No ano passado, em uma das inúmeras despedidas de solteira às quais fui convocada a comparecer (evento que se torna relativamente corriqueiro quando nos aproximamos dos 30), uma das amigas da “noiva” levou, para tornar a noite mais divertida, um texto escrito por Gisela Rao (escritora inspirada de dilemas femininos, feministas e afins) sobre “Coisas que você deve fazer antes de casar”.
Entre idéias cômicas e/ou inviáveis como “coma uma pizza de alho inteira”, “passe um mês sem fazer depilação” e “pose para a Playboy ou participe de um concurso de Miss”, uma delas me pareceu um tiro certeiro e fez soar o bom e velho sininho interno: “resolva sua relação com o seu pai”.
Eu não sei se ter problemas de relacionamento com o pai é um universal das mulheres, mas certamente foi algo que marcou a minha trajetória de forma importante. Meu pai é um sujeito brilhante, inteligentíssimo, extremamente musical, bem-informado, culto, ponderado, articulado, provocador. Junto com o pacote vieram um senso crítico bastante exacerbado, uma grande rigidez, uma enorme dificuldade de falar sobre sentimentos e uma carga de expectativa em relação às pessoas sempre um pouco além daquilo que elas são capazes de oferecer.
Uma amiga querida sempre se admirou da formalidade das nossas brigas e dizia que na minha casa todos discutiam “em cima do púlpito”. Ninguém era capaz de sacar um “não enche o saco!” ou “fico triste quando você me trata assim”; pelo contrário, todo e qualquer ponto de discordância era pretexto para um longo debate solidamente sustentado por argumentos, fatos, ilustrações e refutações.
Mas aquilo que realmente ia na alma de cada um, as tristezas, as frustrações e o desapontamentos nunca conseguiam ser claramente expressos e acolhidos pelo outro. Ficávamos rancorosos, cada um de um lado, sofrendo com o seu próprio sentimento de incompreensão.
A santa análise nos ajudou a aceitar um ao outro e a nós mesmos. No fundo somos muito parecidos. E o que ele viveu e sofreu serviu de modelo para que eu evitasse alguns equívocos importantes. Mas, curiosamente, o momento de maior abertura e transcendência (expressão emprestada do amigo blogueiro Gustavo Gitti) que vivemos em nossa relação aconteceu exatamente depois e em função do fim do meu namoro.
Quando disse que queria se separar, meu ex-namorado não expôs claramente os seus motivos. Acabou se apoiando em algumas frases-padrão do tipo “não está legal para mim” e “preciso viver outras coisas”. Eu, que sequer percebera que estávamos em crise, continuei alimentando durante algum tempo a esperança de que fosse apenas uma fase, um questionamento típico de alguém que vive um relacionamento longo que começa a se encaminhar para uma vida a dois.
Então, três meses depois, quando a minha melhor amiga veio à minha casa para contar que o ex estava namorando com uma de suas amigas, que ele havia conhecido graças a mim, o choque foi bem grande. Depois da nossa “conversa de despedida”, que já relatei em algum outro post deste blog, voltei para casa incapaz de comer, dormir, ver TV, ler ou fazer qualquer outra coisa que exigisse mais do que simplesmente respirar. Passei algumas horas catatônica na minha cama, esperando um horário minimamente decente para travar contato com qualquer ser humano da face da Terra.
(Foi nessa madrugada que percebi que uma das minhas cachorras estava com o rabo sujo e a coloquei em cima da máquina de lavar roupa para lavá-lo no tanque. Me virei para buscar o sabonete e no próximo segundo ouvi um baque surdo e encontrei a pobre criatura estatelada no chão, de barriga para cima, olhos esbugalhados e língua para fora. O desespero foi tão grande que, em câmera lenta, fiz tudo ao contrário do que manda o figurino dos primeiros-socorros: levantei-a do chão, sacudi, berrei “NÃÃÃÃÃO!!! MIIIMIIIIII!!!!”, balancei, virei de um lado, do outro, levei-a para a sala... Depois de alguns segundo andando em círculos como uma barata tonta, encontrei a caderneta telefônica com o celular da veterinária... O tempo que levei para conseguir encontrar os oito dígitos no aparelho de telefone foi o tempo que a Mimi precisava para começar a se recuperar do estado de choque, abrir os olhos e levantar a cabeça, ainda meio tonta. Depois de seguir as orientações da minha vet, seguir os procedimentos de praxe e constatar que não havia ocorrido nenhum grande dano, desabei a chorar e desabafei em plena madrugada com a Santa Cíntia: “Aa-aaaaaai, Ciiiiiiiii, tô pé-éééssima, bu-áááá!!!!!!!!! Acabei de descobrir que o R. tá namora-aaaando, UÁ-ÁÁÁÁÁ!!! Com uma amiga da minha melhor ami-ii-iiiiga, BU-UUUÁÁ-ÁÁ!!!”. Quem precisar de indicação de uma veterinária que não só zela pela saúde dos seus cães às 4h30 da manhã como ainda tem a humanidade de ouvir o seu desabafo histérico no meio da madrugada, pode mandar um e-mail para blogmulhersolteira@gmail.com.)
