Ao fazer a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras, topo com uma foto de Gael García Bernal e um artigo sobre O Passado, livro de Alan Pauls que inspirou o filme do diretor Hector Babenco. É assim que leio jornal, para o desgosto de minha mãe: de segunda mão, randomicamente, às vezes com um ou dois meses de atraso, fazendo a limpeza do Wanderley Cardoso das cachorras.
Ainda sob o efeito do filme de Babenco, salvo a folha de jornal de um destino inglório, guardando-a para uma rápida leitura antes de sair do trabalho. Os outros livros resenhados não terão a mesma sorte.
O primeiro parágrafo da resenha, escrita por um homem de cujo nome não me recordo, mas que, salvo engano, é editor da revista Trip, começa dizendo que o homem que encontrar esse livro na cabeceira da cama de uma mulher deve sair correndo.
Coro. Afinal, que livro está lá, na cabeceira da minha cama, na linha sucessória para ser o meu amante nas próximas madrugadas insones? O próprio. Em minha defesa, eu poderia dizer que ele não se tornou propriamente o meu “livro de cabeceira”; a cabeceira é apenas um intervalo entre duas estantes.
O fato é que O Passado me intrigou. A meu ver, é um filme com tantos espaços abertos para inferências que tive vontade de ler o livro e tentar ligar mais alguns pontos. Sempre me interessei, também, pelas especificidades das diferentes linguagens artísticas e pela possibilidade de ouvir uma mesma história contada de jeitos diferentes. Daí a Mãe Sereia ofereceu o empréstimo do livro (não perdendo a oportunidade de resmungar sobre todos os outros que fiz reféns em minha casa) e aceitei a oferta.
O curioso é que, embora a protagonista feminina do filme/livro, Sofia, seja mesmo de arrepiar os cabelos, eu jamais tomaria isso como ponto de partida se fosse resenhar o livro ou o filme. E, para além do constrangimento de ter o tal livro na cabeceira da minha cama, como se o resenhista levantasse um dedo de dentro da folha de jornal e me apontasse – ahá! –, senti uma certa solidariedade feminina por Sofia.
É verdade que Sofia tem uma dessas peculiares obsessões amorosas por seu ex-marido que faz com que ela se materialize em todos os lugares, nos momentos menos esperados, de uma forma horripilante. Mas também é verdade que Rimini, o ex-marido/vítima, é um exemplo desses homens ambivalentes e incapazes de colocar limites claros ao desejo do outro (no caso, da outra). O tempo todo me perguntava o que, realmente, queria aquele homem. Não consegui encontrar uma resposta.
Depois que saí do cinema, parei para pensar em quantas frases o personagem de Rimini falou ao longo de todo o filme. Pouquíssimas. E, embora todos tenhamos direito ao silêncio, é um fato que, onde faltam palavras, sobra fantasia.
Um amigo me disse há pouco tempo: “quando alguém não quer estar comigo, isso para mim já é, em si, o fato e a justificativa. Mais de uma vez disse às minhas ex-namoradas, quando tentavam explicar o motivo pelo qual queriam terminar: poupe-se do trabalho e do sofrimento. É por isso que, ao terminar um relacionamento longo, também não senti necessidade de dizer à minha namorada os motivos exatos pelos quais eu queria terminar. Achei que seria cruel e desnecessário.”
Eu admirei o comentário do meu amigo e pensei: “quero ser assim quando crescer”. Mas logo depois constatei, ao vivo e em cores, o quanto as palavras podem ser libertadoras. Nem todos são assim e às vezes é preciso aceitar o limite do outro, que simplesmente não consegue pôr em palavras aquilo que sente, embora consiga demonstrar em ações – nem sempre tão inequívocas quanto as palavras, mas que também podemos aprender a ler, com o tempo e a maturidade.
Mas essa digressão está ficando um pouco mais longa do que eu pretendia. Quero falar sobre O Passado, Sofia, mulheres à beira de um ataque de nervos e o editor da Trip. Enquanto assistia ao filme (cujos detalhes vou dar aos futuros expectadores a oportunidade de conhecer pela tela do cinema), via aquela mulher cada vez mais decadente, descontrolada e desequilibrada e sentia um misto de horror e... empatia. Era como olhar para o meu próprio passado, embora ele nunca tenha existido com aquele grau de intensidade e obsessão, e entender que, talvez, a única coisa que me separe de Sofia sejam os meus oito anos de análise.
