sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Sobre a espera

Certa vez uma prima disse que eu não deveria esperar. Esperar pelo quê? Perguntei. ‘Esperar por tudo, oras.’

Pequena Gafanhota,

Eu sei que dói, e como sei, e como dói. Dói dormir, acordar, comer, trabalhar, falar, respirar, viver. Quanta coragem é necessária para arrastar esse desarticulado conjunto de órgãos, membros, ossos e carnes para as mais banais e fundamentais atividades do cotidiano. A mais fugidia sensação de paz de espírito, experimentada em um ou outro momento de entrega a algum pensamento ou tarefa desvinculada do seu objeto de amor, parece durar poucos segundos ante toda a eternidade ainda por se viver sem a presença do ser amado. Impossível não se sentir errada, pequena, insignificante, desprovida de algum encanto fundamental que deveria ser original de fábrica e não se consegue em uma revendedora qualquer.

Mas tenha calma, cara amiga. Calma e fé. Siga a estratégia dos dependentes químicos e viva um dia de cada vez, estabeleça uma meta exeqüível de se manter a salvo pelo menos por hoje. Coloque o seu sofrimento em uma perspectiva cósmica. Pense em quantas pessoas no mundo, nesse exato momento, estão passando por essa mesma, exata e insuportável dor que parece ter sido forjada aí mesmo no seu peito. Em quantas outras já passaram por essa mesma sensação de aniquilamento e hoje podem contar que a história teve um final feliz, ainda que o roteiro original tenha sofrido significativas adaptações por força das circunstâncias. Em quantas, ainda, que nesse instante vivenciam aquela mesma intensa percepção de felicidade a dois que lhe parece ter sido roubada sem possibilidade de resgate, mas em horas, dias, semanas, meses ou anos também serão obrigadas a enfrentar a solidão em um rinque de sumô.

Aplique, ainda, a perspectiva cósmica à sua própria linha do tempo. Pense no que significa essa porção de dor no universo que representa a sua vida como um todo, visualize a sua diluição no caudaloso passar das horas, dias, meses e anos que você já viveu e ainda há de viver. Use os seus olhos, ouvidos e coração para perceber que o amor acaba a todo instante, mas também renasce a todo instante e se é assim com todos, não será diferente com você.

Não tenha a ilusão, no entanto, de que qualquer um desses pensamentos afrouxará sequer um milímetro do aperto que toma conta da sua caixa torácica. Não será nesse momento, justo agora, que você encontrará forças para fazer prevalecer a razão sobre a emoção. Eles servirão apenas para que você reúna as mínimas forças necessárias para seguir vivendo e esperando, esperando, esperando.

Sim, você precisa continuar esperando. Ainda que a idéia de tomar uma pílula mágica que te fizesse dormir durante três meses pareça agora a maior das possíveis invenções da humanidade, saiba que tal engenho seria inteiramente inútil. Você dormiria e acordaria exatamente da mesma maneira, e esse lapso de tempo nada teria feito por você. É preciso dormir e acordar em cada um dos dias desses três meses, seguir vivendo apesar de tudo, obrigar-se a executar as mais ínfimas tarefas necessárias a garantir a manutenção da sua vida, e depois fazer isso por mais três meses, e mais três, e mais três, e quantos mais sejam precisos até que finalmente o tempo tenha realizado a sua ação curativa (que só acontece na sua espera ativa, como tento agora te mostrar).

Então talvez você chegue ao ponto de poder não esperar nada. Talvez se desfaça, uma a uma, de todas as suas ilusões, submeta toda a sua existência ao crivo da sua filosofia pessoal e conclua que nada nem ninguém pode ser tomado como garantido. E, diante disso, decida viver de maneira errante e errada, tomando cada um dos seus dias como a oportunidade de se surpreender com o novo e o desconhecido sem jamais se aferrar a eles e simplesmente pulando de uma experiência a outra com a única certeza de permanente admiração em relação à vida.

