sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Rondó da Mulher Solteira

“O amor acaba”, do Paulo Mendes Campos, me fez lembrar de uma outra crônica sua que conheci quando tinha 20 anos. Na minha opinião, é uma das coisas mais bonitas que um homem já escreveu sobre a mulher. O momento não poderia ser mais oportuno para dividir essa preciosidade com vocês:
Rondó de Mulher Só

Estou só, quer dizer, tenho ódio ao amor que terei pelo desconhecido que está a caminho, um homem cujo rosto e cuja voz desconheço.

Sempre estive duramente acorrentada a essa fatalidade, amor. Muito antes que o homem surja em nossa vida, sentimos fisicamente que somos servas de uma doação infinita de corpo e alma.
O homem é apenas o copo que recebe o nosso veneno, o nosso conteúdo de amor. Não é por isso que o homem me atemoriza, quando aqui estou outra vez, só, em meu quarto: o que me arrepia de temor é este amor invisível e brutal como um príncipe.

Quando se fala em mulher livre, estremeço. Livre como o bêbado que repete o mesmo caminho de sua fulgurante agonia.
A uma mulher não se pergunta: que farás agora da tua liberdade? A nossa interrogação é uma só e muito mais perturbadora: que farei agora do meu amor? Que farei deste amor informe como a nuvem e pesado como a pedra? Que farei deste amor que me esvazia e vai remoendo a cor e o sentido das coisas como um ácido? É terrível o horror de amar sem amor como as feras enjauladas.
É quando o homem desaparece de minha vida que sinto a selvageria do amor feminino. Somos todas selvagens: são inúteis as fantasias que vestimos para o grande baile. Selvagem era a romana que ficava em casa e tecia; selvagens eram as mulheres do harém, as mais depravadas e as mais pudicas; selvagem, furiosamente selvagem, foi a mulher na sombra da Idade Média, na sua mordaça de castidade; mesmo as santas - e Santa Teresa de Ávila foi a mais feminina de todas - fizeram da pureza e do amor divino um ato de ferocidade, como a pantera que salta inocente sobre a gazela. E selvagem sou eu sob a aparência sadia do biquíni, olhando a mecânica erótica de olhos abertos, instruída e elucidada. Pois não é na voluntariedade do sexo que está a selvageria da mulher, mas em nosso amor profundo e incontrolável como loucura. O sexo é simples: é a certeza de que existe um ponto de partida. Mas o amor é complicado: a incerteza sobre um ponto de chegada.
Aqui estou, só no meu quarto, sem amor, como um espelho que aguarda o retorno da imagem humana. O resto em torno é incompreensível. O homem sem rosto, sem voz, sem pensamento, está a caminho. Estou colocada nesse caminho como uma armadilha infalível. Só que a presa não é ele - o homem que se aproxima - mas sou eu mesma, o meu amor, a minha alma. Sou eu mesma, a mulher, a vítima das minhas armadilhas. Sou sempre eu mesma que me aprisiono quando me faço a mulher que espera um homem, o homem. Caímos sempre em nossas armadilhas. Até as prostitutas falham nos seus propósitos, incapazes de impedir que o comércio se deixe corromper pelo amor. Quantas mulheres traçaram seus esquemas com fria e bela isenção e acabaram penando de amor pelo velhote que esperavam depenar. Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm. O pior agora é que o vaso está a caminho e não sei se é taça de cristal, cântaro clássico, xícara singela, canecão de cerveja. Qualquer que seja a sua forma, depois de algum tempo serei derramada no chão. Os vasos têm muitas formas e andam todos eles à procura de uma bebida lendária.
Li num autor (um pouco menos idiota do que os outros, quando falam sobre nós) que o drama da mulher é ter de adaptar-se às teorias que os homens criam sobre ela. Certo. Quando a mulher neurótica por todos os poros acaba no divã do analista, aconteceu simplesmente o seguinte: ela se perdeu e não soube como ser diante do homem; a figura que deveria ter assumido se fez imprecisa.
Para esse escritor, desde que existem homens no mundo, há inúmeras teorias masculinas sobre a mulher ideal. Certo. A matrona foi inventada de acordo com as idéias de propriedade dos romanos. Como a mulher de César deve estar acima de qualquer suspeita, muito docilmente a mulher de César passou a comportar-se acima de qualquer suspeita. Os Dantes queriam Beatrizes castas e intocáveis, e as Beatrizes castas e intocáveis surgiram em horda. A Renascença descobriu a mulher culta, e as renascentistas moderninhas meteram a cara nos irrespiráveis alfarrábios. O romancista do século passado inventou a mulherzinha infantil, e a mulherzinha infantil veio logo pipilando.
Os tipos vão sendo criados indefinidamente. Médicos produzem enfermeiras eficientes e incisivas como instrumentos. Homens de negócios produzem secretárias capazes e discretas. As prostitutas correspondem ao padrão secreto de muitos homens. Assim somos. Indiquem-nos o modelo, que o seguiremos à risca. Querem uma esposa amantíssima - seremos a esposa amantíssima. Se a moda é mulher sexy, por que não serei a mulher sexy? Cada uma de nós pode satisfazer qualquer especificação do mercado masculino.
Seremos umas bobocas? Não. Os homens são uns bobocas. O homem é que insiste em ver em cada uma de nós - não a mulher, a mulher em estado puro ou selvagem, um ser humano do sexo feminino - o diabo, a vagabunda, a lasciva, o anjo, a companheira, a simpática, a inteligente, o busto, o sexo, a perna, a esportista... Por que exige de nós todos os papéis, menos o papel de mulher? Por que não descobre, depois de tanto tempo, que somos simplesmente seres humanos carregados de eletricidade feminina?
(O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 63-65).

