segunda-feira, 14 de abril de 2008

Homenagem a Manélson


Há controvérsias a respeito da data exata, mas especialistas avaliam que tenha sido por volta dos idos de 1990. Vez ou outra eu a avistava caminhando pelo bairro e pensava: “que menina colorida!”. Nunca havia conhecido alguém assim: cabelo laranja-cor-de-cenoura, olhos verdes, pele branquinha e bochechas coradas. Parecia que tinha saído de dentro de um desenho animado.

Vizinhas de rua, acabamos tropicando uma na outra aqui, ali e acolá (ela e minha irmã no balé, eu e a irmã dela na natação) e nos tornamos amigas. A pré-adolescência marcou o auge da primeira fase da nossa amizade, tempos de Sítio do Carroção, primeiro amor e frio na barriga.

Aos doze anos de idade eu queria ser estilista de moda. Gostava de desenhar e, quando alguém me contou que havia uma profissão em que a pessoa ganhava dinheiro para fazer isso, achei uma opção muito digna. Minha avó tinha uma amiga dona de confecção e, quando havia desfile de coleção nova na casa dela, lá ia eu de prancheta debaixo do braço, papel sulfite e lápis de cor registrar as últimas tendências e me inspirar para as minhas próprias criações.

Mas Manélson rapidamente me demoveu da idéia. Em uma das únicas discussões dos nossos mais de dezoito anos de amizade, ela argumentou que eu precisava escolher uma profissão mais útil, que pudesse ajudar a melhorar a sociedade. Pra me defender, ridicularizei o fato de ela querer ser psicóloga (como de fato se tornou alguns anos depois) dizendo que ela ia “cuidar de louco”. Nem preciso dizer que paguei a minha língua com oito longos anos de análise...

Meu pai ainda tentou salvar a lavoura, fazendo um contraponto à ruiva tão cheia de razão. “Aposto que quando vai comprar uma roupa no shopping a dona Joana não pensa que a profissão do estilista de moda é inútil. Todas as profissões têm o seu valor social!”. Mas não teve jeito... Ela sabe que é a maior culpada pela crise vocacional dos últimos quinze anos da minha vida! E apesar de ter aprendido a relativizar as suas certezas, de vez em quando ainda confessa que não se arrepende nem um pouco de ter plantado mais essa minhoca na minha cachola já tão fertilizada.

Há um buraco negro inexplicável nos nossos tempos de colegial. Mas quando entramos na faculdade, retomamos a amizade com força total e nunca mais desgrudamos. Manélson acompanhou cada etapa da minha vida e vice-versa, como expectadoras privilegiadas. Me apresentou a dois dos cinco namorados que tive – é uma pena que nenhuma das indicações tenha sido muito promissora, mas não podemos tirar o mérito da tentativa. E como a vida pode ser bem irônica, foi ela quem apresentou ao meu ex a sua atual namorada. Mas quando foi preciso me dar a má notícia, ela assumiu a incumbência com a sua característica integridade e passou o dia todo segurando a minha mão.

Manélson é minha terapeuta-adjunta. Quando tenho dúvidas em minha auto-análise (já que, tal como um fumante, venho tentando “parar” a terapia há anos), é para ela que ligo, despejo a minha bagunça emocional e aguardo o veredicto sempre amoroso e compreensivo. Nunca deixou de responder a nenhum dos meus e-mails lacrimosos das madrugadas em crise de namoro, de pós-namoro e de ausência de namoro. Manélson agüenta as minhas mesmas ladainhas existenciais há quase duas décadas com a mesma paciência e dedicação. Mais ou menos uma vez a cada cinco anos ela se permite entrar em crise e me dá a oportunidade de retribuir com um pouco de orelhão.

Fomos companheironas de balada durante uns bons anos. Como naquele tempo eu ainda era abstêmia, ficava com a incumbência de dirigir. Cabia a ela ser a Relações Públicas da dupla. Maria Joana, Dona Maria, Tipuana, Nias, Kintamani, Básico... Desses tempos temos histórias impagáveis e impublicáveis, que vão ficar para sempre no folclore da nossa amizade. Basta dizer que naquele tempo a pista de dança do Kintamani era escura, escura...

Quando achamos que não era suficiente morar na mesma rua, estudar na mesma faculdade, sair juntas no final de semana e jantar pelo menos uma vez durante a semana, inventamos de fazer aula de jazz. Foram poucos os privilegiados que tiveram a oportunidade única de nos assistir dançando a versão de Cake para “I’ll survive”, poderosas, de vermelho e com cara de más.

Manélson já me gravou fitas e fitas com músicas “para dançar e liberar a drag queen que existe em você”, “para dar beijo na boca ou ter vontade de fazê-lo”, “para pensar na vida e/ou curtir música”, “para sentir-se batuta e/ou ‘que bom que eu liguei!’” (uma expressão cunhada especialmente para designar a sua profunda modéstia). Também me gravou um “CD Prozac” em uma época em que eu estava bem tristinha. Vive me enchendo de blusinhas descoladas e brincões cheios de penduricalhos pra eu liberar a Gisele Bünchen que habita em mim.

Não existem duas como ela. Incapaz de comer um prato de comida sem espalhar uma trilha de grãos, gotas e farelos para todos os lados. Especialista em falar ao telefone enquanto faz um belo número dois (Manélson é a otimização do tempo em pessoa! Imaginem o quanto ela não teve que exercitar a paciência com a minha incomparável velocidade...). No quesito escatologias, faz questão de anunciar e comentar todos os seus episódios de flatulência. Manélson inventou a “raivinha”, aquela irritaçãozinha absolutamente irracional que a gente não sabe explicar muito bem por que sente, mas simplesmente não consegue evitar. Também não deixou passar o “homem-coxa” (aquele que usa camisa pra dentro da calça sens-tropeito) e o “cl-cl” (acompanhado de um sinal de “ok” sincronizado com a pronúncia de cada sílaba), pra designar as coisas carésimas, supérfluas, desprovidas de qualquer funcionalidade, mas consideradas bacanérrimas pela high-society.