Às 6h30 achei que já era possível encontrar alguns espíritos práticos com bons ouvidos de pé e comecei a telefonar. A primeira pessoa que procurei foi Manélson, mas ela ainda estava com o celular desligado. A segunda cotovia da minha lista era a minha mãe. O telefone tocou quatro vezes e quem acabou me atendendo, contrariando todas as expectativas do universo, foi meu pai. “Oi, filhinha... Tudo bem?” “Ai, pai, mais ou menos... posso falar com a mamãe?” “Claro... Mas será que eu posso te ajudar em alguma coisa, filhinha?”.
Eu já estava tão vazia, dilacerada e anestesiada pela dor que deixei de lado todos os pudores que fizeram com que, durante toda a minha vida, a minha mãe tenha sido a eterna intermediária nas minhas conversas sentimentais com o meu pai. Abri meu coração, expus minhas entranhas, proclamei o fim da minha crença nos homens, no Amor, na Felicidade.
Meu pai me ouviu pacientemente, amorosamente, com um cuidado, um carinho e uma cumplicidade que nunca antes haviam tido espaço para se manifestar entre nós. Disse, com todo o respeito, que sempre aceitara as minhas escolhas amorosas, mas se aborrecia com algumas coisas que minha mãe contava a ele a respeito do meu relacionamento com o R. Sentia-se chateado com atitudes que não lhe pareciam suficientemente amorosas, companheiras, cúmplices.
Quando eu disse ao meu pai que não acreditava que um amor pudesse durar para toda a vida e talvez as pessoas apenas se acostumassem umas às outras, ele iniciou a sua cura socrática: “Você acredita no amor da sua irmã e do seu cunhado? Acredita no amor do seu tio e da sua tia? Acredita no amor que existe entre mim e sua mãe?” Respondi com uma cortante sinceridade, contaminada pelo desolamento que eu sentia naquele momento, que às vezes me perguntava se o que havia entre eles não era o simples resultado do hábito de uma vida partilhada durante mais de três décadas.
Então meu pai me deu a mais bonita lição de vida: “Sabe, Filhinha, existe uma faceta da intimidade de um casal que nem sempre é visível para quem está fora da relação. Talvez por isso você não consiga perceber o quanto eu e sua mãe nos amamos”.
E acrescentou, colocando bálsamos nas minhas feridas: “Sua mãe é a pessoa mais altruísta e generosa que eu conheço. O cuidado e a atenção que ela tem com os seus avós, as suas tias, seus primos, comigo, com vocês, com a minha família, é algo ímpar. Eu sei que não fui um bom pai em boa parte do tempo, mas tenho certeza de que a sua mãe foi a melhor mãe do mundo para vocês. O que nós temos hoje é o resultado de um projeto de vida que nós criamos juntos e você e a sua irmã sem dúvida são a parte mais importante desse projeto. E acho que fomos muito bem-sucedidos”.
É difícil explicar o movimento de ordenação, ajustamento, encaixe, alinhamento que essas palavras provocaram em mim. Se eu algum dia tive alguma dúvida sobre a existência do amor, ela persistiu durante aquelas poucas (mas infinitas) horas entre a minha “descoberta” e a conversa com o meu pai.
A dor ainda durou muitos meses e foi preciso passar por muitos estados de ânimo antes de reencontrar o meu centro, minha identidade, meus desejos, sentimentos e sonhos individuais e a construção de sentido que hoje me acompanha e me faz uma pessoa feliz. Mas aquela conversa com o meu pai não apenas me reconciliou com a minha capacidade de amar como permitiu, finalmente, que eu e meu pai déssemos as mãos e nos tornássemos, para o resto da vida, companheiros de caminhada.
Entre idéias cômicas e/ou inviáveis como “coma uma pizza de alho inteira”, “passe um mês sem fazer depilação” e “pose para a Playboy ou participe de um concurso de Miss”, uma delas me pareceu um tiro certeiro e fez soar o bom e velho sininho interno: “resolva sua relação com o seu pai”.
Eu não sei se ter problemas de relacionamento com o pai é um universal das mulheres, mas certamente foi algo que marcou a minha trajetória de forma importante. Meu pai é um sujeito brilhante, inteligentíssimo, extremamente musical, bem-informado, culto, ponderado, articulado, provocador. Junto com o pacote vieram um senso crítico bastante exacerbado, uma grande rigidez, uma enorme dificuldade de falar sobre sentimentos e uma carga de expectativa em relação às pessoas sempre um pouco além daquilo que elas são capazes de oferecer.
