Parte 8 – Epílogo
Ao contrário do que alguns leitores pudessem imaginar – fosse pelos rumos xerazadianos que esse post-folhetim vinha tomando, fosse por pura malícia –, aquela longa noite de sábado realmente se encerrou aqui. João me conduziu gentilmente até a minha casa onde cheguei, exausta, às quase 5 da manhã, tomei um banho e me aninhei na minha cama, ainda repassando mentalmente alguns dos bons momentos daquele sábado antes de finalmente pegar no sono.
Fico pensando no quanto a vida é muito maior, muito mais diversa do que a gente às vezes pode supor. Embora a gente não escolha certos rumos que ela toma, acaba tendo que assumir algumas escolhas como nossas para, em determinados momentos, as coisas começarem a fazer algum sentido.
Era um pouco esse o assunto da minha conversa com o João enquanto ele me levava para casa. Ainda no bar da Praça Roosevelt, fiquei sabendo que ele está no último ano da Filosofia da PUC. Eu já tive a minha traumática passagem pelo curso de Filosofia aos 18 anos e, sempre que me deparo com algum “sobrevivente”, experimento um misto de espanto e admiração, buscando entender as razões e motivações para que alguém abrace essa árida formação.
No caso do João, me chamou atenção o fato de que ele parecia ter mais ou menos a minha idade. Eu passei pela Filosofia ainda saindo da adolescência, num delírio de colegial recém-formada que achava que a vida docente se assemelhava a uma Sociedade dos Poetas Mortos, com alunos dedicados subindo sobre as mesas e dizendo, com devoção, “Oh, captain, my captain”... Naquele tempo me lembro que, dos 90 colegas que iniciaram comigo o curso naquele ano, dentre os 14 que sobraram lá pelo terceiro mês, mais da metade tinha o dobro da minha idade. E comecei a achar que a Filosofia realmente é uma segunda faculdade para se fazer quando a vida já está resolvida, os anseios básicos sobre carreira, sustento e vocação estão mais ou menos acomodados e sobra espaço para se buscar “algo mais”. De qualquer forma, hoje em dia não é algo que eu pensaria em voltar a fazer antes dos 40 anos (sem ofensa aos amantes da Filosofia, com todo respeito).
Então, quando entramos no carro de vaqueiro (o João me explica que o padrasto usa esse carro para visitar a fazenda – a Carol, vítima de uma carona entre o bar da Roosevelt e a sinuca do “Seu” Mário, já havia alertado sobre as precárias condições do veículo), antes mesmo de ele ligar o rádio ou colocar um CD, puxo o fio do novelo. João: por que Filosofia? Você pensa em dar aula?
João confessa que ainda não sabe exatamente o que vai fazer com a formação depois que terminar a faculdade. Insisto mais um pouco: mas é a sua primeira faculdade? Ele responde que não. Conta que, assim como eu, já fez alguns malabarismos universitários antes de chegar onde está. Seu primeiro curso foi de Engenharia Ambiental, em uma faculdade em outro estado do país (que a minha ausência de bússola interna me impede de recordar qual era – assim como não me lembro onde fica a fazenda do padrasto do João). Fico admirada: Engenharia Ambiental? Mas o que, exatamente, motivou essa escolha (já começo a achar a Filosofia trivial)? João me explica que não sabia exatamente o que fazer quando se formou no colegial, e acabou optando por essa faculdade porque sabia que ela lhe daria um bom retorno financeiro. Na época do vestibular a família passava por um momento difícil e ele achou que esse era um bom critério para escolher a profissão. Levou dois anos para concluir que aquela faculdade não tinha nada a ver com ele, voltar para São Paulo e decidir fazer outra coisa.
Pergunto: João... O que acontece com a nossa geração? Ele responde: Puxa, Cris... Boa pergunta... Acho que temos muitos interesses. Não sei se existe mesmo essa coisa chamada vocação. Concordo com ele, mas tantas vezes já pensei sobre o assunto (inclusive recentemente) e tantas outras já o debati com outras pessoas, que acrescento mais alguns fatores nesse caldeirão: primeiro que a nossa geração, que desde a primeira infância fez balé, judô, inglês, natação e aula de música, cresceu com a fantasia de que o trabalho deveria ser uma coisa “gostosinha”. Não é. É claro que alguns felizardos têm uma relação apaixonada com a profissão que abraçam, além de uns raros casos de talentos e vocações precoces e inequívocas que se encaminham muito cedo na profissão e acabam assimilando-a como parte fundamental de sua identidade. A maior parte dos mortais, no entanto, vive um embate diário com o trabalho, por mais capacidade e reconhecimento que se tenha e dedicação que se invista. Segundo que, pelo menos a mim, impressiona o quanto me tornei uma pessoa diferente ao longo de uma década. Aquilo que eu queria e sonhava aos 18 anos é muito diferente, sob muitos aspectos, daquilo que sonho e quero aos 28. Talvez não fosse assim se eu não tivesse escolhido os caminhos que escolhi. Mas quando eu prestei vestibular para Psicologia (além dos de Filosofia, Jornalismo, Letras e Teatro), a última coisa que queria era ser terapeuta. A Psicologia em si me interessava como objeto de estudo. Hoje em dia, tenho a impressão de que trabalhar como terapeuta me daria muito prazer. Já a Psicologia como objeto de estudo me causa certa preguiça...