Me lembro imediatamente da reportagem lida há dois dias sobre mulheres do Japão que mataram as coleguinhas de escola de suas filhas por se sentirem desprezadas pelas mães das meninas, a cujo grupo de mães pertenciam. A despeito do crime hediondo, essas mães assassinas receberam milhares de cartas de outras mães com manifestações de solidariedade, mostrando o quanto essas mulheres se reconheceram na loucura tantas vezes por elas arquitetada, mas apenas consumada pelas outras.
Uma amiga dona de um coração bovino me confessa, ao comentar sobre a maneira velada e cínica como uma colega de trabalho a critica: “minha vontade era dar um tiro nela!”. Uma outra, falando sobre o longo e difícil processo de separação e a descoberta de que o ex iniciou um novo relacionamento, comenta: “agora entendo por que as pessoas matam por amor”.
Uma linha de sanidade separa as pessoas que devaneiam sobre ou verbalizam o terrível desejo primitivo de matar um rival ou amante e aquelas que efetivamente o fazem (só os autores de novela ainda não perceberam isso. Por isso, na tentativa tosca de criar suspense sobre um crime, começam a colocar na boca de milhares de personagens secundários frases como “minha vontade era matar aquela Thaís!”, como se isso indicasse a natureza criminosa de alguém). Uma linha ainda mais tênue separa as pessoas que, vivenciando um término de relação amorosa não desejado, conseguem se relacionar com a perda de uma forma saudável ou alimentam eternamente aquele amor não-correspondido, impedindo-se de viver novas histórias, novos encontros, presas a um relacionamento morto cujo corpo elas se recusam a enterrar.
O fato é que, procurando bem, todo mundo tem dentro de si um pouco de Sofia, de Rimini, de mãe assassina do Japão, de capitão Nascimento, de Fernandinho Beira-Mar. Esse é, aliás, o princípio da relação terapêutica, se bem entendi o que disse o Contardo Calligaris: a terapia tem alguma chance de sucesso se, pra começo de conversa, o terapeuta conseguir, ainda que em um grau mínimo, sentir empatia pelas queixas e dores vividas pelo paciente. Se, ao contrário, para o terapeuta o paciente não passar de um ser enfadonho, desprezível ou desinteressante, nada acontecerá. É melhor até encaminhar o caso.
Foi com essa inspiração que escreveu Terêncio: “sou humano, nada do que é humano me é estranho”. E o que me ocorre como um pensamento curioso, que deixo no fim dessa divagação quase como uma nota de pé de página, é quanto sofrimento decorre da incapacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro. Paradoxo da condição humana que, se conseguirmos reverter a nosso favor, pode ser a chave para relacionamentos interpessoais produtivos, saudáveis e satisfatórios.
Ainda sob o efeito do filme de Babenco, salvo a folha de jornal de um destino inglório, guardando-a para uma rápida leitura antes de sair do trabalho. Os outros livros resenhados não terão a mesma sorte.
O primeiro parágrafo da resenha, escrita por um homem de cujo nome não me recordo, mas que, salvo engano, é editor da revista Trip, começa dizendo que o homem que encontrar esse livro na cabeceira da cama de uma mulher deve sair correndo.
Coro. Afinal, que livro está lá, na cabeceira da minha cama, na linha sucessória para ser o meu amante nas próximas madrugadas insones? O próprio. Em minha defesa, eu poderia dizer que ele não se tornou propriamente o meu “livro de cabeceira”; a cabeceira é apenas um intervalo entre duas estantes.
O fato é que O Passado me intrigou. A meu ver, é um filme com tantos espaços abertos para inferências que tive vontade de ler o livro e tentar ligar mais alguns pontos. Sempre me interessei, também, pelas especificidades das diferentes linguagens artísticas e pela possibilidade de ouvir uma mesma história contada de jeitos diferentes. Daí a Mãe Sereia ofereceu o empréstimo do livro (não perdendo a oportunidade de resmungar sobre todos os outros que fiz reféns em minha casa) e aceitei a oferta.
O curioso é que, embora a protagonista feminina do filme/livro, Sofia, seja mesmo de arrepiar os cabelos, eu jamais tomaria isso como ponto de partida se fosse resenhar o livro ou o filme. E, para além do constrangimento de ter o tal livro na cabeceira da minha cama, como se o resenhista levantasse um dedo de dentro da folha de jornal e me apontasse – ahá! –, senti uma certa solidariedade feminina por Sofia.