Uma amiga querida sempre se admirou da formalidade das nossas brigas e dizia que na minha casa todos discutiam “em cima do púlpito”. Ninguém era capaz de sacar um “não enche o saco!” ou “fico triste quando você me trata assim”; pelo contrário, todo e qualquer ponto de discordância era pretexto para um longo debate solidamente sustentado por argumentos, fatos, ilustrações e refutações.
Mas aquilo que realmente ia na alma de cada um, as tristezas, as frustrações e o desapontamentos nunca conseguiam ser claramente expressos e acolhidos pelo outro. Ficávamos rancorosos, cada um de um lado, sofrendo com o seu próprio sentimento de incompreensão.
A santa análise nos ajudou a aceitar um ao outro e a nós mesmos. No fundo somos muito parecidos. E o que ele viveu e sofreu serviu de modelo para que eu evitasse alguns equívocos importantes. Mas, curiosamente, o momento de maior abertura e transcendência (expressão emprestada do amigo blogueiro Gustavo Gitti) que vivemos em nossa relação aconteceu exatamente depois e em função do fim do meu namoro.
Quando disse que queria se separar, meu ex-namorado não expôs claramente os seus motivos. Acabou se apoiando em algumas frases-padrão do tipo “não está legal para mim” e “preciso viver outras coisas”. Eu, que sequer percebera que estávamos em crise, continuei alimentando durante algum tempo a esperança de que fosse apenas uma fase, um questionamento típico de alguém que vive um relacionamento longo que começa a se encaminhar para uma vida a dois.
Então, três meses depois, quando a minha melhor amiga veio à minha casa para contar que o ex estava namorando com uma de suas amigas, que ele havia conhecido graças a mim, o choque foi bem grande. Depois da nossa “conversa de despedida”, que já relatei em algum outro post deste blog, voltei para casa incapaz de comer, dormir, ver TV, ler ou fazer qualquer outra coisa que exigisse mais do que simplesmente respirar. Passei algumas horas catatônica na minha cama, esperando um horário minimamente decente para travar contato com qualquer ser humano da face da Terra.
(Foi nessa madrugada que percebi que uma das minhas cachorras estava com o rabo sujo e a coloquei em cima da máquina de lavar roupa para lavá-lo no tanque. Me virei para buscar o sabonete e no próximo segundo ouvi um baque surdo e encontrei a pobre criatura estatelada no chão, de barriga para cima, olhos esbugalhados e língua para fora. O desespero foi tão grande que, em câmera lenta, fiz tudo ao contrário do que manda o figurino dos primeiros-socorros: levantei-a do chão, sacudi, berrei “NÃÃÃÃÃO!!! MIIIMIIIIII!!!!”, balancei, virei de um lado, do outro, levei-a para a sala... Depois de alguns segundo andando em círculos como uma barata tonta, encontrei a caderneta telefônica com o celular da veterinária... O tempo que levei para conseguir encontrar os oito dígitos no aparelho de telefone foi o tempo que a Mimi precisava para começar a se recuperar do estado de choque, abrir os olhos e levantar a cabeça, ainda meio tonta. Depois de seguir as orientações da minha vet, seguir os procedimentos de praxe e constatar que não havia ocorrido nenhum grande dano, desabei a chorar e desabafei em plena madrugada com a Santa Cíntia: “Aa-aaaaaai, Ciiiiiiiii, tô pé-éééssima, bu-áááá!!!!!!!!! Acabei de descobrir que o R. tá namora-aaaando, UÁ-ÁÁÁÁÁ!!! Com uma amiga da minha melhor ami-ii-iiiiga, BU-UUUÁÁ-ÁÁ!!!”. Quem precisar de indicação de uma veterinária que não só zela pela saúde dos seus cães às 4h30 da manhã como ainda tem a humanidade de ouvir o seu desabafo histérico no meio da madrugada, pode mandar um e-mail para blogmulhersolteira@gmail.com.)
Às 6h30 achei que já era possível encontrar alguns espíritos práticos com bons ouvidos de pé e comecei a telefonar. A primeira pessoa que procurei foi Manélson, mas ela ainda estava com o celular desligado. A segunda cotovia da minha lista era a minha mãe. O telefone tocou quatro vezes e quem acabou me atendendo, contrariando todas as expectativas do universo, foi meu pai. “Oi, filhinha... Tudo bem?” “Ai, pai, mais ou menos... posso falar com a mamãe?” “Claro... Mas será que eu posso te ajudar em alguma coisa, filhinha?”.
