sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Olho mágico

Ele não é jovem nem velho. Nem alto nem baixo. Não sei se é gay ou apenas solitário, mas nunca o vi em companhia de ninguém a não ser Pepo.

Pepo é o seu “pudão”: branco, desengonçado, velhinho e cego. Ele se chama Ulisses. Ulisses salvou Pepo de uma morte prematura, pois ninguém queria aquele filhote de poodle grande e mal-ajambrado. Na época a mãe de Ulisses estava doente e o médico recomendou um cão para lhe fazer companhia.

Mas isso já foi há muito tempo. Agora são apenas Ulisses e Pepo. Tenho notícias de uma irmã mais velha com quem ele vive uma relação de amor e ódio. E só. Mais ninguém.

Ele é aposentado e passa quase o dia todo dentro de casa, exceto pelos dois passeios diários religiosos para Pepo satisfazer as suas necessidades, um de manhã e outro à noite. Faça chuva, sol, vento ou calor inclemente, lá estão Ulisses e Pepo pelas ruas do bairro.

Não me lembro exatamente quando o conheci, mas sei que foi pouco depois de termos comprado a Mimi. Ele me ensinou a conversar com os cachorros e explicar com todo o carinho por que eles precisam ficar sozinhos quando a gente sai de casa. Um pouco depois o namoro acabou e a Mimi veio morar comigo, então começamos a nos encontrar nos passeios dos cachorros. Na seqüência comprei a Lola e o nosso timinho ficou completo.

Numa das primeiras vezes em que nos encontramos, eu chegando em casa e ele subindo pelo elevador, conversamos por mais de 40 minutos sentados no chão do hall. O apartamento dele ficava de frente para o meu. Não tínhamos tanto em comum, mas eu me compadecia da solidão que pressentia no seu rosto e me deixava ouvir os seus comentários levemente conspiratórios sobre os vizinhos, a síndica, os funcionários do prédio. Eu também estava solitária, afinal. Uma pequena solidão a dois.

Quando comentei que mudaria de apartamento ele não gostou. Eu sentia no seu subtexto sutis argumentos para não mudar. Ele me pedia para “ficar de olho”, para ver se os proprietários dos apartamentos que eu estava visitando não estavam inadimplentes, pegava o boleto do condomínio na mão para consultar a lista dos credores. Aos poucos foi se acostumando com a idéia.

Eu também sabia que sentiria falta dele e, principalmente, os cachorros sentiriam muita falta uns dos outros. A Mimi, a Lola e o Pepo se tornaram grandes amigos. Diria até que as duas se tornaram a razão de viver do nosso amigo pudão. Ulisses dizia, constrangido, que Pepo passava o dia com o focinho grudado na porta de casa, chorando por causa delas. Era só Ulisses sair ou chegar de um passeio com o Pepo que as cachorras vinham me avisar. Não sossegavam enquanto eu não abria a porta para a festinha canina no hall social.

A Lola, particularmente, a “embaixatriz das relações públicas”, conquistou rapidamente o Ulisses e o Pepo, a ponto de ter passe livre para entrar na casa deles e, descaradamente, comer toda a ração do coitadinho. A ponto, aliás, de Ulisses destrancar a porta que havia acabado de fechar para que a Lola pudesse “pegar uma bolota”. Tratamento vip.

Tempos atrás, Pepo ficou doente. Ulisses perdeu o chão. Não dormia, passava a noite checando a respiração do seu companheiro. Pepo não comia, já não conseguia ficar em pé direito nas patas traseiras. Temi pelo futuro de Ulisses sem Pepo. Mas milagrosamente o nosso amigo pudão se recuperou e continua se sustentando, embora vacilante, nas suas patas desengonçadas.

Ontem me despedi de Ulisses e vim para a casa nova, cheia de vizinhos ao redor e de cachorros muito menos simpáticos do que o nosso querido Pepo. Os latidos das cachorras me deixaram acordada a noite toda e quase me levaram à loucura. Desconfio que elas sentem falta de Pepo e de Ulisses. Eu também sinto falta deles.

Desconfio, porém, que quem mais sente saudade, de coisas e pessoas que ele talvez nem tenha chegado a conhecer, é Ulisses. No apartamento ao lado do seu, nunca morou ninguém. Não se sabe por que, o dono não vende, não aluga e não ocupa o apartamento. No que ficava ao lado do meu, a família de irmãos do Nordeste se mudou há poucas semanas. Com a minha saída, só restaram Ulisses e Pepo no décimo primeiro andar do bloco B.

Ulisses e Pepo e a sua solidão de um andar inteiro.

8 comentários:

30 anos 200 palavras por minuto disse...

Que bonito Cri! Como uma coisa tão simples pode dar um texto tão delicado e tocante, né?

Não deixe de fazer umas visitinhas...

Beijos e boa sorte com a nova vizinhança!

urbenauta disse...

´Belo texto...
Mas a solidão é amiga do peito de muita gente...

Renatinha disse...

Como é bom vizinhos que gostam de nossos cães.... vcs vão sentir saudades uns dos outros. Já tive uma vizinha que tocava a minha campainha para chamar meu Fuka para ir para a casa dela. Quando eu ia trabalhar ela me dizia: -Deixa ele comigo! Ele fica muito sozinho! Comprava ração, bolinha, dava água gelada, era a avó perfeita e vizinha mais que querida.... pena que as coisas mudam. Bj Re
PS. conheci seu blog pelo blog do Gatón... e adorei....

Anônimo disse...

Amiga Fanta: que bom que você gostou! É a vida nos ofertando matéria-prima o tempo todo... :)

Urbe: e não é? Tô aprendendo isso...;)

Rê: que vizinha abençoada, não? O Ulisses também ficou com a minha Lola quando precisei levar a Mimi para fazer um exame chato. Estamos sentindo muito a falta deles...

Obrigada pela visita e volte sempre! Amigo do Gastón é meu amigo também...

Nana disse...

Lindo texto, Mulher! Mas triste, né?

MH disse...

Tadinhos dos dois, a solidão de um andar inteiro é pesada...

mc disse...

Ai que triste, compartilha o endereço pra gente ir tomar um café com o Ulisses. MH, leva a Flor!

Mulher Solteira disse...

Nana,

é triste sim... mas toda beleza é um pouco triste, não? :)

MH: nem me fale, mulher... sorte que eu topo com eles na rua de vez em quando e vejo que estão bem.

MC: vamos fazer um mutirão??? :)))