É verdade que Sofia tem uma dessas peculiares obsessões amorosas por seu ex-marido que faz com que ela se materialize em todos os lugares, nos momentos menos esperados, de uma forma horripilante. Mas também é verdade que Rimini, o ex-marido/vítima, é um exemplo desses homens ambivalentes e incapazes de colocar limites claros ao desejo do outro (no caso, da outra). O tempo todo me perguntava o que, realmente, queria aquele homem. Não consegui encontrar uma resposta.
Depois que saí do cinema, parei para pensar em quantas frases o personagem de Rimini falou ao longo de todo o filme. Pouquíssimas. E, embora todos tenhamos direito ao silêncio, é um fato que, onde faltam palavras, sobra fantasia.
Um amigo me disse há pouco tempo: “quando alguém não quer estar comigo, isso para mim já é, em si, o fato e a justificativa. Mais de uma vez disse às minhas ex-namoradas, quando tentavam explicar o motivo pelo qual queriam terminar: poupe-se do trabalho e do sofrimento. É por isso que, ao terminar um relacionamento longo, também não senti necessidade de dizer à minha namorada os motivos exatos pelos quais eu queria terminar. Achei que seria cruel e desnecessário.”
Eu admirei o comentário do meu amigo e pensei: “quero ser assim quando crescer”. Mas logo depois constatei, ao vivo e em cores, o quanto as palavras podem ser libertadoras. Nem todos são assim e às vezes é preciso aceitar o limite do outro, que simplesmente não consegue pôr em palavras aquilo que sente, embora consiga demonstrar em ações – nem sempre tão inequívocas quanto as palavras, mas que também podemos aprender a ler, com o tempo e a maturidade.
Mas essa digressão está ficando um pouco mais longa do que eu pretendia. Quero falar sobre O Passado, Sofia, mulheres à beira de um ataque de nervos e o editor da Trip. Enquanto assistia ao filme (cujos detalhes vou dar aos futuros expectadores a oportunidade de conhecer pela tela do cinema), via aquela mulher cada vez mais decadente, descontrolada e desequilibrada e sentia um misto de horror e... empatia. Era como olhar para o meu próprio passado, embora ele nunca tenha existido com aquele grau de intensidade e obsessão, e entender que, talvez, a única coisa que me separe de Sofia sejam os meus oito anos de análise.
Me lembro imediatamente da reportagem lida há dois dias sobre mulheres do Japão que mataram as coleguinhas de escola de suas filhas por se sentirem desprezadas pelas mães das meninas, a cujo grupo de mães pertenciam. A despeito do crime hediondo, essas mães assassinas receberam milhares de cartas de outras mães com manifestações de solidariedade, mostrando o quanto essas mulheres se reconheceram na loucura tantas vezes por elas arquitetada, mas apenas consumada pelas outras.
Uma amiga dona de um coração bovino me confessa, ao comentar sobre a maneira velada e cínica como uma colega de trabalho a critica: “minha vontade era dar um tiro nela!”. Uma outra, falando sobre o longo e difícil processo de separação e a descoberta de que o ex iniciou um novo relacionamento, comenta: “agora entendo por que as pessoas matam por amor”.
Uma linha de sanidade separa as pessoas que devaneiam sobre ou verbalizam o terrível desejo primitivo de matar um rival ou amante e aquelas que efetivamente o fazem (só os autores de novela ainda não perceberam isso. Por isso, na tentativa tosca de criar suspense sobre um crime, começam a colocar na boca de milhares de personagens secundários frases como “minha vontade era matar aquela Thaís!”, como se isso indicasse a natureza criminosa de alguém). Uma linha ainda mais tênue separa as pessoas que, vivenciando um término de relação amorosa não desejado, conseguem se relacionar com a perda de uma forma saudável ou alimentam eternamente aquele amor não-correspondido, impedindo-se de viver novas histórias, novos encontros, presas a um relacionamento morto cujo corpo elas se recusam a enterrar.
O fato é que, procurando bem, todo mundo tem dentro de si um pouco de Sofia, de Rimini, de mãe assassina do Japão, de capitão Nascimento, de Fernandinho Beira-Mar. Esse é, aliás, o princípio da relação terapêutica, se bem entendi o que disse o Contardo Calligaris: a terapia tem alguma chance de sucesso se, pra começo de conversa, o terapeuta conseguir, ainda que em um grau mínimo, sentir empatia pelas queixas e dores vividas pelo paciente. Se, ao contrário, para o terapeuta o paciente não passar de um ser enfadonho, desprezível ou desinteressante, nada acontecerá. É melhor até encaminhar o caso.
