mulher Solteira. Que lisonja!


Mandei e-mail; recebi resposta! Trepliquei e veio de volta mais papo do bom. Assim, de mensagem em mensagem, chegamos ao msn, aos torpedos e, apesar dos mil quilômetros que nos separam, ao café e até a um jantar. Continuo leitora assídua da moça e, a cada novo post, penso, sem um pingo de modéstia: puxa, isso poderia ter sido escrito por mim... Nós nos sentimos assim, meio “cara de uma, focinho da outra”, mesmo vivendo vidas tão diferentes. Falamos a mesma língua. Somos da mesma tribo.


Taí uma mulher corajosa, serena, esperta, generosa, flexível, “mãe de menino, passarinho que fugiu da gaiola”, pandora sem medo da própria caixa, em permanente movimento de perguntação e responsidade. É dela essa pérola da filosofia do cotidiano: “quando se trata de amor, mais vale um erro inteiro do que um acerto pela metade”. Quem quiser mais pode se servir à vontade.


Parabéns, Bela! Simplesmente continue, pois você já é.


Beijos da sua amiga e fã.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pés de anjo


Daquele dia pouco ou nada me restou na lembrança, a não ser suas palavras exatas e certa inflexão de voz, acompanhada de uma expressão que me era tão familiar. Um leve erguer de sobrancelhas, um sorriso maroto e silencioso, um olhar cúmplice e provocador.



Por uma ou outra razão, Vovó quis falar sobre meus pés. E, mistério profundo, referiu-se a eles como “pés de anjo”.


Reagi imediatamente, com espanto e desconforto, rejeitando o que temia pressentir em sua voz como uma condescendência excessiva, vergonhosa, eu já tão apercebida de mim mesma:

- “Pés de anjo”, Vó? Um pezão desse tamanho?

Das palavras exatas me lembro, acompanhadas da tal inflexão de voz e da expressão tão familiar:


- E quem foi que te disse que anjo tem pé pequeno?



O resto se perdeu no tempo. O que realmente importava, no entanto, permaneceu comigo.