Eu já estava tão vazia, dilacerada e anestesiada pela dor que deixei de lado todos os pudores que fizeram com que, durante toda a minha vida, a minha mãe tenha sido a eterna intermediária nas minhas conversas sentimentais com o meu pai. Abri meu coração, expus minhas entranhas, proclamei o fim da minha crença nos homens, no Amor, na Felicidade.
Meu pai me ouviu pacientemente, amorosamente, com um cuidado, um carinho e uma cumplicidade que nunca antes haviam tido espaço para se manifestar entre nós. Disse, com todo o respeito, que sempre aceitara as minhas escolhas amorosas, mas se aborrecia com algumas coisas que minha mãe contava a ele a respeito do meu relacionamento com o R. Sentia-se chateado com atitudes que não lhe pareciam suficientemente amorosas, companheiras, cúmplices.
Quando eu disse ao meu pai que não acreditava que um amor pudesse durar para toda a vida e talvez as pessoas apenas se acostumassem umas às outras, ele iniciou a sua cura socrática: “Você acredita no amor da sua irmã e do seu cunhado? Acredita no amor do seu tio e da sua tia? Acredita no amor que existe entre mim e sua mãe?” Respondi com uma cortante sinceridade, contaminada pelo desolamento que eu sentia naquele momento, que às vezes me perguntava se o que havia entre eles não era o simples resultado do hábito de uma vida partilhada durante mais de três décadas.
Então meu pai me deu a mais bonita lição de vida: “Sabe, Filhinha, existe uma faceta da intimidade de um casal que nem sempre é visível para quem está fora da relação. Talvez por isso você não consiga perceber o quanto eu e sua mãe nos amamos”.
E acrescentou, colocando bálsamos nas minhas feridas: “Sua mãe é a pessoa mais altruísta e generosa que eu conheço. O cuidado e a atenção que ela tem com os seus avós, as suas tias, seus primos, comigo, com vocês, com a minha família, é algo ímpar. Eu sei que não fui um bom pai em boa parte do tempo, mas tenho certeza de que a sua mãe foi a melhor mãe do mundo para vocês. O que nós temos hoje é o resultado de um projeto de vida que nós criamos juntos e você e a sua irmã sem dúvida são a parte mais importante desse projeto. E acho que fomos muito bem-sucedidos”.
É difícil explicar o movimento de ordenação, ajustamento, encaixe, alinhamento que essas palavras provocaram em mim. Se eu algum dia tive alguma dúvida sobre a existência do amor, ela persistiu durante aquelas poucas (mas infinitas) horas entre a minha “descoberta” e a conversa com o meu pai.
A dor ainda durou muitos meses e foi preciso passar por muitos estados de ânimo antes de reencontrar o meu centro, minha identidade, meus desejos, sentimentos e sonhos individuais e a construção de sentido que hoje me acompanha e me faz uma pessoa feliz. Mas aquela conversa com o meu pai não apenas me reconciliou com a minha capacidade de amar como permitiu, finalmente, que eu e meu pai déssemos as mãos e nos tornássemos, para o resto da vida, companheiros de caminhada.
7 comentários:
surpreendente...
em casa lidamos com essa mesma dificuldade de expressar e demonstrar sentimentos (bons ou ruins), e imaginar que esse nível de sinceridade e abertura numa conversa com o pai possa acontecer é inspirador!
Sabe, eu também tenho uma incrível dificuldade de expressar sentimentalidades na minha casa, até mesmo com a minha mãe. Achei ,muito bonita essa atitude do seu pai. Isso é que é pai.
Tava discutindo com um amigo, essa coisa de casamentos duradouros e ele disse uma coisa muito bacana: "Num casamento, as duas pessoas mudam, a gente tem que lembrar que o outro muda também e tentar se apaixonar novamente por aquela pessoa nova."
Acho que é isso. Viver o seu relacionamento se apaixonado várias vezes pela mesma pessoa.
Que texto lindo... como sempre.
bjs
Re
ps. depois vou querer sim o telefone da veterinária... nunca se sabe.... rsrsrs
bj
Oi MH,
chega quase a parecer que foi um sonho; mas aquela noite estava mais para pesadelo, então tenho certeza de que estava acordada. Que também venha o seu dia!
Oi Érica!
Pois é, ainda não sei qual é o segredo dos casais que envelhecem juntos, mas já é bom o suficiente ter um exemplar tão próximo e que, depois de 38 anos, continua se amando!
Rê,
obrigada! Quando quiser o telefone da vet, é só escrever pra hot line da mulher solteira... :)
Relacionamentos com pais ausentes ou rígidos demais, são sempre complicados! Que bom que está tudo bem agora... entre vocês e com respeito ao mala do seu ex.
Fabi: não há mal que sempre dure nem bem que sempre perdure, não é o que dizem? aliás, "mala" sempre foi a palvra que meu pai usou para se referir aos meus namorados e da minha irmã, hehehehehe...)
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