Enfim, quando tive que decidir, aos 17 anos, que faculdade eu queria fazer, a questão financeira era a última das minhas preocupações. De novo, na minha fantasia da Sociedade dos Poetas Mortos, o papel decisivo que eu teria na vida dos meus alunos, mostrando-lhes o caminho da luz, do bem, do belo, da verdade, seria a minha recompensa... Um quarto-e-sala estava de bom tamanho. Hoje, aos 28, morando sozinha, pagando minhas contas e usufruindo da minha independência financeira, acho que dinheiro conta, sim. Ainda hoje eu não colocaria esse fator como o mais importante no momento da escolha, mas certamente não amarraria meu burrinho em qualquer poste apenas por uma fantasia adolescente sobre uma profissão missionária.
O curioso é que, como eu disse há pouco, nem sempre a gente escolhe muito os rumos que a vida toma, mas acaba tendo que assumir algumas escolhas como nossas, para a vida fazer algum sentido. Logo que me formei, decidida a não ser professora, recebi uma proposta de trabalho para fazer algo muito diferente do que eu já havia experimentado até então, e gostei do desafio. Em pouco tempo eu já ganhava mais do que precisava para me sustentar. Aos poucos o trabalho foi se revelando menos fascinante do que poderia parecer em um primeiro momento, mas ainda assim válido, por me ensinar coisas, me proporcionar a convivência com pessoas interessantes e, sobretudo, por me garantir um sustento.
Por motivos não relacionados ao emprego em si ou mesmo à relação com os meus pais, acabei decidindo sair de casa. E, quando esses motivos deixaram de existir, em um primeiro momento nada do que eu havia feito até então parecia fazer sentido. Por que essa casa, esse emprego, essa vida, se tudo isso era para viabilizar um plano que não é mais viável? Foi aí que a vida me deu um ultimato, e respondi a ele dizendo: essa casa é minha, esse emprego é meu e essa vida é minha. Fui eu quem escolhi, porque acredito que a independência financeira é o curso natural da vida, porque acho que todo mundo precisa aprender a conviver com a própria solidão, e porque a minha vida é o resultado de todas as escolhas que eu fiz até agora e de como abracei aquilo que não escolhi, mas me aconteceu. Disse uma vez um homem sabido: “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. Grande Jota-Pê...
É assim, em meio a um papo altamente filosófico (especialmente em se considerando o adiantado da hora) que João estaciona o carro de vaqueiro na pirambeira da Paris, de onde salto agradecendo pela carona, pelo papo e pela companhia, com a promessa de repetir outras vezes essa deliciosa aventura pela cidade de São Paulo.
Ao contrário do que alguns leitores pudessem imaginar – fosse pelos rumos xerazadianos que esse post-folhetim vinha tomando, fosse por pura malícia –, aquela longa noite de sábado realmente se encerrou aqui. João me conduziu gentilmente até a minha casa onde cheguei, exausta, às quase 5 da manhã, tomei um banho e me aninhei na minha cama, ainda repassando mentalmente alguns dos bons momentos daquele sábado antes de finalmente pegar no sono.
Fico pensando no quanto a vida é muito maior, muito mais diversa do que a gente às vezes pode supor. Embora a gente não escolha certos rumos que ela toma, acaba tendo que assumir algumas escolhas como nossas para, em determinados momentos, as coisas começarem a fazer algum sentido.
Era um pouco esse o assunto da minha conversa com o João enquanto ele me levava para casa. Ainda no bar da Praça Roosevelt, fiquei sabendo que ele está no último ano da Filosofia da PUC. Eu já tive a minha traumática passagem pelo curso de Filosofia aos 18 anos e, sempre que me deparo com algum “sobrevivente”, experimento um misto de espanto e admiração, buscando entender as razões e motivações para que alguém abrace essa árida formação.