5 comentários:

Anônimo disse...

perfeito! e ano após ano somamos papéis, características, personificações p sempre estar a altura daquilo q se espera.

adorei o texto.
beijo, boa semana!!

Anônimo disse...

Adorei..

É um tanto angustiante ter que se encaixar numa dessas teorias que os homens fazem de nós, mas vc me fez sentir um pouco melhor...heh

Anônimo disse...

Drika,
que bom que você gostou! Eu acho esse texto de uma sensibilidade absurda... boa semana pra você também!

Érica,
não agradeça a mim, agradeça ao Paulo Mendes Campos! :)

Anônimo disse...

Claro que o amor acaba. É vendido em frasquinhos muito pequenos e esgota-se rapidamente. E depois há idiotas como eu próprio que compram frascos de litro na ilusão de que durarão para sempre mas - e a vida está prenhe de mas- esgota-se tão rápido como os pequenos. Rótulos é o que tenho a dizer das opiniões formuladas por esses autores... Invertendo os papéis, posso dizer que o mundo feminino também está repleto de rótulos muito semelhantes acerca dos homens. Na verdade são apenas pontos de vista e esses são tantos quantas pessoas, homens e mulheres, existem por esse mundo fora. Texto muito bom.

Amarilis disse...

Mulher, realmente já havia lido este texto no seu blog. Mas apesar de ter gostado muito, tava meio esquecida dele. Vc tem razão, realmente tem uma coisa aí, já que "Somos irremediavelmente líquidas e tomamos as formas das vasilhas que nos contêm." É verdade. Quando li seu blog, foi praticamente numa tacada só. Acho que foi em janeiro, eu tava em férias. Gostei muito, mas muitas coisas acabaram se misturando na minha cabeça, por causa dessa forma de ler. Do Paulo Mendes Campos, li outras coisas na adolescência e me lembro que curti. Mas já faz tanto tempo... Tem sido uma grande experiência pra mim esse diálogo com outros blogs e com você. Muitas vezes me dá a impressão de que estou falando coisas que já foram ditas ou roubando assuntos, mas depois relaxo, por que deve ser assim mesmo quando a gente se conecta aos outros. Nada se cria, tudo se transforma. É sempre bom visitar seu blog e também receber sua vista e comentários. É um carinho. Beijo.