Foi com essa inspiração que escreveu Terêncio: “sou humano, nada do que é humano me é estranho”. E o que me ocorre como um pensamento curioso, que deixo no fim dessa divagação quase como uma nota de pé de página, é quanto sofrimento decorre da incapacidade que temos de nos colocarmos no lugar do outro. Paradoxo da condição humana que, se conseguirmos reverter a nosso favor, pode ser a chave para relacionamentos interpessoais produtivos, saudáveis e satisfatórios.
11 comentários:
CARACA, mulher! Eu AINDA não li o livro e nem assisti ao filme, mas fiquei matutando sobre a condição humana. Logo que chegui 'aqui' e meses após a vinda costumava separar o meu 'eu' brasileiro, do outro 'eu' como se o dado da nacionalidade servisse para justificar diferenças, equivocos, mal-entendidos possíveis de todos os tipos. E serve, claro, mas não se aplica a tudo. Depois de muitas conversas pelo msn, e momentos de "matutamento" elaborado, percebi que no final somos todos: humanos. Cada vez que converso com uma outra que é mãe, que tem filhos, que é estrangeira...é como se eu estivesse conversando comigo mesma, e esse se reconhecer no outro, é uma das grandes recompensas do relacionamento humano.
Perfeito, amiga.
Beijo.
(se soar confuso, já sabe, msn - rsrs)
Vi o filme e tb me questionei se o tal Rimini não era louco por permitir que tudo aquilo acontecesse. Inevitável não nos questionarmos sobre a existência de uma sofia em cada um de nós.
Quanto ao comentário do seu amigo eu discordo. Realmente onde há falta de explicações há muita fantasia, elecubrações, imaginação. A verdade, por mais q dura, liberta.
Abraços
Amiga, veja só. Tá certo que esse comentário não tem nada com essa postagem... Hoje, durante a aula perdi detalhes picantes do romance de Carlos Magno com suas 10 esposas porque a professora proferiu a palavra Pollyannish que eu nunca imaginava que fosse escutar em inglês. Engraçado foi o contexto em que ela a empregou. Você consegue imaginar a Poliana na Idade Média? Pois é. Minha cabeça de vento não parou de pensar em você. hahahahahahahahahah
Beijo.
Tirou palavras d aminha boca! Muito bom, parabéns!
Qdo a Carla Cepolina foi acusada da morte do namorado, o Ubiratan, eu, que sou dona de uma confecção de camisetas, disse que faria uma camiseta com a inscrição CEPOLINA, EU TE ENTENDO e seria um sucesso entre a mulherada.
Quem nunca teve tanta raiva de um namorado, ou de um ex, a ponto de perder a cabeça?
Gostei do texto e até fiquei com vontade de ver o filme.
bj
Oi amiga,
nada confuso! Captei vossa mensagem... :)
Isabele,
também penso assim, mas nem sempre é possível contar com as libertadoras palavras. Por isso, na ausência delas, a gente também tem que aprender a se virar...
Amiga II,
que barato, hein? Também não imaginei que alguém fosse mencionar Poliana (aliás, "poliânica", como eu gosto de usar) em plena aula sobre o Carlos Magno!
Stephanie,
é mesmo? Uau! Que transmimento de pensação... :)
Claudia,
vale a pena, veja o filme sim... depois quem sabe você passa por aqui pra comentar de novo.
eu penso assim. tentar entender o outro.
qto a esses pequenos deslizes da humaninadade, vou citar um escritor de novela. manoel carlos. consegue mostrar em seus personagens exatamente isso. ninguém é completamente bom, nem completamente mau. essa é a verdadeira essência do ser humano. por melhor q tentamos ser, lá no fundo, existe um pensamento excuso, que sempre vamos reprimir. muitos conseguem. outros não.
tempo q ñ venho aqui, e adorei os textos.
beijo.
Oi Drika,
que bom que você voltou e gostou do que leu. Seus comentários são sempre bem-vindos por aqui.
Beijão!
Manelson,
acho que o moço foi raso, talvez mais do que "masculino". Acho que se alguém vir esse filme de forma chapada vai achar mesmo que se trata de uma mulher obcecada e pronto...
beijão!!
Concordo com absolutamente tudo!!! Essa frase do Terêncio sempre me fascinou: “sou humano, nada do que é humano me é estranho”.
Belo post.
Abração!
Gustavo
www.nao2nao1.com.br
Finalmente estou passando aqui, desculpe a demora amiga. Adorei esse post... hihihi. Realmente muito intrigante essa linha que separa a sanidade da loucura, o criminoso do não criminoso...
Grandes beijos.
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