No caso do João, me chamou atenção o fato de que ele parecia ter mais ou menos a minha idade. Eu passei pela Filosofia ainda saindo da adolescência, num delírio de colegial recém-formada que achava que a vida docente se assemelhava a uma Sociedade dos Poetas Mortos, com alunos dedicados subindo sobre as mesas e dizendo, com devoção, “Oh, captain, my captain”... Naquele tempo me lembro que, dos 90 colegas que iniciaram comigo o curso naquele ano, dentre os 14 que sobraram lá pelo terceiro mês, mais da metade tinha o dobro da minha idade. E comecei a achar que a Filosofia realmente é uma segunda faculdade para se fazer quando a vida já está resolvida, os anseios básicos sobre carreira, sustento e vocação estão mais ou menos acomodados e sobra espaço para se buscar “algo mais”. De qualquer forma, hoje em dia não é algo que eu pensaria em voltar a fazer antes dos 40 anos (sem ofensa aos amantes da Filosofia, com todo respeito).
Então, quando entramos no carro de vaqueiro (o João me explica que o padrasto usa esse carro para visitar a fazenda – a Carol, vítima de uma carona entre o bar da Roosevelt e a sinuca do “Seu” Mário, já havia alertado sobre as precárias condições do veículo), antes mesmo de ele ligar o rádio ou colocar um CD, puxo o fio do novelo. João: por que Filosofia? Você pensa em dar aula?
João confessa que ainda não sabe exatamente o que vai fazer com a formação depois que terminar a faculdade. Insisto mais um pouco: mas é a sua primeira faculdade? Ele responde que não. Conta que, assim como eu, já fez alguns malabarismos universitários antes de chegar onde está. Seu primeiro curso foi de Engenharia Ambiental, em uma faculdade em outro estado do país (que a minha ausência de bússola interna me impede de recordar qual era – assim como não me lembro onde fica a fazenda do padrasto do João). Fico admirada: Engenharia Ambiental? Mas o que, exatamente, motivou essa escolha (já começo a achar a Filosofia trivial)? João me explica que não sabia exatamente o que fazer quando se formou no colegial, e acabou optando por essa faculdade porque sabia que ela lhe daria um bom retorno financeiro. Na época do vestibular a família passava por um momento difícil e ele achou que esse era um bom critério para escolher a profissão. Levou dois anos para concluir que aquela faculdade não tinha nada a ver com ele, voltar para São Paulo e decidir fazer outra coisa.
Pergunto: João... O que acontece com a nossa geração? Ele responde: Puxa, Cris... Boa pergunta... Acho que temos muitos interesses. Não sei se existe mesmo essa coisa chamada vocação. Concordo com ele, mas tantas vezes já pensei sobre o assunto (inclusive recentemente) e tantas outras já o debati com outras pessoas, que acrescento mais alguns fatores nesse caldeirão: primeiro que a nossa geração, que desde a primeira infância fez balé, judô, inglês, natação e aula de música, cresceu com a fantasia de que o trabalho deveria ser uma coisa “gostosinha”. Não é. É claro que alguns felizardos têm uma relação apaixonada com a profissão que abraçam, além de uns raros casos de talentos e vocações precoces e inequívocas que se encaminham muito cedo na profissão e acabam assimilando-a como parte fundamental de sua identidade. A maior parte dos mortais, no entanto, vive um embate diário com o trabalho, por mais capacidade e reconhecimento que se tenha e dedicação que se invista. Segundo que, pelo menos a mim, impressiona o quanto me tornei uma pessoa diferente ao longo de uma década. Aquilo que eu queria e sonhava aos 18 anos é muito diferente, sob muitos aspectos, daquilo que sonho e quero aos 28. Talvez não fosse assim se eu não tivesse escolhido os caminhos que escolhi. Mas quando eu prestei vestibular para Psicologia (além dos de Filosofia, Jornalismo, Letras e Teatro), a última coisa que queria era ser terapeuta. A Psicologia em si me interessava como objeto de estudo. Hoje em dia, tenho a impressão de que trabalhar como terapeuta me daria muito prazer. Já a Psicologia como objeto de estudo me causa certa preguiça...
Enfim, quando tive que decidir, aos 17 anos, que faculdade eu queria fazer, a questão financeira era a última das minhas preocupações. De novo, na minha fantasia da Sociedade dos Poetas Mortos, o papel decisivo que eu teria na vida dos meus alunos, mostrando-lhes o caminho da luz, do bem, do belo, da verdade, seria a minha recompensa... Um quarto-e-sala estava de bom tamanho. Hoje, aos 28, morando sozinha, pagando minhas contas e usufruindo da minha independência financeira, acho que dinheiro conta, sim. Ainda hoje eu não colocaria esse fator como o mais importante no momento da escolha, mas certamente não amarraria meu burrinho em qualquer poste apenas por uma fantasia adolescente sobre uma profissão missionária.
