sexta-feira, 21 de setembro de 2007

A liberdade é azul

Almoço com a vizinha (que além de vizinha também é amiga, colega de trabalho e namorada do amigo do ex):

Mulher: Fui ao Berlin na terça-feira. Bem legal.
Vizinha: É mesmo? Bacana...
Mulher: Pois é, eu conhecia o baixista, tocou com o ex.
Vizinha: Sei...
Mulher: Na saída dei um ‘oi’ e ele perguntou: E o R.? Respondi ‘ah, já não estamos juntos há um ano e meio...’ Ele falou ‘é mesmo? Pra mim ficou muito marcado vocês dois juntos’ e eu ‘é natural... foram quatro anos de namoro’.
Vizinha: Uhum.
Mulher (rindo): E depois ainda acrescentei: ‘mas ele tá com outra menina... é uma história meio triste...’. Coitado, o baixista ficou meio sem graça...
Vizinha: Bom, depois de um ano e meio é mais do que natural que ele esteja com outra menina, né? O que não era muito natural era ele estar com outra menina depois de um mês.
Mulher: Nem usando aliança de compromisso.
Vizinha: Nem morando junto.

Pausa. Almoço parado no meio do caminho entre a boca e o estômago. Coração acelerado. Procurar rosto blasé nº 12.

Mulher: ... É você quem está me contando que eles estão morando juntos, é isso?
Vizinha: .. Eu? Não! Ué... Você já sabia, né? Faz tempo!
Mulher: Não, não sabia.
Vizinha (com ar de pouco caso): Ih, já faz muito tempo...
Mulher: Sei... que coisa...
Vizinha: Bom... não que isso deva fazer alguma diferença na sua vida, né?
Mulher: Pois é... Mas que coisa...

Ouvi um barulho vindo aqui de dentro mim que a princípio não soube identificar. Seria alguma coisa se quebrando? Lembrei de Paulo Mendes Campos:

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

(O amor acaba: crônicas líricas e existenciais. 2a ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 21)

Entendi o barulho. Não era o meu coração se quebrando. Era um grilhão.

11 comentários:

Gastón disse...

Pois seja bem-vinda. E não é que, contrariando o mundo e a mim mesmo, meus grilhões também se romperam? Sou livre pela primeira vez em muito tempo. Acho que vc também, cara amiga. O mundo do crime nos aguarda.

Isabella Kantek disse...

Amiga, que coisa. =(
Estou fora do ar e quando volto leio um post desses. Às vezes só as reticências salvam.
Saudades. Se cuida!

Anônimo disse...

Olha... Às vezes, mm qd td se quebra dentro de nós, estes "marcos" aparecem como pontos finais definitivos p/ que possamos dar novos significados há mtas coisas...
Que novos e bons caminhos se abram... p/ todos nós! Me mantenho acreditando: se a gente planta coisas boas, colhe coisas boas! Esperaremos a nossa hora!
Bjos sumida e dê o ar da graça p/ risadas...

Anônimo disse...

antes tarde q nunca!
q tudo corra bem.

beijos, boa semana.

Anônimo disse...

Olha, eu tbm sou mais uma livre...Me livrei semana passada..Enfim, posso respirar em paz...E o fim veio, demorou uns quatro anos, mas veio...Nada como se livrar dos grilhões....

Anônimo disse...

QUe texto lindo.... triste.... verdadeiro.... bjs Re

fabiana disse...

Ay! Isso dói, néam? Meu ex namorou noivou e casou depois de 1 ano que terminamos, e me mandou convite... pois é!

E vem cá, essa vizinha é amiga meixmo? Achei ela bem 'quer que eu te enterre?'

Anônimo disse...

Que bom que era um grilhão, Cris! E não o seu coração quebrando... Gostei do poema, e a forma como você o pôs no meio dos seus pensamentos no post ficou ótima!

Cláudia disse...

que vizinha é essa gente?

Anônimo disse...

Gasta: é isso aí, comparsa! Vamos ver se o crime realmente não compensa... ;)

Isa,
há males que vêm pra bem, minha amiga! Tudo vai dar certo no final. Beijão pra você.

Aninha,
que bom que você pensa assim! Eu também acredito muito naquela frase: "o que é seu está guardado"... E espero que logo a gente consiga se ver novamente!

Drika,
correrá sim... :)

Érica: quatro anos??? Rapaz... tem coisas que demoram mesmo pra passar... até que eu tô bem! ;)

Rê: obrigada pela parte que me toca!

Fabiana: Ay! Dói mesmo! Se o ex me mandasse convite de casamento eu cometia um ex-ticídio!!!

A vizinha é amiga sim... ela só tem um senso prático um pouco mais desenvolvido do que a média das pessoas. Mas é companheirona!

Dê! Que bom você por aqui e comentando! Na verdade o texto que eu queria que você lesse mesmo era o de lá de cima, o Rondó de Mulher Só. Mas é meio chato ler texto comprido na tela do computador, né?...

Claudia: é como eu disse! A vizinha tem de sobra o senso prático que me falta... é bom ter umas amigas que dão umas sacodidas na gente de vez em quando!

Anônimo disse...

Mulher,
A vizinha entrou no blog, leu o post e achou que tudo estava como devia estar.
O senso prático continua aqui.
Um beijo enorme e valeu, mermão, pela compreensão.
Um beijo!