Manélson sempre me chamou de “a não-behaviorista mais behaviorista que ela conhece”. Eu posso dizer que assisti de camarote à transformação dessa behaviorista radical em uma terapeuta brilhante, mas que acredita piamente em espírito, cartomante e astrologia. Taí uma pessoa que não tem o menor pudor em viver plenamente as suas contradições. E não está nem aí para quem achar algum problema nisso.

Foi Manélson quem diagnosticou o meu “Transtorno de Sinceridade Compulsiva”. Ela passou anos tentando me ensinar que uma boa mentirinha de vez em quando faz mais bem do que mal, mas acho que já desistiu de tentar me tornar uma pessoa menos “cerrrtinha”. O pior é que com o tempo ela foi pegando alguns dos meus piores cacoetes, tipo dizer pro namorado absolutamente tudo o que se passa naquela cabeça ruiva ou cismar com o menor sinal de anormalidade do pobre moço (“você tá estranho...”). Ainda bem que a gente tá sempre ali uma pra outra, pra sorte dos nossos pobres namorados, lembrando que há limites para a verborragia feminina!

Eu e Manélson somos fãs incontestes de Maryan Keyes e sempre compramos o livro novo dela nas férias de janeiro. Vamos lendo juntas e mandando torpedos uma para a outra para comentar as melhores partes. Também partilhamos o vício por seriados e a compulsão pelo Big Brother.

Às vezes tenho a impressão de que andamos meio afastadas e fico me perguntando se isso significa que mudamos e já não somos mais tão parecidas quanto antigamente (embora sempre tenha sido digno de nota o quanto as nossas semelhanças se disfarçassem sob um manto de absolutas diferenças!). Também me pergunto se essas mudanças seriam de fato na essência de cada uma ou apenas o resultado de momentos de vida desencontrados – ela namorandão, eu solteiraça, ela mais behaviorista do que nunca, eu flertando com a psicanálise, ela acordando com as cotovias, eu dormindo com as corujas.

Com mudança ou sem mudança, perto ou distante, uma coisa é certa: Manélson é e sempre será um dos maiores amores da minha vida.

Parabéns, Manélson!

11 comentários:

Polly Barros disse...

Ai, ai, quase que me lasco todinha chorando todas as pitangas... Lindo, perfeito o texto, o amor de amiga, fiquei com uma inveja, embora saudável, PHoda!
Fiquei bastante tocada, tô em crise com minhas amigas, tô sentindo a crise, tá difícil a comunicação... Enfim, deu vontade de ligar pra elas... E é lógico q vou mandar pra elas lerem, tá?!

Vc escreve lindamente!!

Beijoo =*

MH disse...

Adorei! É a cara dela... também, poucas pessoas a conhecem tão a fundo, né?
Essa ruiva é um furacão, como já disse. Vira tudo do avesso, no melhor sentido!
Parabéns pra ela, e sorte nossa que ela é como é e faz parte da nossa vida!

neli araujo disse...

Que delícia de post, Cris!
Amizades assim são raras... Cuidem bem desta! Parabéns pra vocês duas!
Tia Bó

neli araujo disse...

Que delícia de post, Cris!
Amizades assim são raras... Cuidem bem desta! Parabéns pra vocês duas!
Tia Bó

Malvinas disse...

Lindo, muito lindo. Você escreve bem demais. Uma delícia. E sua amiga colorida também (é uma delícia).

Anônimo disse...

Pronto, Manelson. Lá foi vc me deixar com olho cheiod de lágrima antes de atender.. que lindo presente esse post, maninha.. amei muito... muitos beijos, e vc tb é meu eterno amor. Tua Manelson

Ricardo disse...

Está tudo bem com você?

ANNA disse...

Inveja boa... Uma amizade assim é coisa para se guardar para o resto da vida. É raro atravessar fases onde cada uma vai pata um lado.
Ah! Adorei a Moranguinho!

Bjs

Mulher Solteira disse...

Polly,

ter bons amigos é uma das poucas coisas certas da vida... e já é muita coisa!!! Ligue sim, mande o link pra elas, chore suas pitangas... tudo é válido para despertar uma amizade em hibernação. Obrigada por continuar me lendo! Um beijão!

MH,
pois é, que figurinha foi aparecer na nossa vida, né? Ninguém pode conviver com esse furacão impunemente... o preço é ser transformado por ela em alguma medida, sempre para algo melhor! Beijão!

Tia,
obrigada! E nós estamos cuidando direitinho sim!!!

Malvinas,
oba, você continua me lendo! Agora uma pergunta: vocês são todas uma só? Quando uma assina, todas assinam???

Ô Manelson... ficou lacrimuda, foi? Bom, achei que aquele cartãozinho era muito pequeno para eu escrever tudo o que queria no seu aniversário de 30 anos... Te amo, viu?

Ricardo,
sabe, eu não ia falar nada... mas agora que você tocou no assunto... Sei lá... tô te achando meio estranho...

Anna,
é verdade! Mas estamos resistindo bravamente! E já lá se vão quase duas décadas!
E a Moranguinho certamente foi uma personagem inspirada em Manélson...

Anônimo disse...

lindo texto!
linda homenagem.
linda amizade!
bjs

Malvinas disse...

Não, cada uma é cada uma, já diriam os racionais se fossem homens.