O curioso é que, como eu disse há pouco, nem sempre a gente escolhe muito os rumos que a vida toma, mas acaba tendo que assumir algumas escolhas como nossas, para a vida fazer algum sentido. Logo que me formei, decidida a não ser professora, recebi uma proposta de trabalho para fazer algo muito diferente do que eu já havia experimentado até então, e gostei do desafio. Em pouco tempo eu já ganhava mais do que precisava para me sustentar. Aos poucos o trabalho foi se revelando menos fascinante do que poderia parecer em um primeiro momento, mas ainda assim válido, por me ensinar coisas, me proporcionar a convivência com pessoas interessantes e, sobretudo, por me garantir um sustento.
Por motivos não relacionados ao emprego em si ou mesmo à relação com os meus pais, acabei decidindo sair de casa. E, quando esses motivos deixaram de existir, em um primeiro momento nada do que eu havia feito até então parecia fazer sentido. Por que essa casa, esse emprego, essa vida, se tudo isso era para viabilizar um plano que não é mais viável? Foi aí que a vida me deu um ultimato, e respondi a ele dizendo: essa casa é minha, esse emprego é meu e essa vida é minha. Fui eu quem escolhi, porque acredito que a independência financeira é o curso natural da vida, porque acho que todo mundo precisa aprender a conviver com a própria solidão, e porque a minha vida é o resultado de todas as escolhas que eu fiz até agora e de como abracei aquilo que não escolhi, mas me aconteceu. Disse uma vez um homem sabido: “o homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”. Grande Jota-Pê...
É assim, em meio a um papo altamente filosófico (especialmente em se considerando o adiantado da hora) que João estaciona o carro de vaqueiro na pirambeira da Paris, de onde salto agradecendo pela carona, pelo papo e pela companhia, com a promessa de repetir outras vezes essa deliciosa aventura pela cidade de São Paulo.
6 comentários:
Haja filosofia... rs
Como um ser que mudou de rumo profissional (radicalmente) 3 vezes até agora, sei muito bem que não é uma escolha fácil. E a vida vai nos colocando em situações que levam a escolhas e decisões diferentes das que a gente via há 10 anos. E que tudo bem. É bom.
Cada passo dado me trouxe onde estou hoje. E gosto muito de onde estou hoje. Gosto muito do meu trabalho, apesar de obviamente nem todo dia ser maravilhoso. I'm happy. Are you?
Só isso importa!
beijo
Oi MH!
Você era uma das pessoas que eu tinha em mente quando eu falei que alguns felizardos gostavam do que faziam. Eu me lembro muito bem que o trabalho está entre uma das suas paixões no Orkut... :)
Eu ainda não me considero realizada profissionalmente, embora, como você e eu tenhamos concordado, aquilo que eu chamava de "realização" aos 18 anos é diferente do que chamo hoje.
Depois de ter passado pela minha fase "Oh captain, my captain", eu já cheguei a achar que o trabalho podia ser um jeito agradável de passar os dias e ganhar a vida. Hoje em dia, acho que ele tem que dar um sentido maior à sua existência, ou seja, que você tem que sentir que está construindo alguma coisa. Eu ainda não sinto isso, mas vou atrás disso com calma e de peito aberto.
Felizmente, assim como o amor, acredito que o encontro com uma vocação ou, pelo menos com uma profissão que te dê sentido, pode acontecer em diferentes momentos da vida...
Beijão!
Cris,
preciso te dizer que a primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi ligar o computador? Rs...
Pois é! Somos aquilo que vivemos, tendo escolhido ou não... E já dizia aquele outro poeta: o caminho se faz ao caminhar.
E se no percurso você quebrar a perna, pode contar comigo para uma carona e um almoço no domingo ;)
Beijo grande!!
Amícola Fanta,
estamos mesmo blogaddicted, né? Hehehehehehehehehhehe :)
Eu posso não ser boa de escolher a profissão, mas os amigos eu escolho a dedo! ;)
Obrigada por tudo...
Também sou do time dos indecisos. Comecei psicologia, educação física e veterinária. Quando faltava um ano pra me formar nesse último, resolvi fazer vestibular pra jornalismo. Me formei, mas ainda não tenho muita certeza do que eu quero...
Nana,
caramba, hein? Você também já rodou um bocado (com todo o respeito)...
Olha, com as faculdades eu até me acertei rápido, o problema é mesmo saber em que ramo trabalhar.
Paciência... acho que a gente tem que aceitar que para algumas pessoas é mais difícil mesmo, né?
Boa sorte pra nós...
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