Pode ser que nesse tempo você também dessacralize o seu corpo e o entregue ao bel-prazer do fluxo dessas experiências. Você vai se desapropriar de si mesma e doar-se à ciência da experimentação. Vai provar um pouco de cada coisa, abrir mão do seu gosto clássico e simplesmente colocar-se à disposição de cada um dos encontros, por mais descartáveis que eles sejam, que a vida possa te proporcionar. Em cada um deles você vai sugar até a última gota das sensações, percepções, reflexões, conclusões e também o avesso de todas elas. E a pequena dor que esses encontros poderão te infligir será apenas a taxa mínima cobrada pela vida a qualquer um dos seus usuários, simples tarifa de manutenção, franquia que cobre desde os gastos com um conserto de radiador até o desgaste do relacionamento com um chefe que muda de opinião a cada 15 minutos.

Como, até então, você talvez não tenha estado aberta a vivê-los, esses encontros trarão consigo a dose de praxe de deslumbramento. A quem nada espera, a vida presenteia com surpresas permanentes, pensará você. E se entregará cada vez mais ao exercício de não fazer planos, de não buscar encontros, de não procurar amores, de não alimentar ilusões e simplesmente apanhar nas mãos essas pequenas doses diárias de descoberta. Perceberá, com espanto, que as pessoas não entram em sua vida para garantir a sua felicidade ou apaziguar a sua dor. O que há vez ou outra é a mera coincidência entre esses estados de feliz ou infelicidade e a presença ou ausência de alguém, mas a sua dor e a sua felicidade, sabe, essas ficam por sua conta.

E aí chegará o dia em que você vai enfrentar o vazio. Porque a vida paradoxalmente é muito curta e também muito longa, e despida dos seus planos, sonhos e ilusões e disposta a se entregar também a essa vivência, as horas, dias, semanas e meses se escoarão lentamente, sem que nada se possa fazer a respeito a não ser entender mais esse momento como uma nova e importante aquisição para o seu repertório. Não há nada de mal em tomar o cinema, a música ou a literatura como companhias eventuais na vivência desse vazio. Você já tem nas mãos os seus pincéis e tintas; procure pensar como seria a representação no papel desse vazio lúcido. Alimente-se das histórias alheias, mate a sua fome de vida com a ficção. E, mais uma vez, aprenda a esperar.

Exercite a sua paciência. Ouça o ronco surdo que vem de dentro do seu coração vazio, do seu estômago vazio, da sua mente vazia. Observe. Veja que, afinal, nem mesmo o vazio é capaz de anular a sua existência. Lembra-se da História sem Fim? “O nada é o vazio que resta”. Aqui, do lado de cá, o vazio é só o vazio, o nada é só o nada. Convide-os para um bom cálice de vinho, se te apetecer, ou para aquele cafezinho de que você tanto gosta.

E depois de tudo isso, Pequena Gafanhota, o que eu mais espero é que você continue esperando, e não desista nunca de esperar. Esperar nos ponteiros do relógio que o universo conspire e esperar nos ponteiros do seu coração que os seus sonhos e desejos tão preciosos encontrem outros sonhos e desejos com os quais possam seguir viagem. Afinal, o que seria de mim, de você, dele, sem os nossos sonhos e desejos? O que é o homem sem o seu projeto? Então, espere sim. Oxalá eu possa continuar sendo sua amiga para ainda te ver roendo todas as unhas dos dedos esperando, sabe lá, por um telefonema, ou de coração acelerado esperando por um beijo, ou de boca seca esperando por uma boa notícia, ou de pés inchados esperando pela chegada de um filho.

Essa sua anatomia errada, esse seu todo-coração, é o bem mais precioso que você possui. Se você já sabe o quanto pode sofrer com a perda, tem que saber também que a única coisa que não pode perder nunca é a capacidade de amar, pois o seu amor não está nele nem em nenhum outro, mas em você. Essa capacidade é o único pré-requisito para a sua felicidade nessa vida.

Bons encontros com a sua dor e delícia. Estarei aqui.

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* Esta não é uma obra de ficção. Qualquer semelhança entre pessoas, lugares e acontecimentos terá sido fruto de uma dolorosa mas frutífera vivência pessoal e intransferível.

3 comentários:

Anônimo disse...

Que texto maravilhoso! So vc, Cris, so vc!!!

Anônimo disse...

meodeos. existe mesmo um autor pra esta carta?

liiindas palavras. simplesmente perfeito.

Mulher Solteira disse...

Oi amiga! Que bom que você gostou... esse veio das entranhas, né?

Drika: assim você me deixa lisonjeada! Obrigada pelo carinho.